Sou já suficientemente velho para me lembrar ainda dos agentes técnicos de engenharia, dos arrumadores de automóveis e dos furriéis-enfermeiros. As duas primeiras categorias desapareceram, uma por as escolas superiores apenas formarem engenheiros, na variedade turbo que é para o que dão três aninhos; a outra porque, correspondendo a uma saudável evolução semântica que traduz o respeito devido a todas as profissões, os seus membros são agora designados por técnicos de parqueamento automóvel; e a terceira terá também desaparecido porque, dela não ouvindo referências há anos, posso legitimamente presumir que todos os antigos militares com aquela graduação terão sido promovidos a sargentos-médicos.
Outras profissões não menos dignas têm visto a sua designação tradicional substituída: por exemplo, ao meu falecido Pai, se renascesse, teria o prazer de dizer: Pai, já não é guarda-livros, é técnico de contas! - ao que este muito provavelmente responderia: Deixa-te de palermices, rapaz, mudar o nome às coisas não muda a natureza delas. Pobre pai, que se informado que agora tinha uma Ordem, com um Bastonário a expectorar volta e meia na praça pública o seu sentir de socialista em relação ao Plano Oficial de Contabilidade, a reforma do IRC e a justiça social, haveria de sentir não orgulho mas embaraço.
Esta evolução é imparável; e tempos virão em que os mancebos, na altura em que dantes iam à Inspecção, receberão uma licenciatura da sua preferência e a inscrição numa Ordem, em simultâneo com a renovação do Cartão de Cidadão.
Já não vou ver esse tempo, infelizmente. E no meu caso será de dizer que nasci cedo de mais porquanto, dados os meus conhecimentos sobre hititologia, uma disciplina de tal modo rara que a sua designação nem sequer existe em Português, seria da mais elementar justiça a outorga de uma licenciatura em Antiguidades Obscuras. Munido do diploma, o meu discurso sobre os carros de combate hititas, a propósito dos quais li para cima de um livro, revestir-se-ia de uma autoridade acrescida, que de momento me falece.
A verdade, porém, é que ninguém é obrigado a ouvir ninguém; e alterar, no discurso e nas folhas de salários, a designação de cada um para outra que imaginariamente enobrece, não dá realmente grande trabalho.
Sucede porém que doravante, ainda antes de uma consulta médica, já o paciente pode ser submetido a exames porque um moço licenciado em suturas, injecções intramusculares e desinfecções com mercúrio-cromo, sentado diante de um computador softuérizado com um algoritmo, assim determinou. Parece que é para agilizar a caranguejola das urgências, reduzindo os tempos de espera.
Não é preciso ser médico, nem enfermeiro, nem doente, para perceber que com esta medida o que vamos ter é um desparrame de exames inúteis, conflitos escusados (ao senhor Secretário Leal da Costa - sempre ele, este homem inevitável - não ocorreu que haverá doentes que se recusarão a fazer exames determinados por um enfermeiro), e guerra entre enfermeiros e médicos.
E isto os senhores doutores enfermeiros, a respectiva Ordem, e o Secretário Leal, que me perdoem, mas eu não vejo com olhos pacíficos.
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