O homem defendia que um proprietário pode vender uma empresa com garantias especiais, em matéria de despedimento, para certos trabalhadores mais amigos, ou menos inimigos, do patrão. Dizia este absurdo e, como se o asneirol não fosse suficiente, esclarecia que "o tema é jurídico e tem a ver com isto [os sindicatos que se sentaram e os que não se sentaram], e não de natureza constitucional. Está obviamente garantida a igualdade de direitos para todos, mas os acordos são para cumprir e o que existe é com estes nove sindicatos".
Temos portanto questões jurídicas, em matéria do direito à igualdade perante a Lei, em relação às quais a Constituição não se pode invocar, e igualdades com a característica singular de o não serem.
O assunto não merece discussão e o governante autor da argolada já entretanto deu o dito por não dito, sem ter chegado a fazer passar a ideia de que foi mal interpretado, habitual nestes assados, nem confessar candidamente que o assessor jurídico estava de baixa, razão pela qual supôs que as suas abundantes luzes em assuntos de finanças forneciam claridade bastante para o ajudar a navegar em questões jurídicas. Um equívoco em que não poucos economistas se deixam enredar, mas ei, não é verdade que muito causídico ilustre não sabe somar dois e dois, e mesmo assim opina sobre questões de gestão? Uma mão lavra a outra, e se entrássemos no regime de condenar alguém por causa de deslizes o país entraria em autogestão, por falta de responsáveis, e a Oposição cometeria suicídio colectivo, como as baleias.
Que fique claro: eu acho que o direito de despedir deveria ser muito mais amplo do que a lei permite, e tenho tanto respeito intelectual pela nossa Constituição como o que reservo para a congénere cubana. Mas nem sequer é preciso uma Constituição escrita para saber que a circunstância de pertencer ao sindicato A ou B, ou sindicato nenhum, não é fundamento para qualquer tratamento discriminatório, num Estado de Direito.
Foi um incidente cómico que não terá consequências, fora o natural escarcéu que por aí se faz.
O que é interessante perguntar é por que carga de água o Governo achou útil fazer um acordo com os sindicatos. A privatização estava, e está, decidida; a requisição civil fez-se, e bem, e os sindicatos amoucharam, como lhes competia. Porquê então o acordo?
A declaração do ministro ("a TAP saiu muito mais forte depois deste acordo") faz sorrir, porque ele é uma limitação aos poderes da futura administração e ainda está para aparecer uma empresa que fique mais forte pelo efeito de se lhe amarrarem as mãos face à concorrência; e Sérgio Monteiro, ao considerar que o acordo assinado é a prova de que venceu "o sindicalismo moderno" e perdeu o "radicalismo ideológico" resolveu evidentemente fazer das tripas coração: o sindicalismo que proíbe despedimentos, quando sejam necessários para a sobrevivência da empresa, não é antigo nem moderno - ou é comunista ou burro.
Não compro a teoria de que o que o Governo quer, por degradar ainda mais o valor da empresa, ou é fazer baixar o preço da privatização ou que não haja candidatos e portanto a TAP seja uma batata podre a deixar em herança ao futuro governo - esse grau de maquiavelismo não casa com a ideia que tenho das pessoas envolvidas.
Ensaio por minha conta uma explicação:
Há em Portugal um grande respeito pelo consenso, que tem aliás consagração constitucional na existência da muito querida (por quem dela beneficia) concertação social, e que se traduz na obrigação de consultar os sindicatos e associações patronais para legislar sobre questões laborais (mesmo que a incidência seja remota), no enaltecimento acéfalo das virtudes do diálogo a propósito de tudo e de nada, no uso extensivo da língua de pau para não ofender ninguém (os comunistas não são designados como anti-democratas, que são, os dirigentes sindicais não são qualificados de carreiristas e parasitas, que muitos são, a muitos socialistas e sociais-democratas que aparecem no espaço público a defender a manutenção de organismos e empresas na esfera pública ninguém pergunta: o amigo está a defender o tacho dos seus amigos, não está? - e um longo etc.), e, finalmente e em resumo, no hábito deplorável de quase ninguém dizer ao que vem, com receio de ferir susceptibilidades.
Parece que o eleitorado gosta disto. Gostou que o PPD tivesse votado a favor da Constituição de 1976, com reserva mental, não obstante esse facto lhe ter diminuído a autoridade para a rever, quando, tendo ganho eleições, teve que negociar com o PS os necessários cortes do cabelo socialista; gostou que Mário Soares tivesse metido o socialismo na gaveta, num largo consenso, em nome da salvação do país falido, contrariando tudo o que prometera para ganhar eleições; gostou tanto de Guterres e do seu diálogo militante que lhe deu uma vitória baseada na eliminação da crispação, como então se dizia; aprecia ser aldrabado por políticos que garantem ir fazer o que toda a gente sabe que não farão; e gosta hoje, ao que parece, de Costa, da bonomia de Costa, das suas frases redondas prometendo tudo a todos, e do seu largo sorriso, que com frequência exibe para coroar as declarações sonoras e ocas.
O nosso estado de necessidade trouxe, em 2011, a gente que está. E esta, nem tendo chegado a fazer o que lhe era exigível, distinguiu-se por uma notável antipatia, dado que o consenso lhe estava vedado, por ser, como é sempre, apenas uma maneira engenhosa de deixar tudo na mesma - justamente o que a troica proibia.
Mas o ano é de eleições, e a troica já bazou. E portanto há que ser dialogante, e demonstrar um espírito aberto, moderno e tolerante - nada de radicalismos ideológicos, as pessoas demonstram em Portugal grande ponderação quando preenchem dois requisitos: estão ao Centro e não fazem contas.
Seja. Que se o prejuízo que este acordo vai fatalmente originar servir como ajuda para que Costa e a sua troupe de ineptos em estado de negação da realidade se mantenham ao largo do Poder - é barato.
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