No dia em que foi escolhida para presidir à Comissão Europeia uma mulher com sete filhos, Ursula Von der Leyden, tenho andado a discutir nas redes sociais aquilo a que alguns gostam de chamar, e eu não, a invasão muçulmana.
Queixam-se os denunciantes da invasão muçulmana que a permeabilidade das fronteiras à imigração ilegal, o acolhimento de refugiados e os brandos costumes dos europeus, que não obrigam como eles pensam que deviam obrigar os imigrantes e refugiados muçulmanos a adaptarem-se à cultura europeia, ou àquilo que chamam a matriz cultural europeia de inspiração cristã, por exemplo impedindo o uso de vestes religiosas muçulmanas como as diversas formas de véu, que está em curso uma cruzada de islamização da Europa baseada na invasão do continente por muçulmanos, imigrantes e refugiados. Que por seu lado justifica um controlo rigoroso dos imigrantes e refugiados que se deixam entrar, numas versões, ou mesmo ao fecho hermético das fronteiras, noutras.
Tese abundantemente ilustrada nas redes sociais por histórias terríveis e odiosas, desde países em guerra civil travada pelos imigrantes e refugiados muçulmanos contra as populações locais, a surtos de crime, e de crime do mais odioso, como as violações em massa de mulheres brancas ou os casamentos forçados com crianças, a movimentos políticos organizados de imigrantes muçulmanos a exigir a instauração da sharia nos países europeus ocupados por eles. Histórias que raramente chegam aos mainstream media, ou não com a extensão e profundidade que as redes sociais lhes dão, para esconderem do povo as consequências do globalismo e do multi-culturalismo, dizem os que as divulgam nas redes sociais, porque são imaginadas, dizem outros que visitam esses países e não dão por guerras civis nem violações em massa nem casamentos de crianças. Ou através de teses que defendem que os voluntários que dedicam o seu tempo a tentar salvar náufragos no Mediterrâneo estão afinal coordenados com as redes de traficantes de imigrantes ilegais que lhes pagam a peso de ouro para levarem para portos europeus os imigrantes ilegais que eles embarcam em praias do norte de África.
Estas teses inspiram nas redes sociais inúmeros activistas anti-imigração, de que se podem destacar como exemplos conhecidos em Portugal a actriz Maria Vieira e a, não lhe conheço uma actividade certa mas posso-lhe chamar assim porque escreve em blogues, blogger Cristina Miranda, de que não estou em posição de identificar o perfil do Facebook por me ter bloqueado e portanto não lhe ter acesso mas que me dedicou estas simpáticas palavras que lhe agradeço publicamente, e partidos como o PNR ou o novo Chega (ou Basta? que me perdi nas mudanças de nome).
Para atalhar razões, defendem que o movimento de imigrantes e refugiados faz parte de uma conspiração muçulmana para invador e islamizar a Europa. E terão fundamento para pensar assim?
Do propósito e da orgânica do movimento migratório tanto podemos acreditar como acreditar que é uma teoria da conspiração. Eles, os imigrantes e refugiados, lá saberão se são soldados de um exército invasor para instaurar o islamismo na Europa, se meros seres humanos a fugir da miséria ou dos horrores de guerras mortíferas para tentarem oferecer às suas famílias um local decente onde consigam levar uma vida decente, como tantos portugueses fizeram em décadas passadas emigrando para a Europa e a América.
Sobre as consequências há quem tenha feito estudos.
Este, do Pew Research Centre, sobre o crescimento da população muçulmana na Europa, além de fazer um retrato da presença de muçulmanos em 2016, elaborou previsões baseadas em diversos cenários de políticas públicas relativamente à imigração, incluindo as mais radicais, a de fronteiras completamente abertas e a de fronteiras completamente fechadas à imigração.
Sobre a presença de muçulmanos na Europa em 2016 apurou que ascendem a 4,9% da população, sendo o país onde ela é mais importante a França, o que é natural numa antiga potência colonial com colónias no norte da África, com 5,7 milhões de muçulmanos correspondentes a 8,8% da população. Os outros países onde há maior peso percentual de muçulmanos são os países prósperos do centro e norte da Europa que historicamente atraem imigração, nomeadamente a portuguesa, como a Alemanha, o Benelux, o Reino Unido, a Suíça e a Suécia. Com menos peso a Itália, que no entanto assumiu a vanguarda da resistência à entrada de imigrantes com o governo Salvini que criminaliza o salvamento de náufragos no Mediterrâneo a pretexto de os barcos que os salvam estarem envolvidos nas redes de traficantes de imigrantes ilegais. E com um peso próximo de zero e só semelhante ao dos países de leste Portugal, o que sugere que os portugueses que fazem da imigração muçulmana uma obsessão, e há-os como os que enumerei antes, parecem tomar como suas preocupações que têm relevância noutros países mas nenhuma em Portugal, ou seja, parecem engravidar pelos ouvidos nas redes sociais.
Estes números para a proporção de muçulmanos e a sua diferença face à percepção das populações estão em linha com os resultados do inquérito realizado pela Comissão Europeia em 2016 sobre a assimetria entre o número de imigrantes percebido pelas populações dos diversos países da Europa e o real, que explicam melhor do que o número real de imigrantes a orientação das políticas públicas face à imigração.
Mas a aferição da adequação e eficácia das políticas públicas faz-se pelos seus efeitos.
E o estudo prevê que no cenário radical de encerramento das fronteiras à entrada de novos imigrantes, que nem na Itália de hoje em dia está a ser praticado, a proporção de imigrantes na Europa crescerá dos 4,9% actuais para 7,4% em 2050, um aumento de 50%, e na Itália mais de 70%, de 4,8% para 8,3%.
Porquê? Por uma razão muito simples, os imigrantes continuam a ter filhos a taxas normais, enquanto os europeus têm cada vez menos e abaixo da taxa que garante a reposição dos níveis demográficos.
Para garantir a reposição dos níveis demográficos e a estabilidade da população todas as pessoas devem ter em média dois filhos. O número requerido é na realidade um pouco superior para compensar efeitos adversos para a demografia como a mortalidade antes de começar a ter filhos, mas para efeitos de simplificação pode-se admitir que são dois por casal. O que significa que por cada casal com apenas um filho deve haver outro com três. Ou por cada casal sem filhos, ou por cada duas pessoas que não chegam a formar casais, dois casais com três ou um com quatro. E significa também que se uma geração de casais tiver em média apenas um filho em vez de dois a população se reduzirá para metade a longo do ciclo de vida dessa geração, para um quarto ao fim de duas gerações, e para um milésimo ao fim de dez. E este parágrafo é simplesmente Aritmética que não está sujeita a opiniões nem preferências. É assim.
Já no caso extremo de a Europa escancarar as portas à imigração a população muçulmana na Europa poderá atingir os 14%, uma em cada sete pessoas, curiosamente a proporção que será atingida na Itália, com valores mais elevados na Suécia onde se aproximará de um terço e nos países mais ricos do centro da Europa onde se aproximará de um quinto. Cerca do dobro dos valores esperados com fronteiras fechadas, por seu lado 50% superiores aos actuais.
O que significa que mesmo com fronteiras abertas a população muçulmana ainda estará muito longe de ser maioritária em 2050, e com fronteiras fechadas ainda será substancialmente superior à actual. A invasão muçulmana está longe de parecer votada ao sucesso, e o fecho da Europa aos imigrantes não estancará o crescimento da população muçulmana na Europa.
Porquê? Pela razão apontada antes. A ameaça que a Europa enfrenta não é a invasão muçulmana para substituir a prazo a população europeia ou para lhe impor os seus valores, é a extinção da espécie por não se conseguir ou não se querer reproduzir aos níveis mínimos para assegurar a sua subsistência.
E porque é que os europeus têm cada vez menos filhos? Não é fácil encontrar uma explicação. Talvez porque se apaixonaram pela prosperidade material inédita na história de que usufruem actualmente e prefiram gastar o dinheiro em casas e carros bonitos e férias em destinos exóticos a gastá-lo em fraldas e pediatras e colégios se tiverem filhos? E água muito mais cara por metro cúbico, já agora? Talvez se tenham convencido que ter filhos é um serviço prestado à comunidade que não devem prestar gratuitamente, sem apoios, sem subsídios, sem condições? Por uma razão não é certamente, pelas condições materiais que têm à sua disposição, porque os imigrantes ganham em média muito menos, têm em média muito menos estabilidade laboral, e continuam a ter filhos a níveis normais. A razão da queda de natalidade dos europeus parece ser mais cultural do que material.
O problema da Europa não se resolve proibindo a imigração e deixando os imigrantes naufragarem e morrerem no Mediterrâneo, o que aliás está em grave contradição com os valores humanistas da matriz cultural europeia de inspiração cristã de cuja defesa contra a ameaça muçulmana se reclamam os detractores da imigração, não se resolve adoptando políticas de imigração adequadas às necessidades de mão-de-obra das economias, o que soa a planificação da economia que sempre foi um método de não resolver problemas mas de criar outros que se somam aos originais, e não se resolve submetendo os imigrantes à aceitação dos valores culturais europeus ou aceitando-os em função da proximidade entre os seus valores e os europeus. O problema da Europa resolve-se tendo filhos.
Se os europeus não os passaram e ter sistemática e sustentadamente a níveis que asseguram a reposição dos níveis demográficos, os tais mais de dois filhos em média por casal, continuarão a abrir voluntariamente um vazio demográfico que um dia será ocupado por quem lhes sobreviver, não lhes caberá a eles escolher quem os deverá substituir quando um dia se extinguirem, e é até patético pensarem que têm legitimidade e capacidade para o fazer. Se desaparecerem a Europa será de quem ocupar o vazio deixado por eles.
Em que é que os ajuda fecharem a imigração ou controlarem-na a níveis adequados às necessidades da economia e garantirem a integração cultural dos imigrantes? É um cuidado paliativo. Tem a vantagem de controlar a dor a níveis suportáveis ou cómodos e a desvantagem de retirar ao doente o sentido de urgência da cura para garantir a sobrevivência. É um engano, uma perda de tempo e energia que atrasa o ataque ao problema real.
Se a Europa quer sobreviver não tem que resistir à invasão muçulmana, tem simplesmente que ter filhos em vez de continuar a não os ter ao mesmo tempo que os imigrantes os continuam a ter, porque nesta história são eles as pessoas normais guiadas pelo sentido mais básico da biologia, o sentido de preservação da espécie.
Se não os tiver tanto lhe dá que quando se extinguir venham muçulmanos, como coelhos, ou moscas. Foi incacaz de sobreviver e não estará cá para saber quem lhe sucederá. Não mereceu sobreviver.
Neste cenário sombrio, muito mais negro, por conduzir a uma morte certa, do que o de uma invasão muçulmana, é de celebrar a nomeação de uma presidente da Comissão Europeia, um dos lugares com mais influência na definição de políticas públicas na Europa, de uma mulher com sete filhos. Talvez não esteja tudo perdido.
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