Exceptuando um processo judicial de cobrança de uma dívida comercial de que fui autor, e ganhei, se bem que depois não tenha conseguido receber a dívida, porque as sentenças judiciais que determinam o pagamento de dívidas, ao contrário das criminais, não são de acolhimento obrigatório pelos réus, nem a justiça faz nada para os encorajar a cumpri-las, e alguns familiares com profissões judiciais, não tenho tido ao longo da vida grande exposição directa ao mundo da justiça, nem como magistrado, nem como operador judicial, nem como cliente, activo nem passivo. E estou muito bem assim, como se prova adiante.
Pelo que a minha estatística é provavelmente tendenciosa, porque meramente baseada nos casos que chegam aos jornais. E, nos casos que chegam aos jornais, a justiça portuguesa parece ter o hábito de deter arguidos à quinta-feira, e levá-los para outra cidade, para serem presentes ao juiz de instrução apenas na sexta, depois de trazidos de volta à cidade de origem, pelo que uma noite na prisão nunca ninguém lhes tirará, quando não na segunda ou terça seguintes, mantendo-os presos durante quase uma semana. Por vezes, rumores não confirmados sugerem que nem banho podem tomar nem mudar de roupa durante esse dia ou dias de espera.
Existem certamente alguns bons motivos para, em circunstâncias muito específicas, um magistrado ordenar a detenção imediata de arguidos antes do dia em que tem preparação ou disponibilidade para os interrogar, fazendo-os passar uma ou mais noites na prisão: evitar a consumação de um crime iminente; ou a fuga de um arguido; ou a destruição de provas. Mas, noutras circunstâncias, não consigo imaginar motivos que não sejam uma desprezível falta de respeito pelos direitos dos cidadãos e, acima de tudo, pela liberdade dos cidadãos.
Nestes casos a detenção antes de tempo parece uma praxe destinada a integrá-los no sistema prisional, habituando-os desde a primeira hora do seu processo, ou de antes da primeira hora se se considerar início do processo o primeiro contacto com o magistrado à ordem de quem são detidos, à privação de liberdade, não para cumprimento de uma pena judicial que só foi decretada depois de correr um processo nos termos exigidos pela lei e pelos princípios do estado de direito, nem sequer com uma medida de prisão preventiva decretada de acordo com as exigências legais para a sua aplicação, que de facto são nenhumas, mas adiante, mas por um mero acto administrativo para os manter disponíveis para quando o magistrado tiver preparação, ou disponibilidade, ou vontade para os receber.
Uma praxe que denota que, na sua hierarquia de valores, ou por natureza, ou por formação profissional, ou até por deformação profissional, estes magistrados colocam a liberdade (dos arguidos) atrás da conveniência administrativa (dos tribunais) ou até da (sua própria) conveniência pessoal. Além de parecerem pouco esforçados a tentar montar uma operação logística, que raramente será tarefa impossível, que garanta a audição dos arguidos sem os ter feito antes passar pela prisão.
Uma praxe violenta para quem, ao contrário deles, coloca a liberdade acima dos valores usados para fundamentar estas privações de liberdade pré-penais e até pré-processuais, para não falar de quem é forçado a passar a sua primeira noite, ou série de noites, na prisão, que, vista de fora, não parece uma coisa muito diferente de ser sequestrado por bandidos.
Mas, como eu não sou comunista, nem sindicalista, nem judeu, fico aqui bem caladinho. Desta vez calhou aos Comandos. Mas eu também não sou Comando. Oxalá não me calhe um dia a mim.
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