Quinta-feira, 13 de Agosto de 2015

Outros tempos

William Howard Taft foi o 27º presidente dos EUA, pesava 150 kg para 1,80 m de altura, e foi o último a usar bigode. De uma colecção de biografias de presidentes americanos, retive-lhe o nome, sobretudo, porque era calmo, bonacheirão e fazia a sesta. Não foi reeleito, não se lhe citam os discursos, e não figura nos lugares cimeiros das listas de presidentes ilustres. Estes, infalivelmente, são o Lincoln da guerra civil, o Kennedy das frases bombásticas (...ask what you can do for your country, mantra mais socialista não há), o Roosevelt do New Deal e da II Guerra e, presume-se, também virão a estar povoadas pelo inspirador Obama do yes we can... (print money as if there was no tomorrow, acrescento eu), o primeiro presidente negro, perdão, afro-americano.

 

Taft foi talvez o último presidente que, genuinamente, não perdia o sono por causa do crescimento, a taxa de desemprego e a obsessão com o andamento da economia. E certamente ficaria trespassado de espanto se lhe viessem propor que, com apoio do Estado, milhões de cidadãos se transformassem de inquilinos em proprietários. Mas foi precisamente naquela terra dos fortes e bravos que essa luminosa ideia nasceu umas décadas mais tarde. E acabou numa bolha imobiliária, numa gigantesca espiral de especulações financeiras demenciais e, finalmente, numa crise que se propagou ao resto do mundo.

 

A ideia pegou de estaca entre nós: interessava aos inquilinos que, em vez de pagarem uma renda ao proprietário rentista, pagavam-na a si mesmos sob a forma de investimento num imóvel; aos construtores civis e indústrias conexas, que tiveram muitos e bons anos dourados; aos governos que assim "criaram" emprego, eleitores satisfeitos e "crescimento", a troco de descontos na receita de IRS, sob a forma de juros subsidiados; e, sobretudo, aos bancos, sector segurador e outras parasitagens financeiras, que encontraram um negócio rotineiro e de pouco trabalho, seguro, de receita certa e gerador de bons prémios de gestão para a malta dos fatos às riscas e palavreado sempre disponível para esclarecer as massas sobre macroeconomia.

 

Claro que os inquilinos apenas trocaram uma servidão leve por uma pesada: a prestação da casa seria maior do que a renda, se existisse mercado de arrendamento, e a conservação passava a correr por conta do antigo inquilino, agora proprietário nominal; a mobilidade ficava reduzida porque, em necessitando mudar de terra, teria que arranjar comprador para o imóvel, para se poder enfrascar com outro; e o investimento penosamente feito podia, se a vida corresse mal, resultar numa terrível enrascada, por a entrega do bem ao banco não extinguir a dívida remanescente, segundo legislação acagaçada do poder político, esquerdista umas vezes, cobarde outras (o mesmo que havia liquidado o mercado de arrendamento e nunca encontrou coragem para corrigir o torto) e interpretações de juízes funcionários, com fartos conhecimentos de direito positivo e nenhuns de doutrina.

 

Acabou, é claro, mal: os postos de trabalho, que aliás eram com frequência de imigrantes, esfumaram-se; gente sem culpas nem falta de diligência viu a sua vida destruída ou a andar seriamente para trás; e os bancos, que se haviam com inacreditável imprudência endividado no exterior para poder financiar todo este progresso de cimento podre, viram-se subitamente entupidos com imóveis que ninguém queria, em volume aliás confidencial, não vá abalar-se ainda mais o prestígio das instituições bancárias, e com isso perturbar-se o tranquilo gozo das suas reformas milionárias a quanto idiota geriu bancos nos últimos anos, assim como a serena inimputabilidade de quem nominalmente os supervisiona.

 

Enquanto esta maluqueira da construção durou a outra economia, a dos bens transaccionáveis, estiolou. E mesmo que recentemente, por razões ainda mal explicadas e compreendidas, a economia verdadeira, isto é, a que cresce à margem do Estado e com frequência apesar dele, tenha encontrado em si forças para sobreviver e, muitas vezes, prosperar, resta que deveríamos da crise ter retirado lições.

 

Mas não, esta gente não aprende: um pequeno empresário que queira fazer um leasing para uma máquina, obter um empréstimo para uma ampliação, ou um financiamento para executar uma encomenda gorda de um cliente que paga a prazo, só o consegue se demonstrar que na realidade não precisa de financiamento nenhum, ou arranjar forma de garantir que o banco não corre qualquer risco; mas o empregado da mesma empresa pode, se produzir uma declaração de IRS que prove ter rendimentos bastantes, obter o financiamento para a casinha - santa estupidez.

 

Tenho esperança que do que estamos a falar seja de imóveis encalhados no activo dos bancos, e que os empréstimos sejam portanto operações de lavagem de asneiras. Mas não estou certo. Porque, excluindo o BES (de forma aliás inadmissível, mas isso são outros quinhentos) a tropa é a mesma. E os pilriteiros, como é bem sabido, não dão senão pilritos.

 

Precisávamos - muito - de fazer marcha-atrás, não digo a ponto do vivermos habitualmente de má memória, mas com um módico de confiança nas instituições. A bonomia de Taft, infelizmente, não nos seria de grande utilidade porque para dormir é preciso ter a casa arrumada. E para a arrumar não seria má ideia chamar o governador do Banco de Portugal e perguntar-lhe: olha lá, ó Costinha das proclamações em economês, o que é que esta merda dos empréstimos ao nível de 2011 quer dizer?

 

Não vai suceder, claro. Não há quem pergunte e, se houvesse, o homem não diria nada de jeito. A Taft, palpita-me, não ocorreria nem a dormir reconduzir num lugar quem no desempenho dele tivesse falhado clamorosamente. Outros tempos.

publicado por José Meireles Graça às 12:59
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