Domingo, 20 de Agosto de 2017

Silly season o ano todo

É da natureza dos romances serem transgénero, informa a autora da entrevista, uma revelação surpreendente com que o leitor desprevenido é brindado. E o romance em questão, somos ameaçados, é além disso transatlântico, transformador e transgressor.

 

Para um só romance é muito, mas reconforta-nos a informação de que tem 550 páginas, o que deve realmente sossegar quem tivesse dúvidas sobre se haveria espaço bastante para conteúdos tão atravancadores.

 

A entrevista processou-se através de uma corda de palavras a atravessar o oceano, diz Fernanda Câncio, a parceira do lado de cá, modalidade ao mesmo tempo original e pouco prática, mas conduzida a bom porto pela sua mão segura, e presumivelmente ornada com membranas interdigitais.

 

A corda em apreço é naturalmente submarina, donde a profundidade das perguntas e respostas, o que faz com que se tenha de envergar previamente um escafandro para as entender.

 

Vejamos:

 

"És ateia, mas este livro pode ser considerado religioso. Não tanto por beber em noções bíblicas como a do mundo feito em sete dias e do apocalipse, mas pela forma como estabelece uma ligação entre tudo e todos, uma ideia de retribuição e redenção, de um certo fatalismo, e sobretudo pelo misticismo. Assumes isso?"

 

A marota da entrevistada, Alexandre Lucas Coelho, não diz que sim nem que não, antes se refugia na convicção de que as leituras de facto variam entre "quem vê nele um romance queer e essa ideia de que será religioso". Já ela, que o escreveu, não sabe bem, mas mesmo assim "continua avessa a aparelhos religiosos, espantada com o milagre diário que é ficar vivo".

 

Pessoalmente tenho também alguma aversão a aparelhos religiosos, em particular o hissope dependurado num cabo, que imagino me pode estropiar a cabeça, e até mesmo o báculo, que brandido por um clérigo colérico pode causar grandes estragos; mas não vejo qualquer milagre em Alexandra acordar viva todos os dias - seria mais o caso de falar numa maldição, tendo em vista o seu hábito deplorável de perpetrar livros.

 

"Contém também a ideia de deambulação, da errância. 'Bolar um romance é ir achando constelações, unir pontos num novo desenho', dizes a dada altura. Tão depressa estamos em casa dos irmãos Judite e Zaca no Cosme Velho como na Torre do Tombo a ler relatos com 500 anos, como a saber de astronomia ou do rinoceronte que se afogou no naufrágio de uma das caravelas".

 

Fernanda Câncio baseia-se nas palavras da autora para alegar que esta  é astrónoma, mas Alexandra rejeita com veemência a insinuação: "Falo em montagem porque desde o início pensei num mecanismo cinematográfico, alternando panorâmica - nos dias ímpares, em que se vagueia pela cidade - e zoom - nos dias pares, com planos fixos em cada personagem".

 

Não foi, mas devia ter sido, aprofundado, se os dias são os da semana ou os do ano. Porque se forem os da semana conviria esclarecer quais são os ímpares, em particular qual a natureza aritmética do sábado e do domingo; e se forem os do ano se apenas anos bissextos ou os ordinários, caso em que, tal como para os da semana, haverá um desequilíbrio a favor dos dias ímpares, o que será decerto uma escolha prenhe de significados.

 

"É como se tivesses querido escrever algo voluntariamente difícil. Não tens medo de que os leitores se percam?"

 

A julgar por esta entrevista/recensão o medo razoável deveria ser o de que não se encontrem leitores. Mas Alexandra parece ser uma mulher destemida e como, nas palavras dela, "o autor escreve o que sente que tem de escrever, trabalha para que o livro se torne no que precisa, e não pode perder-se no medo da recepção", ficamos sossegados.

 

"Contaste este mês, numa apresentação do teu livro na Bahia, que depois de leres esse relato foste aos Jerónimos olhar os túmulos de Gama e Camões. Achas que Camões quis voluntariamente ignorar esse episódio horrível?"

 

Alexandra não sabe. Não sabe, a pobre querida. Talvez Camões tivesse querido deitar água benta por cima de episódios violentos ou bárbaros ou cruéis dos Descobrimentos, da escravatura, da relação com pretos, ameríndios e asiáticos, mas se calhar teve receio, ele e todos os homens bons daquela época, da reacção dos homens maus, que detinham as alavancas do Poder.

 

Que Camões e Vasco da Gama fossem homens do seu tempo, e que portanto concepções nascidas séculos mais tarde sobre direitos humanos, dignidade e igualdade básica de direitos entre cidadãos e pessoas de raças e de geografias diferentes lhes fossem inteiramente alheias, não lhe ocorre.

 

Não lhe ocorre isso nem que a mistificação do "colonialismo doce" está mais do que denunciada, e de há muito, por inúmeros historiadores, o que, para uma historiografia séria, não exclui que tenham existido diferenças entre os vários colonialismos, e que essas diferenças tenham tido consequências que se manifestam ainda hoje. Mas fazer juízos de valor, como se a contemporaneidade fosse um tribunal, sobre o comportamento de figuras históricas do passado, com ignorância e descaso das circunstâncias de tempo e lugar, cultura dominante, influências, jogos de poder, percursos, resultados e consequências, com o dedinho em riste do politicamente correcto a servir de bússola, é um exercício de estupidez e ignorância.

 

O mundo não nasceu em 1789 nem em Maio de 68; e para Portugal decerto 1820 foi um ano importante, e o 5 de Outubro, o 28 de Maio e o 25 de Abril espirros com consequências. Mas para perceber tudo isto requer-se estudo das fontes, método, espírito inquisitivo, cepticismo e lucidez - moralismo não.

 

César, que mandou amputar uma mão a milhares de guerreiros de tribos celtas vencidas, ou Truman, que despejou duas bombas atómicas sobre o Japão, têm direito a ser compreendidos nos seus próprios termos, e à avaliação objectiva das alternativas possíveis, e não a julgamentos sumários de gente com poucas luzes.

 

Os japoneses honraram os seus mortos com monumentos comoventes; e os franceses só não o terão feito porque foi há muito tempo e a sua identidade é mais tributária de uma tribo germânica bárbara, e da romanização, do que do fundo celta que partilham com boa parte da Europa.

 

Aos americanos e aos italianos de Roma é que não deve ocorrer o frenesim de monumentos a pedir desculpa. Pobres coitados, que Alexandra mostra o caminho:

 

"Defendes a necessidade de, a par do Padrão dos Descobrimentos, dos Jerónimos, de tanto monumento a celebrar o épico da gesta, criar um memorial daquele outro lado, o do horror. Que forma imaginas para isso?"

 

Alexandra quer um "tributo a ameríndios e africanos nas imediações da Torre de Belém, do Mosteiro dos Jerónimos e desse Padrão com que o salazarismo glorificou uma versão infantil do império". E deseja ardentemente "poder levar os [meus] sobrinhos a ver a cabeça do rinoceronte na Torre de Belém".

 

Os sobrinhos em questão, se tiverem juízo, apreciarão talvez mais os afamados pastéis daquelas redondezas, que Alexandra pague do seu bolso; e eu ficaria grato que não se escavacasse o meu dinheiro de contribuinte a erigir monumentos às manias infantis de reescrever a história por outra forma que não seja em livros que posso comprar ou não.

 

E se fossem apenas monumentos, ainda vá. O Padrão dos Descobrimentos é muito feio, plantar-lhe ao lado outras pessegadas pode até ser aceitável se forem pequenas, para não se verem ao longe e para que Alexandra, e as outras alexandras todas, sosseguem. Mas a afogueada moça quer mais, muito mais: "Tudo isto para dizer que não só falta uma descolonização do pensamento em Portugal como é urgente fazê-la com reflexos práticos na vida de milhões agora, também. Portugal não é branco, nem em primeiro lugar dos brancos. Como a língua portuguesa, aliás, não é de Portugal, mas de todos os que a falam, e são 300 milhões".

 

Não vejo nada disto com bons olhos, e declaro solenemente que recuso que Alexandra Lucas Coelho e Fernanda Câncio me descolonizem o pensamento. Poderia talvez aceitar outras formas de interacção, mas descolonizarem-me não, e creio que somos milhões com esta firme determinação. E vou já adiantando que só aceito que Portugal deixe de ser branco se Angola, Moçambique e as outras antigas colónias deixarem de ser pretas, perspectiva que ignoro se cabe dentro deste arrojado plano.

 

Quanto à língua portuguesa, cada um dos países que a fala trata-a como entende, e está no seu direito. Alexandra Lucas Coelho e Fernanda Câncio também estão, mesmo que só a usem, praticamente, para dizer asneiras.

publicado por José Meireles Graça às 22:59
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Quarta-feira, 9 de Abril de 2014

Associação Portuguesa de Esquerdistas

«Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”».

 

 

Suponho que o representante do Presidente da República ficou mudo e quedo, mas eu teria saído pela porta fora. Que se o país não é o dele, e por conseguinte conseguiu o lugar por golpe de Estado, ou num sorteio da farinha Amparo, então não tem nada que presidir a coisa alguma. Dos numerosos co-proprietários do País estavam presentes o ensaísta Lisboa e o celebrado Siza, que podiam perfeitamente desempenhar o papel: ambos têm respeitável idade e fariam óptimos discursos, o primeiro elaborando um pouco mais sobre a anestesia dos coleópteros, o segundo sobre a abundância das liberdades em Cuba ou na Coreia do Norte.

 

Do discurso da laureada não me sobrou uma excessiva vontade para lhe ler a obra: tem a parte do eu isto, eu aquilo e eu aqueloutro, após a lisonja aos colegas e antes dos insultos ao poder político do dia, no meio do que somos inteirados de que "o que me interessa no romance não é o género, mas a ausência de género. Não é poesia e pode ser poesia, não é reportagem e pode ser reportagem, não é viagem e pode ser viagem, não é teatro, cinema, música, arquitectura, agricultura, cosmogonia, correspondência, folhetim, banda desenhada, arquivo, e pode ser tudo isso. Um romance é a liberdade em extensão. Um território de experimentação com um fôlego considerável, que ninguém conseguiu ainda circunscrever além disto: prosa, criativa, de extensão longa, escrita para ser lida".

 

Prosa criativa, de extensão longa, escrita para ser lida? Pessoalmente, tenho alguma dificuldade em imaginar prosa, de mais a mais longa e criativa, que tenha sido escrita para não ser lida, salvo os relatórios da ONU sobre aquecimento global. A não ser a desta romancista, no que me diz respeito. Não por dizer tanto disparate sobre matérias que não alcança - nenhum autor está acima disso; mas por dizer tanta asneira sobre assuntos dos quais devia entender.

publicado por José Meireles Graça às 12:27
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