Quinta-feira, 1 de Novembro de 2018

O genial Costa

Este artigo de Luís Aguiar-Conraria parece cheio de senso comum, mas senso é precisamente o que não tem. E como Conraria é socialista mas com frequência zurze no asneirol mais evidente do governo PS, foi objecto de apreciação favorável nos meus lados. Trata-se todavia de uma peça de propaganda embrulhada em raciocínios capciosos. Vejamos:

 

“Ou melhor, pensava que seria aprovado [o orçamento], rejeitado por Bruxelas e que, quando Portugal tivesse de fazer as devidas alterações, o PCP se recusaria. Enganei-me, portanto”.

 

O PCP andava atarefado, quando o autor nasceu em 1974, a ocupar o aparelho de Estado e o da comunicação social. É sabido que acumulou nestas meritórias tarefas grandes sucessos e que foi de vitória em vitória até à derrota no 25 de Novembro de 1975. Os outros partidos queriam uma democracia ocidental, portanto com liberdade para a existência de partidos comunistas, e o PCP sobreviveu intacto. Ao PS, por outro lado, convinha um PCP relativamente forte, para poder apresentar-se como o partido charneira do sistema e manter à distância a concorrência. Isso, mais o pendor esquerdizante do eleitorado da época, explica por que razão as revisões da Constituição tardaram e foram (ainda hoje são) insuficientes.

 

O PCP passou a ter como tarefa a manutenção, e se possível o reforço, da sua influência no aparelho do Estado, em particular a Educação, na esfera sindical e nas empresas públicas.

 

Tem tido sucesso: não há nenhum outro partido comunista em democracias ocidentais com tanta influência nas políticas públicas. Imaginar que este partido agarrou a mão oportunista que Costa lhe estendeu sem medir bem as consequências e que sairia ao fim de uns meses sem nenhum ganho palpável só se compreende com um absoluto desconhecimento do que o PCP foi e é. No que toca ao passado, a ignorância só é compreensível se sobre o apogeu da comunistada naquela época nada tivéssemos lido e andássemos de bibe; e no que toca ao presente apenas se continuarmos a andar.

 

“A solução mais fácil teria sido formar um governo minoritário à imagem do de Cavaco Silva em 1985. É provável que o PS se abstivesse no primeiro orçamento. É altamente improvável que o segundo orçamento alguma vez conseguisse passar. Voltávamos aos tempos de instabilidade, com a agravante de ser extraordinariamente improvável que as eleições fossem esclarecedoras. Enquanto uma fórmula governativa estável não fosse encontrada, a instabilidade inerente facilitaria a criação de movimentos populistas. Não que o nosso sistema político não precise de uma regeneração, mas, idealmente, não será esse o caminho”.

 

A estabilidade é útil e necessária quando sirva para promover políticas úteis, mas não é, nem se percebe porque houvera de ser, um valor em si. O PS estava disponível para respeitar as instruções de Bruxelas; o PSD e o CDS também. Com isso adquirido, as clivagens só poderiam ser sobre a forma de as respeitar sem comprometer o crescimento económico, e é absurdo imaginar, para quem não seja socialista, que a solução lógica e respeitadora da nossa tradição eleitoral seria pior que o patético governo que temos.

 

Luís não explica quais seriam os contornos da necessária regeneração do nosso sistema político. Mas não é difícil imaginar: será algo em que tenha protagonismo e lugares, em conjunto com outros pensadores que são muito críticos da direita, muito compreensivos com a esquerda, nada comunistas, muito europeístas, e imensamente modernos e lúcidos.

 

“Uma solução menos fácil, mas que era a preferida pelos líderes da PàF e pelo Presidente da República da altura, era ter um governo “pafiano” com o apoio do PS, que até poderia estar representado no governo. Esta solução, apesar de preferida, seria a pior possível. Com grande probabilidade, grande parte do eleitorado do PS sentir-se-ia traído e procuraria alternativas à esquerda. O Bloco de Esquerda não perderia a oportunidade de se tornar ainda mais populista para captar os votos dos descontentes. Tal como aconteceu em vários outros países, havia o risco de o Partido Socialista implodir. Sendo o PS um dos pilares da nossa democracia, as consequências seriam imprevisíveis”.

 

O PS poderia implodir? Olha que bênção. E os herdeiros seriam frei Anacleto Louçã, a Sarah Bernhardt do teatrinho das Visões Úteis e as manas Mortágua? A sério? 

      

“Com a geringonça, conseguiu-se não só um governo estável, em que o essencial dos compromissos europeus foi cumprido, mas alcançou-se mais do que isso. O BE e o PCP sujeitaram-se à realidade. E se não é de esperar que o PCP, dada a sua matriz ideológica bem definida, mude, é bem possível que o BE faça o caminho dos Verdes alemães. Este é um aspecto muitas vezes frisado por Nuno Garoupa no programa que tem comigo (e com outros) na Rádio Renascença, Conversas Cruzadas. Na Alemanha, os Verdes começaram por ser um partido anti-sistema de esquerda, que gradualmente se tornou num partido confiável. Neste momento, é até o partido que mais tem crescido na Alemanha e é cada vez mais claro que sem ele a esquerda não voltará a recuperar a chancelaria. Em conversa privada, Garoupa pôs mesmo a hipótese de que ‘o Bloco percorra em 20 anos o caminho que levou 40 aos Verdes alemães”.

 

 

Que o BE se “sujeitou à realidade” não se duvida, se com isso se quer dizer que hoje procura, de forma com frequência cómica na sua evidência, acaparar uns lugares no governo e, mais tarde, nas empresas públicas. Aburguesaram-se, benza-os Deus, e se herdassem o eleitorado do PS isso quereria dizer que seriam o PS com outro nome, outras caras e outras toilettes. Ou seja, ficávamos na mesma, salvo talvez com um pouco mais de retórica fracturante e toilettes mais modernas.

 

Agora, que ao PCP tenha sucedido o mesmo implica acreditar que desistiu do comunismo, do colocar de pedras no xadrez do poder, e dos seus objectivos primários e secundários. Ou o autor não sabe o que diz, mas devia, ou sabe, e deveria abster-se de, para branquear a tropa repugnante que nos pastoreia, dar estes tratos de polé à história e à realidade.

 

António Costa domesticou o principal foco de populismo em Portugal, o Bloco de Esquerda, transformando-o num partido institucional. Daqueles que se curvam perante a realidade. Ou seja, politicamente, a geringonça não se limitou a cumprir o que prometeu: fez bem mais do que isso”.

 

Viva Costa, o estratega Costa, o incomparável Costa, o genial Costa. Meteu o PCP e o BE no bolso.

 

Não foram só aqueles dois infelizes partidos.

publicado por José Meireles Graça às 14:32
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