Terça-feira, 22 de Março de 2016

Peça em dois actos, de duvidosa moralidade

ACTO I, no tempo do fássismo

 

(Gabinete do Secretário, uma antiga escrivaninha de mogno com o tampo forrado a percalina vermelha, apoiada em dois blocos de gavetas, uma estante ao correr da parede, rematada com vidros de correr e fechadura amovível, um móvel alto de gavetinhas e tampa ondulada de correr, também de madeira; espessa alcatifa vermelha, por baixo de um duvidoso tapete persa de motivos obscurecidos pelo tempo e o uso; dois maples vermelhos, de couro, duas cadeiras e a do Secretário, esta giratória).

 

O contínuo: Sr. Fulano, está aí uma senhora para falar consigo.

Que entre.

Boa tarde minha senhora, faz favor de se sentar. Em que lhe posso ser útil?

Olhe, meu senhor, tenho aqui este recibo, que é de uma consulta de um especialista em Coimbra, pr'ò meu marido, sabe, o F....., que é varredor, tá a ver, está muito doente. Dá-se o caso que eu não sabia que havia um prazo para entregar o papel, julguei que era no fim do mês e agora a menina diz-me que não senhora, não posso entregar. E o dinheiro faz-me falta, é daquilo da ADSE...

Quem foi a menina?

Parece que é D. F......, uma muito corada...

Estou a ver.

 

(Discando o telefone)

 

Estou, F.....? Faça-me um favor, chegue aqui com três ou quatro esferográficas azuis, mas olhe: pelo menos uma tem que ser esfera fina.

Esfera fina? Não estou a ver o que é.

Então, não se lembra do anúncio da Bic? Azul da china esfera fina, azul cristal esfera normal...

Ah sim, já sei. Vou já.

 

(Entra a funcionária)

 

Tem aqui um monte delas.

 

(O Secretário experimenta as esferográficas, rabiscando um papel. Sorri, satisfeito, e no recibo acrescenta ao dia da data um algarismo).

 

Está a ver, F....., afinal isto sempre está dentro do prazo.

 

(F..... sai, de lábios cerrados, explodindo de fúria).

 

Obrigado, meu senhor, tinham-me dito que era quem me podia valer, não me enganaram...

Vá à sua vida, minha senhora.

 

ACTO II, no tempo do Simplex

 

(Um enorme salão com mobiliário moderno de cores judiciosamente combinadas e material de natureza indefinível - o roxo domina. Há para cima de uma dúzia de cubículos, cada um com o seu funcionário, o seu computador e duas cadeiras de plástico. Na sala de espera há écrans, em frente a bancos de encosto corridos, desconfortáveis pelo espaldar demasiado direito, e neles vão-se sucedendo a espaços números, associados a letras - cada letra respeita à natureza do assunto e dos dois números um diz respeito à ordem de chegada e outro ao cubículo. Virado para a porta das instalações sanitárias, perpendicular aos bancos, um televisor, que algum cidadão mira desinteressadamente enquanto acaba de subir o fecho-éclair da carcela. Ao Secretário coube o nº P 55, mostrando o monitor, à chegada, que estava a ser atendido o cidadão P 47 no balcão 16).

 

Boa tarde, era para renovar a carta. Está aqui o atestado médico.

Hum, dá-me a sua carta e o cartão de cidadão, por favor.

 

(Examina detidamente os documentos e, com um esgar mostrando os dentes cavalares, fala).

 

O atestado não está bem. Aqui diz "com restrições", mas não diz que restrições são. Tem que ir ao médico para ele corrigir.

Trata-se de uma renovação. A menção pelo médico de restrições só pode querer dizer que se mantém a que existe e a carta menciona, que é o uso de óculos.

Pois, não está bem, o médico tem que dizer.

Acho que não, que não tem que acrescentar nada. E, já agora, quer saber? Trabalhei neste edifício onze anos mas nunca interpretei o meu papel como o de sendo atrapalhar a vida às pessoas. No seu lugar, não ligava o complicador, de mais a mais por causa de um papel que só existe para o Estado cobrar 60 Euros às pessoas.

Pois fazia muito mal.

Você nem sabe o que lhe falta.

 

CAI O PANO.

publicado por José Meireles Graça às 20:24
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