Maria Luís Albuquerque teve um momento de fraqueza, e de franqueza, e confessou que há um buraco na segurança social, para o próximo ano, de 600 milhões.
Ninguém contestou o número, não obstante, parece, o buraco ser maior. Parece porque nada, absolutamente nada, nas contas públicas, é líquido: elas dependem sempre não da simples aritmética mas da variedade quântica, que não existe na Matemática (suponho) mas é a disciplina em curso na luta política - isto é, dependem da posição do observador.
O que a senhora foi dizer, em ano eleitoral! Porque os pensionistas e reformados são mais de um terço dos eleitores, e quase dois terços dos votantes. E isto quer dizer que é com o favor deles que se ganham eleições, e com o desfavor que se perdem.
Foi precisamente por as coisas serem assim - para comprar uma clientela cativa de votantes - que se atribuíram direitos a quem não tinha história contributiva; que se permitiram reformas antecipadas sem ser por razões de saúde, e em condições vantajosíssimas; que os cortes, operados à 25ª hora, quando já não havia outra solução, penalizaram, para atingir o montante pretendido, o menor número de pessoas; e que todas as corajosas e definitivas reformas (quatro até agora, salvo erro) que se operaram para garantir a sustentabilidade não garantiram coisa alguma - nem sequer a de Vieira da Silva que, por ser menos cobarde do que as outras, e introduzir um factor de correcção automática, relacionado com a esperança de vida, lhe assegurou um capital de prestígio que o próprio agora desbarata com eructações sobre "os esforços [que a] sociedade e quem governa deviam estar concentrados em orientar [... ] para a recuperação da economia e do emprego", como se a economia e o emprego se recuperassem, num ano, com duas rugas de concentração na testa, e o cenho franzido de quem está na retrete com prisão de ventre.
Costa não perdeu tempo: com o seu partido no poder, "não haverá cortes nas pensões". Que se danem as contas, os défices, a reforma fiscal, os trabalhadores no activo, os jovens, os desempregados e a Europa. Quem é preciso comprar para eu chegar lá, sentando o rabo gordo em S. Bento? São estes? Pois então seja - depois logo se vê.
Claro que se os eleitores, os reformados e os outros, lessem isto, paravam para pensar: a bem ou a mal, a Segurança Social será reformada; e, se não for no ano a seguir às eleições será no outro, ou no outro, ou quando vier outra tróica, se o PS ganhar as eleições e tentar cumprir um décimo do que promete.
A reforma não poderá consistir, como querem os liberais livrescos e ingénuos, num sistema de capitalização puro, porque há o peso da tradição e a mole imensa dos pensionistas actuais; e nem para os recém-chegados ao trabalho, a meu ver, seria desejável confiar no imenso bordel da Finança, porque os que hoje reclamam liberdade seriam os mesmos a reclamar auxílio no futuro longínquo, se a corja de ineptos, parasitas e sanguessugas que constituem a ilustre corporação dos banqueiros, supervisores incluídos, desse a prazo com os burros na água, como fatalmente, tarde ou cedo, aconteceria. Isto, claro, dentro dos limites de uma pensão pequena ou média; porque deveria haver uma pensão pública máxima, e por conseguinte uma contribuição máxima, que cada um poderia alargar, em complemento, correndo os riscos que entendesse.
A reforma far-se-á, pois, assim ou assado, com consenso ou sem ele, porque a demografia, a emigração, a imigração, o crescimento económico, a esperança de vida, o impõem. E quem tiver juízo e ainda contar trabalhar mais de uma dúzia de anos sabe que, provavelmente, só se reformará aos setenta e que quanto mais tempo passar menor será a percentagem do seu último vencimento que lhe será atribuída como pensão. De resto, não falta quem, mesmo dentro da lógica actual, sugira soluções ("a Segurança Social pode limitar-se a especificar que a pensão média paga a cada momento é exactamente igual ao montante de receitas a dividir pelo número de pensionistas"), embora seja de prever que uma tal disposição só poderia contar com a boa vontade dos senhores juízes do TC se se traduzisse em aumentos.
Sucede que sempre as coisas serão melhores ou piores consoante a economia cresça ou não; e que, por muito que a actual maioria tenha desgostado os que, como eu, a elegeram, é preciso evitar que o PS chegue lá. Costa, e a camarilha que o rodeia, nunca tiraram da bancarrota as lições que ela comportava; e persistem em crer que, não fosse a crise de 2008, a trajectória do crescimento a meio por cento ao ano e de aumento demencial da dívida externa haveria de desembocar, logo que frutificassem todas as apostas na educação, nas Novas Oportunidades, nos carrinhos eléctricos, nas ventoinhas mata-pássaros, no Magalhães, nas parcerias, no Parque Escolar, no TGV, e em todas as outras loucuras dos dirigentes que não sabem gerir um mini-mercado mas sabem o que convém às empresas, num país novo.
Mas os reformados não leem o Observador, leem o Crime e o Record, quando leem alguma coisa; e na televisão veem os concursos, a bola, as telenovelas e a sangueira ou o escândalo do dia, a abrir o telejornal. Do que se fala sobre pensões, porém, sabem, porque lhes interessa. E o que sabem, para já, é que este gajo não corta.
Este gajo. E os outros? Bem, os outros, dum lado e doutro, pedem consenso com o PS.
Consenso?! Mas que consenso o quê, em plena campanha eleitoral - isso é conversa para boi dormir. O negócio agora é, peço perdão, de casa de putas - entra quem pagar o consumo mínimo. E, portanto, das duas uma: ou a maioria é convincente a garantir que não vai fazer cortes nas pensões ou corre o risco de ir, cheia de razão, lamber as feridas para a oposição. As pessoas que, como Medina Carreira, afirmam que em dizendo a verdade aos eleitores estes compreendem e aceitam esquecem que há muitas verdades, desde logo a do PC, a do BE, a do PS e a da comunicação social, sendo que esta última costuma amplificar a das outras três. Medina, se concorresse, mesmo que com o mesmo tempo de antena, perdia - mas isto ele não sabe, nem acredita.
Dizer, portanto, que cortes só com acordo não chega - justa ou injustamente, a maioria tem a firme reputação de ser pelos cortes e o PS pelos pobrezinhos.
Ocorre que nem os mais férreos apoiantes do que, com manifesto exagero, se chama a direita, acham que, em matéria de reforma do Estado, se fez o suficiente. E portanto do que se faz mister é encontrar 600 milhões de cortes alternativos na despesa do Estado. Por exemplo, os 150 milhões de contribuição audiovisual bem podiam mudar de nome para contribuição de sustentabilidade, desde que a RTP fosse privatizada, indo ao ar do mesmo passo parte gorda da indemnização compensatória - aí 80 milhões, se a memória não me falha. O Conselho Permanente de Concertação Social, e as respectivas subvenções às centrais sindicais, fazem tanta falta como uma viola num enterro; a Provedoria de Justiça, um organismo que se dedica ao apoio psicológico às vítimas dos abusos do Estado, emprega 136 pessoas, soube ontem por acaso; a AICEP, e as outras agências que promovem o futuro da economia, poderiam ser reduzidas na exacta medida do necessário para continuar a receber subsídios da UE, na hipótese de esta não aceitar o uso dos fundos que distribui para abater à dívida; as fundações estão, mas não deviam estar, postas em sossego; nem é preciso sair da blogosfera para encontrar por onde fazer cortes; os Municípios não foram, e não se entende, ou entende-se bem demais, reformados; o Manifesto da defunta troica, bem escabichado, tem por lá medidas de corte da despesa que nunca viram a luz do dia; e o recurso extensivo à consultadoria externa, em vez de servir para redigir leis, bem podia ser utilizado para as revogar, juntamente com os serviços que as justificam.
Quem quer encontrar, encontra; quem não procura - não.
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