O Brasil tem mais de 11 mil médicos cubanos que, como é habitual, não são contratados individualmente mas através de um protocolo celebrado com o governo cubano, o programa "Mais Médicos" , e com direitos laborais e sociais limitados pelo seu patrão, o governo cubano que, entre outras condições contratuais, lhes paga um salário várias vezes inferior aos honorários que recebe do governo brasileiro pelo serviço que eles prestam e lhes limita, nomeadamente, a liberdade de movimentos, e a das suas famílias. É a gestão socialista dos recursos humanos, assunto que considero fascinante por vários motivos e constituiu mesmo o tema do primeiro texto que publiquei neste blogue.
O programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo brasileiro Dilma em 2013 acompanhado de uma intensa campanha de propaganda mediática a título de fazer chegar a assistência médica a populações desfavorecidas em regiões remotas para onde era difícil recrutar médicos brasileiros, incluindo reportagens apoteóticas à chegada do contingente de médicos cubanos a cada aeroporto brasileiro. E alguma utilidade tem para além do fogo-de-vista mediático, por ter feito chegar médicos a zonas efectivamente desprovidas deles.
É aliás semelhante a um protocolo celebrado com muito menos circo mediático entre o governo português Sócrates e o governo cubano em 2009 para acolher médicos cubanos em Portugal, também para colocar em zonas onde de facto era e é difícil recrutar médicos portugueses, que actualmente abrange umas dezenas de médicos, perto de cem. E também sujeitos a condições salariais e sociais típicas de um regime socialista, recebendo de salário poucas centenas de euros dos mais de quatro mil que o governo cubano cobra por cada um, para além das despesas de alojamento suportadas pelas autarquias, e sendo cada grupo de quatro médicos coordenado por um chefe de missão cuja função primordial é a vigilância dos restantes membros. A sua presença em Portugal foi essencialmente contestada pela Ordem dos Médicos que, numa reacção corporativa típica e expectável, alegava que eles estavam sujeitos a um regime de quase-escravatura, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações corporativas populistas, e que se pagasse a médicos portugueses quatro mil euros por mês o governo conseguiria recrutá-los para essas regiões, a verdadeira motivação para a sua reacção.
Um dos sinais distintivos dos populismos é o recurso sistemático a medidas simbólicas, mais motivadas pela mensagem que fazem passar, e quanto mais facilmente passa a mensagem mais eficazes são, do que pela eficácia social, que no limite até pode ser contrária à intenção declarada. Foi para isso, para dar um exemplo, que o BE apresentou logo no primeiro dia desta legislatura em que a esquerda recuperou a maioria parlamentar que não tinha desde 2011 a proposta de eliminar a taxa moderadora para o aborto, cujo efeito prático é nulo, por a taxa ter nessa altura um valor meramente simbólico de 7,50€ e apenas abranger a minoria de cidadãos com rendimentos que não os isentam de taxas moderadoras, mas que serviu para o BE sinalizar que agora quem manda aqui somos nós.
No Brasil o governo mudou e o novo presidente também tem a preocupação de recorrer a medidas de forte carga simbólica, no caso dele anti-comunista, para mostrar que o tempo do petismo acabou e que quem manda ali é ele.
E uma das medidas que elegeu para exibir este simbolismo foi o programa "Mais Médicos". Que, aliás, é uma escolha feliz no domínio da carga simbólica, por ser uma medida do governo Dilma e por envolver o regime cubano.
Além de manifestar, ou de dar voz a manifestações de, dúvidas àcerca das qualificações profissionais dos médicos cubanos, que no Brasil, ao contrário de Portugal, não são obrigados a fazer um exame na Ordem dos Médicos para ficarem habilitados para o exercício da Medicina, também denunciou as condições laborais a que estão sujeitos pelo governo cubano. E a pretexto de garantir a qualidade do serviço prestado por eles e de exigir para eles direitos laborais e sociais que não têm, o presidente Bolsonaro anunciou que vai reformular o programa para passar a exigir que os médicos cubanos façam um exame para poderem exercer Medicina no Brasil e vejam os seus direitos laborais e sociais ampliados, recebendo por inteiro o salário pago pelo governo brasileiro e tendo liberdade para trazerem as suas famílias para o Brasil. Nada de radicalmente diferente do que foi reivindicado em Portugal pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, e certamente com a mesma preocupação pelos direitos deles e pelo bem-estar dos seus utentes.
Às ameaças anunciadas de imposição de alterações ao protocolo o governo cubano respondeu declarando-as inaceitáveis e ameaçando por sua vez rescindi-lo e fazer regressar os médicos a Cuba.
E à ameaça do governo cubano de fazer regressar os médicos a Cuba o presidente Bolsonaro respondeu com a promessa de acolher como refugiados todos os que queiram ficar no Brasil.
E é nisto que se está.
Sendo que, se desta circunstância resultar uma grande parte dos médicos cubanos aceitar o acolhimento no Brasil como refugiado, não haverá uma disrupção no serviço que prestam às populações em áreas carenciadas de assistência médica e o presidente Bolsonaro terá uma vitória política de monta, nomeadamente no domínio simbólico da luta contra o comunismo no continente americano, sem penalizar os utentes.
Se a maioria dos médicos obedecer à ordem do seu governo de regressar a Cuba, por motivos que só cada um poderá conhecer mas pode haver vários plausíveis, nomeadamente o bem-estar e a segurança das suas famílias que ficam em Cuba, poderá haver uma disrupção na prestação dos serviços de saúde que poderá ser dramática para as populações servidas por eles, mas o presidente terá uma saída airosa alegando, como já alegou, que foi o governo cubano, comunista, a rescindir unilateralmente o protocolo, ou seja, que abandonou estas populações.
Para o presidente Bolsonaro poderá ser uma grande vitória ou uma pequena vitória. Para as populações servidas pelos médicos cubanos poderá ser um pequeno contratempo ou um grande drama.
Tem todos os ingredientes de uma roleta russa.
De Rogerio Alves a 19 de Novembro de 2018 às 14:45
Post muito interessante e que apresenta uma perspectiva bastante abrangente e imparcial do problema. Até agora não li melhor.
As frases finais dão conta dos prováveis resultados face às opções - para o Bolsonaro e para as populações brasileiras em causa.
Relativamente aos médicos cubanos, participantes na problemática quase involutariamente, não aprofunda tanto esse tema, contudo.
Os médicos cubanos, como todos os cubanos, sejam desportistas ou astronautas no estrangeiro, ou os que nunca sairam de Cuba, vivem aprisionados pelo regime comunista.
Os que estão colocados no Brasil, ou em Portugal, candidatam-se a estas missões onde ganham, embora muito menos do que o governo cubano recebe pelos serviços deles, e também menos do que ganham os médicos locais, substancialmente mais do que ganham no emprego de origem no SNS cubano. Estão lá e cá voluntariamente, provavelmente porque consideram que lá ou cá estão melhor do que em Cuba. E como estão por vontade própria dificilmente se poderão considerar "escravos", mesmo que a retórica da escravatura seja apelativa, tanto para a esquerda radical como para a direita radical.
Dos mais de 11 mil parece que há 150 que se sabe que pretendem ficar no Brasil. Poderão ser mais, mas não há nenhuma informação a sustentá-lo. Para acudir à pretensão destes não seria necessário rescindir o programa, bastaria naturalizá-los brasileiros ou acolhê-los como refugiados e empregá-los directamente no SNS brasileiro.
Com a rescisão do programa, ou a estratégia negocial ou comunicacional que conduz inapelavelmente à rescisão, estes 150 serão "libertados". Os outros 11 mil verão terminar antecipadamente a oportunidade de ganhar mais algum dinheiro durante a missão, e serão prejudicados.
Pelo que esta posição do presidente brasileiro não defende os interesses destes médicos cubanos, ataca-os. Mas, fora do plano da propaganda do novo governo brasileiro, o objectivo não era mesmo defendê-los, era tomar uma medida simbólica contra o regime cubano para se afirmar como um campeão do anti-comunismo na América Latina. Nesta luta os médicos cubanos são apenas a carne para canhão.
Suponha que nunca tinha ouvido falar em ideologia política e se depara com as decisões do Bolsanaro: os médico cubanos têm de fazer um exame de aferição de conhecimentos tal como qualquer médico brasileiro para garantir um bom nivel de tratamento dos doentes (parece justo), os médicos cubanos têm o direito ao seu salário por inteiro, já que trabalham e vivem no Brasil, portanto têm os mesmos direitos de qualquer outro cidadão (ok, numa democracia parece certo), os médicos cubanos, sendo estrangeiros, têm direito de trazer as suas familias (mais do que países avançados como os EUA permitiriam, ótimo). Agora ponha o filtro vermelho nos olhos: ah este sacana do Bolsonaro a fazer tudo pra lixar os comunistas!!
Uma última pergunta: Quando compra coisas feitas por crianças na China também diz a si mesmo que as está a ajudar porque pelo menos assim têm algum dinheiro ou escolhe não compactuar e não perpetuar este comportamento e não compra?
A globalização, que permite a grandes empresas globais explorarem trabalhadores no extremo-oriente em condições inaceitáveis no ocidente, tirou mais pessoas da miséria absoluta e do risco de morrer de fome do que todas as boas intenções da história da humanidade. Raramente as politicas determinadas por razões morais são mais eficazes que o mercado para contribuir para essas razões, e com a globalização aconteceu exactamente isso.
Quanto ao governo brasileiro, as políticas valem pelas suas consequências, e as consequências de uma política são a diferença entre a situação que ela cria e a situação prévia, não são a diferença entre a situação que ela cria e uma situação ideal. Acabar com este programa para os utentes dos médicos significa ficarem sem cuidados médicos, a não ser que os médicos sejam substituídos prontamente. Para os médicos cubanos que estão no Brasil porque querem por ganharem substancialmente mais do que ganham em Cuba significa perder essa oportunidade profissional. Para os 150 médicos cubanos que colocaram processos em tribunal para ficarem no Brasil sem a tutela do governo cubano significa a libertação. Que podia ser feita sem terminar o programa, simplesmente naturalizando-os ou acolhendo-os como refugiados. O balanço desta decisão política do governo brasileiro é portanto vinte milhões de utentes ficarem sem médico, 11 mil médicos sem a saída profissional que lhes permitia ganhar melhor, e 150 médicos libertados do comunismo.
Convido-o a pesar estes ganhos e perdas e avaliar por si mesmo se a medida tem um balanço positivo ou negativo.
Há um detalhe crucial, que não foi dito aqui: os cubanos que foram trazidos cá para o Brasil não são médicos, são a versão cubana dos feldsher russos.
São técnicos em medicina, com formação bastante limitada, colocados a fazer serviços de médicos. Resultado: já houve prescrições engraçadíssimas, muitas absurdas. Já houve mortes por prescrições inadequadas e sequelas graves.
Mas a imprensa, vermelha e comprada, nada divulga - tudo pela revolução!
O presidente Bolsonaro tomou a decisão correta: rescindir o contrato com Cuba; quem quiser ficar e trabalhar, tem que revalidar o diploma.
De António Sérgio a 19 de Novembro de 2018 às 15:11
Roleta Russa talvez seja excessivo, vejamos: dados apontam para cercad de 452 mil médicos no país, um nº em forte crescimento. Estima-se que em 2020 sejam meio milhão. Médicos cubanos são cerca de 8.300, ou cerca de 1.8% do total. Fontes diversas apontam o problema: desigualdade na distribuição de recursos e falta de condições de trabalho e locais para os médicos nacionais.
Ou seja, estruturalmente o que falta não são médicos, são condições de trabalho dignas. Sem isso, os medicos cubanos eram só uma especie de aspirina contra uma pneumonia.
https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/numero-de-medicos-no-pais-cresce-mais-de-600-mas-eles-se-concentram-nas-capitais-22507606
O número que tenho visto noticiado, não sei com que fidedignidade, mas resultando num rácio de utentes por médico não muito diferente do que há em Portugal, é que estes médicos asseguram os cuidados de saúde a mais de vinte milhões de utentes. Sabendo que pouco mais de 1% têm intenção declarada de ficar no Brasil, haverá mais de vinte milhões de utentes que ficarão sem cuidados médicos se os restantes regressarem a Cuba de um dia para o outro.
De Antobio Sergio a 19 de Novembro de 2018 às 15:59
Portugal tem, 2º a Pordata, 4,79 medicos/1000hab. Se fosse essa a distriubuição no Brasil, considerando a saida de todos os medicos cubanos, 8332, a medida teria impacto em 1.7M hab, numa população de 210M. Considerando o pior rácio apresentado no art. da globo em anexo, 1.16m/1000H correspondente ao Norte do país, a medida afectaria 7.1M Habitantes. Demasiadas pessoas, quando se pensa para além dos nºs. Mas muito, muito aquém dos nºs apresentados por um Publico, 28 Milhões, sem citar fontes. Insisto, sem nada saber do assunto para além de analisar os dados que li, estamos perante um problema, certo, mas que vai muito além dos médicos cubanos, que aliás, não são os unicos no programa Mais Medicos.
Notícias diferentes apresentam números diferentes, umas falam de 24 milhões de utentes, outras de 28 milhões, umas de 11.420 médicos, outras de 8.832. O número certo de utentes e de médicos será conhecido pelo governo brasileiro e não adianta tentarmos adivinhar qual é a melhor aproximação. Mas no SNS português os médicos de família têm 1.600 utentes, e com um rácio semelhante 11.400 médicos cubanos no Brasil teriam 18,2 milhões de utentes. Tudo junto, as estimativas da ordem dos 20 milhões de utentes não parecem irrealistas.
De Manuel Guerreiro a 19 de Novembro de 2018 às 18:39
Óptimo post. Há umas coisas que me deixam inquieto.
Porquê o "fabricar" tantos médicos em Cuba?
Será a única matéria que teêm para exportar?
Que benefícios tem o governo cubano dessa exportação?
Que qualificações teêm esses médicos?
Porque razão não aceitam fazer exames para testar os seus conhecimentos face ao ensino do Brasil?
Não lhe sei responder às perguntas, com a exepção da última. Não são eles que não aceitam fazer o exame, é o contrato entre o governo brasileiro e o governo cubano que não prevê nenhum exame para eles exercerem medicina no Brasil. Para exercer em Portugal têm que fazer um exame à OM.
De Anónimo a 19 de Novembro de 2018 às 21:04
Agora está na moda falarmos dos assuntos internos dos outros países. Portugal deve ser muito pobre e não temos assuntos nossos para falarmos temos de importar assuntos dos outros.
Está na moda falar do que não tem interesse!
Ou será isto mais uma manobra de diversão!
Está igualmente na moda fazer comentários anónimos a sugerir sobre que assuntos se deve e não se deve falar. Mas também está na moda cada um falar do que lhe apetece sem ser condicionado pelas modas. A melhor sugestão que lhe posso fazer é que evite falar de assuntos internos de outros países se essa moda o/a incomoda. E que passe adiante quando se depara com outros que aderem a ela.
bom não sou a favor de ditaduras mas acredito que o governo de cuba pretenda formar mais médicos e precise destas receitas dos médicos para o efeito-----relativamente ao governo do falsa facada apenas esta a cumprir o prometido pretende curar as pessoas com mais armas ora logo ai médicos para quê precisam se agências funerárias e coveiros e eu que nunca na vida fui comunista estou a ver a diferença uns contratam médicos vão para a cadeia outros só querem armas estão livres afinal ser bom esta em crise
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