No meu post anterior manifestei a intenção de perpetrar comentários sobre a última entrevista de António Barreto, e pelo menos um terço dos meus leitores já me pressionou para o cumprimento da ameaça. Não posso ignorar uma proporção tão significativa, e apresso-me portanto a satisfazer aquelas duas pessoas.
Uma nota prévia, porventura de gosto duvidoso: Barreto tem hoje um aspecto um tanto emaciado, e duas fundas rugas se lhe cavam na fronte alta; a magreza numa estatura elevada compõe um quadro de ascetismo; e fala com simplicidade e voz grave sobre assuntos graves, destilando o que o espectador supõe frutos maduros de uma longa reflexão.
O espectador que não seja geringôncico fanático, por certo, o que quer dizer uma grande maioria da população. Infelizmente, e mesmo que quem se pronuncie no espaço público de forma crítica sobre o Poder do dia conte com a minha simpatia instintiva, a mandarins da opinião exijo clarividência. Vejamos se Barreto a tem.
A entrevista começa com a natural revisitação das ideias vertidas no livro Anatomia de uma Revolução, publicado em 1987 e agora reeditado. É história, que deixo para os historiadores. A mim basta-me a memória da liquidação da Reforma Agrária comunista, na qual desempenhou um papel corajoso e determinante. Se, nas circunstâncias da época, era possível lançar as bases para uma mais completa aniquilação do poder comunista, que hoje sobrevive sob a forma de votações cativas em inúmeras autarquias do Alentejo, que por sua vez fornecem a base eleitoral para o essencial da influência deletéria que o PCP ainda detém na sociedade portuguesa, desconheço.
Saltando para os nossos dias, Barreto reconhece que existe hoje "algum preconceito contra a direita" e que "o bom momento que este Governo viveu neste ano e meio ficou a dever-se, em grande parte, à complacência, à cortesia, da imprensa em geral".
E para explicar este estado de coisas diz Barreto que "a direita, ela própria, talvez por causa da ditadura de Salazar, também tem vergonha de dizer que é de direita, o que contribui para o preconceito. Eu não gosto de simplificar, mas às vezes ajuda: o que é que a direita faz? Dinheiro, empresas, enriquece e faz enriquecer. A esquerda faz o quê? Cultura, letras, palavras, cinema, teatro, jornais, educação. A esquerda tem, digamos assim, 'boas especialidades' e a direita tem 'más especialidades".
Eu também não gosto de simplificar, e é por essa razão que prefiro pensar que há em Portugal uma tradição, que começou antes da quartelada de 25 de Abril, e antes do Estado Novo, de dependência do Estado, que distribui empregos, poder e benesses a um país pobre onde a sobrevivência é difícil e o sucesso quase impossível sem ser à sombra do Poder; que a direita não tem vergonha de dizer que é direita por causa de Salazar mas por medo de perder votos, que perderá infalivelmente se disser que o Estado deve ser, como tem que ser, mais pequeno; e que a Cultura que a esquerda faz quase nunca o é, mas apenas circo para o povo, no melhor dos casos, e sustento de parasitas que retribuem com silêncio aquiescente ou propaganda, no pior.
A esquerda faz essas coisas (cultura, letras, palavras, cinema, teatro, jornais, educação) com apoio do Estado; e a direita não as pode fazer porque sabe que o Estado deve gastar menos, não mais.
Os jornalistas portugueses são pobres, têm medo de perder o emprego porque a economia não é suficientemente dinâmica para criar outros, estão inseridos na lógica infernal de não poderem fazer jornalismo de investigação porque não têm meios, e perderem ao mesmo tempo leitores porque fazem jornalismo de opinião para a qual não têm nem conhecimentos, nem gramática, nem autoridade, nem independência; para não falar na concorrência das redes sociais, que fazem de graça, e com frequência melhor, o mesmo trabalho. O socialismo medra no medo e na miséria quando não há anticorpos na sociedade contra o estatismo, como sucede em Portugal. Queria-se que os jornalistas fossem, na sua maioria, de direita?
É provável que alguns jornais on-line sobrevivam; e que mais alguns em papel fechem; e que os socialistas façam o que sempre tentaram fazer, e em geral conseguem, condicionar uns e outros; e que, quando a direita regressar ao poder, a comunicação social faça um grande berreiro, se ainda houver democracia. Mais do que isto não vislumbro. Barreto, aparentemente, nem isto vislumbra.
Prosseguindo, não gosta da geringonça, por muitas e boas razões, e preferia que não se tivesse feito. Mas o que lhe ocorre sobre o momento em que Costa fez o flick-flack sobre a sua derrota eleitoral é isto: "Neste conjunto de avaliação de forças, o primeiro-ministro António Costa disse: 'É a altura'. Além de que não havia mais nada. Ou era isto ou não era nada. A conjugação destas duas coisas fez com que houvesse uma mudança".
Quer dizer: o líder do partido derrotado faz uma coligação sem precedentes com uns pestíferos em torno dos quais sempre os socialistas haviam estabelecido, desde 1975, um cordão sanitário; o eleitorado não se pronunciou sobre tal coligação, que nunca lhe foi aventada; e Barreto acha que o presidente da República não podia fazer nada? Claro que podia: desde logo declarar que jamais daria posse a um governo cujo parto dependesse do apoio da ala comunista da Assembleia. O país mergulharia numa crise, claro. Mas as crises são como certas guerras: mais vale fazê-las cedo para que não se tenham que fazer mais tarde, e maiores.
"Talvez tivessem [os portugueses] mais autonomia e mais liberdade durante o reino dos Filipes do que agora". Boa frase. E a partir dela António pinta um quadro aterrador, e pertinente, da nossa situação e da do resto da Europa. E que diz sobre a forma de sair deste buraco? Diz isto: "Continuo pessimista".
A seguir vêm os incêndios de Pedrógão Grande e o assalto a Tancos. Barreto diz melancolicamente: "A ideia de que este Governo foi melhor do que o anterior ou pior do que o anterior para os incêndios ou para Tancos? Não aceito essa ideia". Não aceita essa ideia nem a da demissão dos responsáveis: "Demissões? Sinceramente, não sei".
Já eu não acredito que Passos se enredasse no prodigioso conjunto de aldrabices e passa-culpas que Costa e sus muchachos estadearam perante um país atónito; não acho que as responsabilidades deste e do Governo anterior sejam equivalentes, desde logo porque o actual é legitimamente suspeito de estar a enfraquecer via cativações a eficácia de serviços básicos do Estado, além de ter povoado de boys, de forma particularmente sôfrega, o aparelho da Protecção Civil, entre outros; e sinceramente acho que demissões já devia ter havido, se não for por mais nada ao menos por responsabilidade objectiva e preservação do princípio de que quando os que mandam perdem a vergonha os mandados perdem o respeito. Costa pode ser um aldrabão contumaz, que efectivamente é, mas a autoridade do Estado deve ser preservada.
"O Estado que queremos depende desta discussão. Se queremos um Estado liberal ou um Estado robusto e interventor. Se queremos um Estado que tem uma enorme despesa social ou menor. E, no caso da despesa social, ser uma despesa social universal ou seletiva".
Sim sim, pé-ré-pé-pé, já sabemos que a discussão vai ser essa, se os credores entretanto não intervierem para dizer que não há discussão nenhuma e que vai ser assim e assado. Mas o entrevistado o que acha sobre essas magnas questões? Ah, disso seremos inteirados um dia, quando António Barreto acabar de cogitar.
"Está a ser uma alternativa, esta solução?
Está, mas não a alternativa no essencial que é o pagamento da dívida e o crescimento económico. Ainda não é alternativa nenhuma. Mas é alternativa às pensões, às reformas, ao bem-estar das pessoas, ao dinheiro que foi devolvido e à paz social. A paz social faz parte de uma estratégia política do Governo e o primeiro-ministro comprou a paz social com o PCP e com o Bloco. E enquanto der é um sucesso, é um êxito".
Truísmos, Barreto, truísmos. O que nós queríamos saber era o que fazer para promover o crescimento económico e sobre isso nada. Sucede que o Governo anterior demonstrou (e isso não era evidente, nem sequer para mim) que é possível diminuir a despesa pública e, a prazo, crescer. O corte na despesa foi transversal e deveria ter sido vertical, isto é, eliminando serviços públicos, o que significa que não houve verdadeira reforma do Estado. Mas daquele lado a reforma pode talvez vir, mesmo que tímida. Do lado socialista, de mais a mais acolitado pela esquerda fóssil e pela festiva bolivariana, não.
"Para mim, o grande, grande problema dos deputados é o seu modo de eleição, dado que ali nenhum deputado responde perante o seu eleitorado. Responde perante o chefe do partido. O verdadeiro patrão dele é o chefe do partido. E devia ser ao povo que ele devia prestar contas".
É inegável que a representatividade do Parlamento sairia reforçada com alguma revisão das leis eleitorais que diminuísse o poder dos aparelhos e aumentasse o do cidadão. Porém, Barreto parece acreditar que algo de substancial mudaria no país com estes novos arranjos, e decerto naquela cabeça peregrina mora a ideia de que com esta varinha mágica a nossa democracia se pareceria com a inglesa.
Puro engano: num país onde o Estado tem o peso que tem e o centralismo que tem o deputado regional tenderá a ser uma correia de transmissão de interesses locais quando não de empresas e indivíduos; e um parlamento cheio de deputados do queijo limiano, Isaltinos Morais, Mesquitas Machados e Mirabeaux de aldeia poderá talvez ser mais representativo; mais respeitável é que se duvida. Mesmo assim, esta mudança talvez seja necessária e aconselhável; mas conviria não esperar dela o que ela não pode dar nem fazer disso o alfa e o ómega de uma reforma das instituições. Muito mais importante seria rever a Constituição económica, tornando-a mais favorável à livre iniciativa e à responsabilidade, e menos ao parasitismo.
A seguir vem a Justiça, sobre a qual as considerações tecidas são mais do que razoáveis, em particular sobre as magistraturas. Tanto que, só por isto e a despeito do que antecede, António Barreto teria tido o meu voto se tivesse sido candidato à presidência da República em alternativa, ou em concorrência, ao saco de vento palavroso e oco que acabou por ganhar.
E a entrevista acaba com umas considerações desastradas e pedantes sobre a demissão dos secretários de Estado: nem o custo das deslocações aos jogos foi tão insignificante, nem convites de uma empresa a governantes, mormente àquele que se ocupa de questões fiscais, devem ser desvalorizados: se eu, que sou empresário (isto é, uma pessoa que produz bens e não perdigotos), sou obrigado a pagar um imposto extra sobre despesas de representação, a que título se justificam tais despesas junto de quem não é nem cliente nem fornecedor? E a referência às low-cost e aos sanduíches manhosos é um detalhe escusado e, traduzido, quer dizer o seguinte: eu, António, sou uma pessoa finíssima, habituada a passadios de muito mais fino recorte.
Em resumo: António Barreto faz parte, e é porventura o membro mais ilustre, de uma variedade de pensadores muito respeitada, que são os que pairam. Desprezam os actores políticos, fugindo como da peste de manifestar preferências; quando se dizem de direita não cessam de a criticar, ao mesmo tempo que dizem coisas compreensivas e simpáticas para a esquerda; e quando se dizem de esquerda guardam para ela uma compreensível tolerância, não se esquecendo nunca de malhar na direita. São com frequência professores universitários, acham que essa condição lhes dá uma lucidez que escasseia ao comum dos cidadãos, leram quatro livros e planeiam, nas próximas férias, ler cinco. E nunca se dão ao excessivo trabalho de dizer como se faz.
Gente céptica como eu é bem capaz de ir ao ponto de pensar que não dizem porque não sabem.
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