Há um novo jornal digital, sobre economia, o ECO, e hoje dei-lhe uma vista de olhos. Estes jornais costumam ser uma grande abominação porque são veículos de eleição para o palavreado da tribo dos economistas, uma etnia que partilha com as outras, constituídas por pessoas normais, as mesmas simpatias e antipatias culturais, políticas e sociais, mas as embrulha em demonstrações pretensamente científicas redigidas num calão que se esforça por tornar incompreensível. Tudo sob o grande manto do ideal do crescimento: umas coisas aceleram-no, outras arrefecem-no e outras ainda, muito mazinhas, fazem-no negativo. Crescimento negativo é com efeito um dos grandes contributos doutrinários da ciência económica para a novilíngua, a gramática e a lógica revolucionárias, e não poucas vezes uma conquista das doutrinas de esquerda para o progresso dos povos.
Não noto grande diferença para o mix habitual: notícias das empresas, provavelmente encomendadas, repescagem de opiniões ou novidades de publicações estrangeiras, grande presença das personagens que povoam o poder do dia, e ocasionais artigos, entrevistas ou declarações de gente que, por autoridade académica, ou simples notoriedade, se alivia publicamente de seus pensamentos.
Ignoro se as coisas podem ser de outra maneira - talvez não - e decerto não desejo a nenhum órgão de comunicação social (nem sequer ao Avante, ao Jornal das Missões, a qualquer outra publicação confessional, ou até à Gazeta dos Escuteiros) nenhum mal.
Tropecei numas declarações de Artur Santos Silva e fui lendo em diagonal - o homem nunca na vida disse senão as banalidades palatáveis do tempo, hábito sem o qual não poderia ser, como é, uma rolha do regime. Mas parei no parágrafo em que declara: "Nos países do sul, devia haver 'uma alteração nas regras contabilísticas' de tal forma que 'o investimento público não fosse todo ao défice, mas sim as amortizações', defendeu. Este 'seria um grande estímulo' ao investimento, frisou".
Isto é uma afirmação sem ambages, não uma daquelas proclamações vagas sobre os destinos do país, da União Europeia ou do mundo, ou ainda quanto às tendências das artes plásticas na contemporaneidade ou as vantagens do empreendedorismo e do consenso.
Merece portanto análise e ponderação, não tanto pela suposta originalidade da ideia nem sequer por reflectir um ponto de vista que a quadrilha que nos governa subscreve (em matéria de opiniões políticas Artur sempre teve as que convêm para agradar ao Poder que está, ou ao que fareja que se lhe vai seguir) mas porque não é impossível que uma tal tese deletéria faça o seu caminho.
O investimento nas empresas conta para a dívida que o balanço traduz, se resultar de financiamento alheio, mas apenas numa parte (variável segundo a natureza do investimento, mas geralmente de um quinto por ano) para a conta de exploração. Isto é necessário para impedir que a empresa que investe apresente no primeiro ano do investimento prejuízos colossais, por se reconhecer que os frutos do investimento se projectam no futuro, por se admitir que o activo que o investimento proporcionou se esgota ao fim de um certo tempo, e ainda por razões fiscais (o Estado quer deixar às empresas os instrumentos para sobreviverem ao mesmo tempo que as sangra, do mesmo modo que ao servo da gleba se deixavam geralmente os meios da sua subsistência, quando não o servo, e a produção, se finariam).
É portanto na analogia com as empresas que se fundam estas teorias delirantes e perigosas. Sucede porém que as empresas (salvo as que vivem em monopólio ou oligopólio) não têm clientes cativos e, mesmo quando os têm, correm o risco de a evolução tecnológica, ou a inovação, ou a mudança de hábitos do consumidor, lhes estragarem o remanso. E portanto os gestores não fazem investimentos senão quando estão firmemente convencidos de que serão reprodutivos, na certeza de que, se se enganarem, serão os primeiros e maiores prejudicados.
Tais certezas, relativas embora, não estão presentes no decisor público, cujo perfil aliás raramente é o do empreendedor lúcido, do gestor experiente ou sequer do cidadão prudente no maneio do que lhe pertence.
O decisor público é um político e, não sendo impossível que tenha mérito no desempenho das funções para que o elegeram, nada garante que teria igual sucesso na gestão sequer de um minimercado; não precisa de ter receio sério das más decisões que tome em matéria de investimentos, porque as consequências só se verificarão quando já esteja noutras funções, e poderá sempre refugiar-se na alteração de circunstâncias, as quais quase sempre têm lugar; as decisões são normalmente colegiais, porque cada um dos envolvidos pode reclamar o sucesso para si, se houver, e diluir o insucesso por todos, no caso pouco provável de a opinião pública se lembrar de quem originou o desastre; e, finalmente, quem sofre as consequências não é quem decide - são aqueles em nome dos quais as decisões foram tomadas.
O que Artur quer, provavelmente, não é tanto que se invista. Se fosse isso, reclamaria condições favoráveis para o investimento privado florescer, que não estão presentes. O que pretende é que os sócratezinhos que estão no governo se possam endividar. Junto de quem? Da banca, ora. A mesma banca da qual é originário (e à qual suponho que ainda esteja ligado por interesses).
Para o circuito das conferências, workshops, cocktails, vernissages e entrevistas, Artur, um conselho: fala das colecções da Fundação Gulbenkian, que está sob tua responsabilidade. Suponho que haja por lá umas quantas monografias que, lidas com cuidado, te permitirão não dizer uma quantidade excessiva de asneiras. Ou dos Mirós da tua estimada Fundação de Serralves, sobre os quais se poderá sempre dizer qualquer coisa com agrado geral.
Agora, de políticas públicas - não.
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