Simpatizo com Rio. O homem é teimoso, despreza os jornalistas, está-se nas tintas para o futebol, não tem paciência para sensibilidades, embirra com magistrados e arrumadores de automóveis, é a favor de superavits, borrifa-se para os barões e diz ao que vem em linguagem chã.
A que vem ele então? Ao que se sabe, vem a favor da regionalização (agora crismada de descentralização), da reforma do Estado e da Justiça, da chupice de fundos europeus, e doutras matérias não especificadas em que sem um acordo dentro do Centrão as coisas emperram.
Temos a burra nas couves, porquanto:
A regionalização foi amplamente derrotada num referendo em 1998. Transferir competências para as regiões e os municípios, sem um novo referendo, é uma traição democrática, por muito que se ache que o que a Constituição diz na matéria, e um acordo de maioria qualificada entre partidos, é o suficiente para fazer de conta que o referendo não existiu. É provável que Rio, que é ideologicamente um básico (digo-o sem acinte), não se impressione excessivamente com este argumento, por achar que as formas contam pouco, e a realidade muito. Engano dele: a democracia vive de formas, e ignorá-las a benefício do que se considera um bem maior não pode senão, a prazo, dar maus resultados. Hoje acha-se que o resultado de um referendo pode ser ultrapassado por estar obsoleto; e amanhã um referendo sobre outra coisa qualquer será destratado pelo eleitorado por constatar que os partidos, quando lhes der jeito, o ignoram.
Acresce que o assunto de modo nenhum é pacífico. Rio acha que os autarcas, por estarem mais próximos das populações, administram melhor que a parasitagem lisboeta, e serão com mais facilidade fiscalizados. Eu acho que sem impostos locais a competição entre regiões e municípios se transformará rapidamente num campeonato de despesismo, e que o PS jamais concordará com competição fiscal entre municípios, quando nem sequer a aceita dentro da EU entre Estados.
Por outras palavras: o país suporta uma quantidade imensa de boys, e de serviços inúteis ou daninhos, em Lisboa; a regionalização que o PS, e a esquerda em geral, subscreverão, é a multiplicação de terreiros do Paço pelas regiões, e da gestão demagógica do homúnculo Medina, pelos municípios. Rio quer isto?
A Justiça precisa de ser reformada. Já precisa e tem vindo a ser reformada há décadas. Rio, aparentemente, quer rapidez, previsibilidade das decisões, e não se sabe bem o quê da magistratura do ministério público; o PS quer rapidez, decisões que não ofendam os valores do politicamente correcto que varre o mundo bem-pensante, e que a magistratura do ministério público respeite a inimputabilidade dos políticos em geral, e dos do PS em particular.
As sucessivas reformas da Justiça tiveram sempre, porque tinham que ter, a mão do PS, e não há um magistrado, um sindicalista (estas duas categorias, infelizmente, são acumuláveis), um político, um funcionário, um jornalista, um advogado, um comentador, um cidadão, que ache que a Justiça está melhor. Aparentemente, Rio confia que uma demente voluntariosa, ex-bastonária da Ordem dos Advogados, tem ideias para a reforma da Justiça que merecem consideração, e que da conjugação dessas ignotas ideias com as que podem brotar das coudelarias jurídicas do PS pode nascer uma reforma com pernas para andar. A sério?
Da reforma do Estado nem é bom falar. Que qualquer reforma, se se quiser ir pelo caminho da séria diminuição da dívida pública que Rio deseja, tem que meter bedelho na Educação, no Serviço Nacional de Saúde, nos serviços públicos inúteis ou daninhos, nos direitos adquiridos, no poder dos sindicatos, na revogação de legislação intrusiva da liberdade económica, e no despedimento de funcionários.
Rio parece não compreender que o Estado não se reforma porque o Estado é o PS, mesmo quando o PS não está, incompreensivelmente, no Poder; que o partido maioritário é o dos dependentes, directa ou indirectamente, do Estado; e que a geringonça criou uma realidade nova, que é esta: podemos sair do marasmo se e quando a chamada direita esmagar a geringonça; não podemos, se fizermos acordos com parte dela.
E quanto aos fundos europeus? Não parece difícil chegar a um consenso: os lugares de poder serão distribuídos entre PS e PSD; seja com novos impostos europeus, seja com outro processo qualquer, a Europa será espremida até onde der; é desta que os fundos retirarão Portugal da cauda da Europa, é desta que Portugal se aproximará do pelotão da frente, é desta que Portugal convergirá aceleradamente, e é desta que, como de costume, os fundos servirão para financiar investimento público não reprodutivo, formação profissional de gente que finge que ensina inutilidades a gente que finge que as aprende, e empresas que farão concorrência desleal às que ficaram a ver navios, e cujo destino nunca saberemos qual será porque todo o processo será inteiramente opaco.
No fundo, Rio apenas substituiu Passos porque este não adivinhou a retoma na Europa e no mundo, nem o crescimento explosivo do turismo, nem a falsificação dos orçamentos do Estado durante a sua execução, nem a benevolência das instituições europeias aflitas para inventar sucessos, nem uma senhora Merkel a lutar pela sobrevivência, e por isso descredibilizou-se prevendo a chegada de um diabo que não veio.
Passos suicidou-se temporariamente por causa do seu engano insustentável, e com o suicídio quis preservar o PSD e a direita. O papel de Rio deveria ser fingir que é muito diferente, sendo no essencial igual.
Rio saberá disto? Se sim, o estado de graça com o PS durará pouco; se não, é um dirigente a prazo.
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