Sábado, 14 de Junho de 2014

Perdoai-lhes, Senhor

Uns cristãos estão indignados porque a outro cristão foi atribuído o prémio "Fé e Liberdade". O cristão agraciado é muito rico, coisa fortemente suspeita porque lá vem em Mateus 19:24: "Outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus".

 

Interpretado literalmente, e aplicado na organização das sociedades, o versículo da Bíblia arrumaria com a maior parte do progresso material e científico que se registou desde o séc. IV, quando o Cristianismo passou a ser a religião oficial do Império, até hoje, ao menos naquelas partes do mundo em que ele se implantou - seríamos todos pobres, tementes a Deus, e morreríamos cedo.

 

Mas os teólogos são ainda mais subtis do que os constitucionalistas, e nada é o que parece: Uma rápida pesquisa no Google, amparo dos ignorantes, resultou logo em três interpretações diferentes do versículo:

 

1ª) Houve uma substituição da palavra grega – kámilos – corda, para kámelos – o animal. O fundo da agulha considerar-se-ia literalmente; 2ª) A palavra camelo deve ser considerada literalmente, mas o fundo da agulha era uma pequena porta ao lado da porta principal de Jerusalém, pela qual um camelo passaria, após tirar-lhe a carga e, mesmo assim ajoelhado e aos empurrões; 3ª) Tanto o camelo quanto o fundo da agulha são considerados literalmente.

 

Um autor diz que esta terceira é a interpretação com que mais simpatiza. Porém, logo acrescenta: Assim como a repetição e a metonímia, Cristo usa uma figura de linguagem chamada hipérbole, que nesse caso se caracteriza pelo exagero, com o objetivo de despertar a atenção dos ouvintes para melhor fixar a narrativa na memória. Então, para enfatizar uma verdade divina, Jesus usou o recurso do exagero para que, causando o impacto esperado, todas as pessoas em todos os tempos repetissem essa comparação aprendendo uma verdade divina.

 

Estes cristãos irados são gente de representação. E confessam que o que os move não é "qualquer ressentimento contra a pessoa" em causa, mas o "dever de, em consciência, tornar audível a voz dos cristãos que não querem - não podem - silenciar a sua indignação".

 

Este esclarecimento é de uma grande utilidade, não fosse alguém julgar que as relevantes personalidades em questão tinham sido acometidas de fortes dores no cotovelo, uma afecção do foro psicossomático que ataca prevalentemente pessoas de esquerda. Não, que ideia!, longe disso. E, para desfazer qualquer sombra de dúvida, perguntam o que é que o prémio pretende enaltecer:

 

"Uma colossal fortuna pessoal? Uma forma de enriquecimento baseada nos ganhos do capital e sua acumulação? Práticas de exploração do trabalho humano (baixos salários, horários excessivos, precariedade nas relações laborais)? Expedientes fiscais para fugir aos impostos? Um modelo de economia que permite o desemprego massivo, a grande concentração do património individual e correspondente poder político, com risco para a democracia e para a coesão social?"

 

O Instituto de Estudos Políticos da UCP, que foi quem em má-hora atribuiu este prémio escandaloso, não vai, possivelmente, responder. Mas como as perguntas são públicas, e faço parte do público, respondo eu, não sem declarar que não conheço o Sr. Alexandre nem nenhum familiar ou amigo, não tenho negócios, nem intenção de os ter, com as empresas do dito senhor, nem simpatizo indevidamente com ele, a quem ouvi ocasionalmente na TV, à mistura com muita coisa sensata e pouco dita pelos líderes de opinião, alguns (a meu ver) disparates de tomo.

 

A "colossal fortuna pessoal" resultou de uma prática empresarial bem-sucedida, tanto em Portugal como no estrangeiro, em concorrência com outros empresários com iguais pontos de partida, crédito e oportunidades. Não querem concorrência? Não querem sucesso? E se o sucesso empresarial não se mede em ganhos, mede-se como?

 

"Uma forma de enriquecimento baseada nos ganhos do capital e sua acumulação": Os ganhos do capital são inerentes ao capitalismo, tenham paciência. E como para investir é preciso capital, se ele não for detido por particulares só o Estado pode investir. É isso que querem, que só o Estado invista?

 

"Práticas de exploração do trabalho humano (baixos salários, horários excessivos, precariedade nas relações laborais)": Não conheço as práticas do grupo Pingo Doce, e não sei por conseguinte em que dados se baseiam estes benignos cristãos. Mas pergunto: os trabalhadores foram recrutados manu militari? Se o Pingo Doce não existisse, estariam melhor? E, sobretudo, poderia praticar os preços que pratica junto de outros trabalhadores seus clientes, expandir-se e crescer se pagasse os salários que frei Bento, ou outro dos subscritores, acharia justos?

 

"Expedientes fiscais para fugir aos impostos": Desculpem lá mas a obrigação de qualquer empresa bem gerida é, dentro da legalidade, gerar a maior quantidade possível de resultados positivos para crescer sustentadamente, o que inclui poupar o mais possível, incluindo nos impostos. Estes bons cristãos entendem que, tirando às empresas para dar ao Estado, os recursos terão melhor aplicação. Por que razão, então, a taxa de IRC não é de 100%?

 

"Um modelo de economia que permite o desemprego massivo, a grande concentração do património individual e correspondente poder político, com risco para a democracia e para a coesão social." Ah bom, o Pingo Doce tem um grande poder político? Mas por que é que o Governo e a Assembleia da República não ligam a ponta de um corno ao que diz o Sr. Alexandre Soares dos Santos, que acha a gestão do País um desastre? E que tem o preço dos detergentes e das maçãs reineta, no qual o Pingo Doce dá cartas, a ver com riscos para a democracia?

 

Não se acaba com os pobres acabando com os ricos. Não vem, suponho, na Bíblia, e em todos os lados em que foi tentado o resultado não foram cidadãos remediados mas cidadãos pobres, e nem todos: os do aparelho do Estado foram, aí, sempre relativamente ricos.

 

Estes bons servos do Senhor fariam melhor em fundar um partido político, visto que têm um grande amor à democracia mas não gostam nadinha da sociedade como ela está. Há porém um óbice: os seus pontos de vista já são subscritos por partidos existentes, e estes concorrem às eleições mas não ganham. Deve ser esse o "risco para a democracia".  

publicado por José Meireles Graça às 14:20
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