A história conta-se em poucas palavras. Na Comissão de Agricultura e Mar (CAM) da Assembleia da República o PSD e o PCP tinham chegado a acordo sobre o apoio do primeiro a uma proposta do segundo, suficiente para garantir a sua aprovação, para conceder aos proprietários cujos terrenos fossem integrados em faixas de gestão de combustível, e por isso sujeitos a operações de manutenção acrescidas ou a restrições na sua utilização, uma compensação. O presidente do PSD ordenou ao grupo parlamentar permitir o chumbo da proposta pelo PS, abstendo-se. E o grupo parlamentar seguiu as ordens do chefe e a proposta foi rejeitada com os votos contra do PS que reflectiu a posição contra do Governo.
Como sublinhou hoje o Henrique Pereira dos Santos, o PCP defendeu a propriedade privada através de uma compensação justa aos proprietários cujos terrenos sejam condicionados no seu uso pelo interesse colectivo, e os outros partidos deixaram-na cair, aceitando a opção do governo por impôr aos proprietários os custos deste condicionamento.
Chegados aqui há que fazer uma primeira observação, até para se perceber a razão para uma aparentemente inesperada conjugação de posições entre o PCP e o PSD. O PCP e o PSD são, e digo isto sem nenhum estudo sociológico que o comprove mas convencido que não é uma asneira, os dois partidos mais próximos daquilo a que se chama o país real. O PCP com a sua implantação tradicional entre o operariado e o campesinato, tão nuclear que faz de meros empregados de escritório intelectuais na classificação que o partido usa para os seus próprios militantes, e o PSD com a sua implantação tradicional entre pequenos agricultores, pequenos industriais e pequenos prestadores de serviços, a classe esmagadora no tecido económico português dos que não são assalariados nem funcionários públicos e todos os dias têm que lutar pela vida. O que significa que, para além das diferenças ideológicas que nem vale a pena enumerar, são partidos que quando se fala de imposição de obrigações e limitação da liberdade de utilização do seu património a pequenos proprietários sabem exactamente do que se fala, de quem atinge, e das consequências, conhecimento do terreno que não é óbvio em partidos de quadros, de funcionários, de activistas ou de cientistas sociais.
E, portanto, o PCP e os membros do PSD na CAM tinham acordado que os proprietários deviam ser compensados pela sua perda de liberdade na utilização do seu património para servir o interesse público, e o Rui Rio deu ordem ao grupo parlamentar do PSD para deixar cair o compromisso. Com que ganhos políticos que justifiquem o prejuízo político potencial de negar aos proprietários qualquer contrapartida por se verem impedidos de dar aos seus terrenos o uso que entendam, desse modo associando-se ao governo socialista no desrespeito pela propriedade privada, não explicou.
O que me suscita uma interrogação habitual. Quem devem representar os deputados: os eleitores que os elegeram, ou a direcção do partido cujas listas integraram?
Formalmente os deputados representam os eleitores e são donos dos mandatos que recebem deles. Uma vez um deputado eleito para a Assembleia da República só pode ser removido por perda de mandato, e apenas em circunstâncias de gravidade bastante definidas na lei, ou por renúncia do próprio.
Na prática sabemos que podem estar sujeitos a fidelidades informais, nomeadamente em sistemas eleitorais como o nosso em que os deputados são eleitos em listas e não em candidaturas individuais. A escolha dos deputados é determinada em grande parte pela direcção do partido quando os coloca nas listas de candidatos em lugares de eleição garantida, de risco ou impossível, pelo que pode ser possível terem assumido compromissos prévios com a direcção do partido antes de serem colocados nas listas. O que não altera em nada o anterior, porque qualquer compromisso desta natureza não pode ter força de lei nem lhes pode ser imposto contra a sua vontade, mas pode ter o valor que tem um acordo de cavalheiros.
Com quem não assumiram garantidamente compromissos antes de ser eleitos é com futuras direcções do partido em cujas listas se candidataram e foram eleitos. Pelo que não é impossível haver alguma diferença de objectivos, de estratégias e de posições entre um grupo parlamentar de um partido e a sua direcção quando a direcção mudou depois das últimas eleições. Diferença que, em função da capacidade de liderança da nova direcção e da relação que desenvolver com o grupo parlamentar em funções pode ser facilmente ultrapassada, e costuma ser facilmente ultrapassada com o grupo parlamentar a alinhar as suas posições com as da direcção, ou radicalizada, com o grupo parlamentar a ser forçado a escolher entre a sua própria orientação política e as ordens da direcção do partido.
De modo que, bem ou mal, os deputados do PSD que estão na Assembleia da República representam os eleitores que os elegeram, e representam-me tanto a mim, que sou filiado no partido e dirigente local, como a minha vizinha do 2º andar, que não é filiada mas votou no PSD tal como eu, como o presidente Rui Rio, que acredito que também tenha votado no PSD como eu e ela.
O que significa que quando, depois de tomarem uma posição no parlamento em minha representação, que os elegi, os meus representantes a alteram por pressão da direcção do partido, prescindiram de me representar a mim para a representar a ela.
O risco que corre o partido com a desautorização pública do grupo parlamentar é o de alienar os votos dos eleitores que se sentiam representados por ele mas não se sentem representados por quem os desautoriza.
É o de se dirigir para um pântano, e às cegas.
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