Desde que na legislatura anterior as contribuições dos funcionários públicos para a ADSE passaram de 1,5% para 3,5% dos salários a ADSE passou de sub-sistema de saúde reservado a privilegiados parcialmente financiado pelos contribuintes a seguro de saúde integralmente suportado pelas contribuições dos utentes.
Continuou no entanto a ser um instituto público gerido pelo governo e, como tudo o que é gerido pelos governos, a acumular as atribuições que lhe são atribuídas por lei com a condição de instrumento das políticas do governo que está.
Na saúde o governo que está é assumidamente de esquerda, e não há nada que o comprova melhor do que a pergunta retórica feita pela ministra da saúde Marta Temido aos jornalistas quando a questionaram, na apresentação da proposta da nova Lei de Bases da Saúde, se desvirtuava pela esquerda a proposta elaborada pela Comissão da Revisão da Lei de Bases da Saúde presidida pela antiga ministra socialista, anterior presidente do PS e candidata presidencial não apoiada pela direcção actual do PS, Maria de Belém Roseira, "Então mas este não é um Governo de Esquerda?". É.
E o que é uma política de esquerda para a Saúde? É uma política que garanta a todos os cidadãos, mesmo aos que não têm meios para os suportar, cuidados de saúde adequados, dignos e humanos? Não, isto pode ser o enunciado de uma política de Saúde de alguém que se considera de esquerda como eu por conter o termo definidor "...garanta a todos os cidadãos, mesmo aos que não têm meios para os suportar...", mas não é uma política de esquerda. Política de esquerda para a Saúde é evoluir no sentido da ambição de um Sistema Nacional de Saúde exclusivamente público, em que qualquer Euro pago a prestadores privados é um Euro desviado dos prestadores públicos para os privados e, portanto, desperdiçado, mesmo que esse Euro consiga assegurar a prestação pelos privados de serviços que em prestadores públicos custaria mais do que custou nos privados.
E porque ambiciona a esquerda um SNS exclusivamente público que pode sair, e sai sempre, mais ineficaz e mais caro, e presta cuidados de saúde piores do que um SNS que garanta o acesso universal a cuidados de saúde prestados por quem é mais capaz de os prestar com a qualidade requerida ao custo mais baixo, mesmo que sejam prestadores privados? Seja porque as raízes ideológicas de onde brotam lhes dizem que tudo o que é privado é perverso e ganancioso e só quer obter lucros sem se preocupar com a saúde dos doentes, seja porque os sindicatos preferem negociar com patrões públicos a quem o dinheiro não sai do bolso e que são sempre impedidos de falir pela boa obra dos contribuintes, seja pelo raio que os parta, ou pela puta que os pariu como diria qualquer minhoto de cepa, a esquerda está-se nas tintas para os doentes, que trata como meras vítimas colaterais na batalha contra os privados que trava no âmbito mais geral da guerra ao capitalismo.
Nesta guerra contra os privados a ADSE é um irritante, como gosta de dizer o primeiro-ministro. Porque os funcionários públicos se quotizam e pagam contribuições do bolso deles apenas para terem a possibilidade de acesso a prestadores de saúde privados, porque aos do SNS já eles têm acesso tendencialmente gratuito como todos os cidadãos. Enquanto houver ADSE há centenas de milhares de utentes dispostos a pagar para terem acesso a cuidados de saúde privados, mesmo depois de financiarem com os seus impostos o SNS público.
E para os impedir de frequentar os prestadores de saúde privados e com essa preferência manter um negócio de saúde privado só há uma de duas alternativas: melhorar o SNS público tanto que os utentes da ADSE criem a percepção que não vale a pena pagar mais para terem o acesso aos prestadores privados; ou rasgar a ligação entre a ADSE e os prestadores privados de saúde.
A primeira alternativa seria uma solução óptima, não só porque desoneraria os funcionários públicos das contribuições actuais para a ADSE de 3,5% do salário por passarem a ter acesso a cuidados de saúde de qualidade satisfatória sem qualquer custo adicional, mas porque os cuidados de qualidade satisfatória estariam acessíveis a qualquer cidadão, mesmo aos que não têm meios para pagar um seguro de saúde nem são funcionários públicos com direito à ADSE. Mas não existe no domínio das possibilidades, porque a tendência tem sido justamente de degradação dos níveis de serviço do SNS por falta de capacidade da gestão pública de os manter, quanto mais melhorar.
A segunda é a única que resta para implementar uma verdadeira política de esquerda na Saúde.
Para a levar a cabo o governo alterou o modelo de gestão da ADSE, agora integralmente financiada pelas contribuições dos beneficiários, de modo a integrar nos seus orgãos de gestão representantes dos beneficiários, o que tem todo o sentido. E quem se candidatou a representar os beneficiários da ADSE nos seus orgão de gestão? Como é óbvio, quem estava suficientemente organizado para preparar uma candidatura, os sindicatos e as associações de aposentados. Numa eleição onde participaram 2,2% dos beneficiários da ADSE foram eleitos representantes dos beneficiários comunistas e socialistas para os diversos orgãos de gestão, desacando-se o economista comunista Eugénio Rosa no Conselho Directivo.
Assegurando a gestão por representantes do governo, dos sindicatos e das associações de aposentados, todos movidos pelo mesmo objectivo ideológico de fazer evoluir o SNS para um sistema exclusivamente público, a ADSE te-se dedicado a impor aos prestadores privados condições tão leoninas que passem o limite do inaceitável, e já estão a obter os resultados desejados, com a ameaça de três grupos privados, Luz, José de Mello Saúde e Hospitais Particulares do Algarve, de rescindirem as convenções que mantêm com a instituição. Neste processo de guerra aos privados tem participado a esquerda parlamentar que já convocou a ministra, a direcção da ADSE e os representantes dos utentes, ou seja a esquerda extra-parlamentar, para irem esclarecer o parlamento sobre a "chantagem dos hospitais privados".
Entretanto, o grupo José de Mello Saúde formalizou o anúncio da suspensão da convenção com a ADSE nos hospitais CUF a partir do dia 12 de Abril, mantendo a ameaça de a rescindir definitivamente se a ADSE mantiver a sua posição negocial actual de não negociar. A suspensão da convenção, nos termos da qual os utentes apenas pagam taxas moderadoras quando recebem cuidados de saúde do prestador privado que depois factura a instituição para receber o resto do preço da prestação convencionado, obriga os utentes a recorrerem ao sistema de reembolso, em que pagam ao prestador o preço integral da prestação e depois pedem o reembolso parcial à instituição. Como exemplo para perceber a diferença para os utentes, numa cirurgia sem grande complexidade mas com anestesia geral e um dia de internamento isto significa deixarem de pagar algumas centenas de euros de taxa moderadora para passarem a adiantar alguns milhares de euros enquanto não recebem o reembolso parcial da intervenção. Se tiverem disponibilidade para adiantar esses milhares de euros. Se não tiverem, podem-se sempre fazer tratar no SNS.
Os funcionários públicos estão portanto de parabéns pelo governo que alterou o modelo de gestão da ADSE para incluir representates dos utentes e pelos comunistas e socialistas que estão lá a representá-los em nome dos sindicatos porque mais ninguém estava organizado para se candidatar. Vão ficar sem convenção nos Hospitais CUF e outros se seguirão. Daqui por uns tempos, quando quiserem uma consulta de especialidade irão às cinco da manhã para as filas do Centro de Saúde da sua área de residência para conseguirem uma consulta do médico de família que lhes passará uma guia para marcarem a consulta de especialidade num hospital e, com sorte, em dois ou três anos serão finalmente consultados pelo especialista, se ainda estiverem vivos. Isto por apenas um desconto adicional de 3,5% no salário.
Votem nos socialistas, deixem-nos continuar a sua revolução contra o sector privado e sejam carne para canhão.
PS: O Grupo Luz Saúde também anunciou o fim da convenção com a ADSE a partir de 15 de Abril. E a ADSE já anunciou que conta com o sector social, os hospitais das Misericórdias, para compensar o fim das convenções com os privados. Deixem-se estar quietos, deixem, deixem-nos continuar a fazer a revolução socialista, e o Senhor que tenha misericórdia de vós.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais