Procurei no site da Comissão Nacional de Protecção de Dados mas não encontrei o Relatório de que toda a gente fala. Também só procurei por descargo de consciência - serviços públicos com sites que sirvam para mais alguma coisa do que para os dirigentes poderem falar com orgulho das novas tecnologias, da economia do conhecimento, da agilização de processos e da transparência da administração são mais difíceis de encontrar do que petróleo de xisto no Terreiro do Paço. Posteriormente, tropecei neste post e lá encontrei o link - há quem saiba procurar melhor do que eu, benza-a Deus, mas não me venham cá dizer que era fácil.
A comunicação social, como de costume, não ajuda: os jornalistas chamam notícias às suas opiniões, que para o efeito travestem. E neste particular a opinião dominante, que a CNPD aparentemente subscreve, é que isto de certas pessoas, por ocuparem certos cargos, poderem ter uma protecção diferente, no que toca à confidencialidade dos dados sobre as suas situações fiscais, é um ilícito: "Não se compreende a adopção de um sistema exclusivo para controlo dos acessos a um grupo específico de contribuintes. Tal acção é geradora de discriminação ao nível das garantias oferecidas, sem que seja em si mesma impeditiva de eventuais acessos abusivos".
Ou seja, o que a CNPD sobretudo censura não é o abuso em que descaradamente e há muito tempo vive a Administração Fiscal, quando todo o cão e gato que conheça o paquete da repartição local da Fazenda, ou de uma empresa que para ela trabalhe, pode ter acesso aos dados do vizinho, cujo carro novo inveja; mas sim o facto de estar a ser rodado um sistema que põe ao abrigo desta curiosidade malsã certos políticos. Como se o riscos de estes verem os seus dados pessoais expostos na comunicação social fossem iguais aos do eleitor comum, e este tivesse o direito de os conhecer.
Esta confusão não é inocente; e traduz o desejo de que a real inexistência de sigilo fiscal, que é o regime em que vivemos, perdure, ou, se possível, tenha consagração legal, que é a intenção inconfessada de todo o ressentido e invejoso, todo o português que tem a mania que é nórdico, e todo o cidadão que, no café e na tasca, declara com o olho incendiado: Se alguém tem alguma coisa a esconder é porque não é sério! - a clássica desculpa de todos os estatistas, moralistas, bufos, e totalitários sortidos.
Mas o Governo merece este escarcéu. Porque, logo que descobriu (acredito, chamem-me ingénuo, que não sabia o que um director-geral andava a fazer) a existência da lista VIP deveria ter dito: não fazíamos ideia, mas a iniciativa é excelente, pelo que vamos acelerá-la, testar e, se os resultados forem positivos, tornar o sistema extensivo à generalidade dos contribuintes; e, desde já, louvamos aquele excelente funcionário - precisamos de colaboradores que melhorem o desempenho da administração, ao serviço, no caso, de valores constitucionalmente protegidos.
Como se sabe, não fez nada disto. E, pelo contrário, adoptou uma ingénua toada defensiva, como se alguma vez demonstrar medo fosse uma maneira de acalmar um cão que arreganha os dentes. O cão, agora, agarrou a canela - e não larga, até conseguir abocanhar outro bocado suculento.
De hoje a oito dias haverá, espera-se, outra merda qualquer para incendiar os ânimos do país que se esganiça em declarações; os desaires da Selecção Nacional, as eructações do senhor Presidente do Sporting, ou outro notável da bola, e os vícios do sistema, que é assim que a corrupção no desporto é designada pelos que dela de momento não estão a beneficiar, continuarão a ocupar os corações clubistas, que são os de quase toda a gente lusa; e a lista VIP irá, com o relatório da CNPD, para a longa lista esquecida dos casos do dia da guerrilha partidária.
É pena. Porque ficará por discutir se o combate à evasão fiscal, bandeira deste e de todos os governos anteriores, vale a pena se feito com atropelo de direitos de cidadania; se a igualdade dos cidadãos perante a lei é a mesma coisa que igualdade na impotência deles perante os abusos da Administração; se a condição de político deve implicar mais ou menos direitos do que a de privatus, e, em ambos os casos, porquê e como se casa o direito à privacidade dos eleitos com o direito ao escrutínio dos eleitores.
Poderíamos talvez chegar à conclusão de que o melhor seria mesmo os candidatos a certos lugares, a começar pelos deputados, deverem abdicar por completo de qualquer sigilo fiscal; ou até, como decerto deseja o PCP e um ou outro alucinado que sonha com a social-democracia nórdica, essa abdicação ser obrigatória para todos os cidadãos.
Em qualquer caso, cada um saberia com o que contar. Actualmente o que toda a gente sabe é que o sigilo fiscal existe, e os direitos dos contribuintes também - na Lei geral, que as leis avulsas e o espírito inquisitorial da Fazenda anulam.
Na prática, o que existe é o abuso de quem pode - e o Estado pode quase sempre mais - e o esmagamento de quem não pode. Mas um sistema sem freios, e onde se acha bem que cada cidadão aja como fiscal da Fazenda, sob a promessa abjecta de receber, por sorteio, um Audi, acaba por, contraditoriamente, os tomar nos dentes.
Foi o que aconteceu. E é, de certo modo, justo.
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