Uns cristãos estão indignados porque a outro cristão foi atribuído o prémio "Fé e Liberdade". O cristão agraciado é muito rico, coisa fortemente suspeita porque lá vem em Mateus 19:24: "Outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus".
Interpretado literalmente, e aplicado na organização das sociedades, o versículo da Bíblia arrumaria com a maior parte do progresso material e científico que se registou desde o séc. IV, quando o Cristianismo passou a ser a religião oficial do Império, até hoje, ao menos naquelas partes do mundo em que ele se implantou - seríamos todos pobres, tementes a Deus, e morreríamos cedo.
Mas os teólogos são ainda mais subtis do que os constitucionalistas, e nada é o que parece: Uma rápida pesquisa no Google, amparo dos ignorantes, resultou logo em três interpretações diferentes do versículo:
1ª) Houve uma substituição da palavra grega – kámilos – corda, para kámelos – o animal. O fundo da agulha considerar-se-ia literalmente; 2ª) A palavra camelo deve ser considerada literalmente, mas o fundo da agulha era uma pequena porta ao lado da porta principal de Jerusalém, pela qual um camelo passaria, após tirar-lhe a carga e, mesmo assim ajoelhado e aos empurrões; 3ª) Tanto o camelo quanto o fundo da agulha são considerados literalmente.
Um autor diz que esta terceira é a interpretação com que mais simpatiza. Porém, logo acrescenta: Assim como a repetição e a metonímia, Cristo usa uma figura de linguagem chamada hipérbole, que nesse caso se caracteriza pelo exagero, com o objetivo de despertar a atenção dos ouvintes para melhor fixar a narrativa na memória. Então, para enfatizar uma verdade divina, Jesus usou o recurso do exagero para que, causando o impacto esperado, todas as pessoas em todos os tempos repetissem essa comparação aprendendo uma verdade divina.
Estes cristãos irados são gente de representação. E confessam que o que os move não é "qualquer ressentimento contra a pessoa" em causa, mas o "dever de, em consciência, tornar audível a voz dos cristãos que não querem - não podem - silenciar a sua indignação".
Este esclarecimento é de uma grande utilidade, não fosse alguém julgar que as relevantes personalidades em questão tinham sido acometidas de fortes dores no cotovelo, uma afecção do foro psicossomático que ataca prevalentemente pessoas de esquerda. Não, que ideia!, longe disso. E, para desfazer qualquer sombra de dúvida, perguntam o que é que o prémio pretende enaltecer:
"Uma colossal fortuna pessoal? Uma forma de enriquecimento baseada nos ganhos do capital e sua acumulação? Práticas de exploração do trabalho humano (baixos salários, horários excessivos, precariedade nas relações laborais)? Expedientes fiscais para fugir aos impostos? Um modelo de economia que permite o desemprego massivo, a grande concentração do património individual e correspondente poder político, com risco para a democracia e para a coesão social?"
O Instituto de Estudos Políticos da UCP, que foi quem em má-hora atribuiu este prémio escandaloso, não vai, possivelmente, responder. Mas como as perguntas são públicas, e faço parte do público, respondo eu, não sem declarar que não conheço o Sr. Alexandre nem nenhum familiar ou amigo, não tenho negócios, nem intenção de os ter, com as empresas do dito senhor, nem simpatizo indevidamente com ele, a quem ouvi ocasionalmente na TV, à mistura com muita coisa sensata e pouco dita pelos líderes de opinião, alguns (a meu ver) disparates de tomo.
A "colossal fortuna pessoal" resultou de uma prática empresarial bem-sucedida, tanto em Portugal como no estrangeiro, em concorrência com outros empresários com iguais pontos de partida, crédito e oportunidades. Não querem concorrência? Não querem sucesso? E se o sucesso empresarial não se mede em ganhos, mede-se como?
"Uma forma de enriquecimento baseada nos ganhos do capital e sua acumulação": Os ganhos do capital são inerentes ao capitalismo, tenham paciência. E como para investir é preciso capital, se ele não for detido por particulares só o Estado pode investir. É isso que querem, que só o Estado invista?
"Práticas de exploração do trabalho humano (baixos salários, horários excessivos, precariedade nas relações laborais)": Não conheço as práticas do grupo Pingo Doce, e não sei por conseguinte em que dados se baseiam estes benignos cristãos. Mas pergunto: os trabalhadores foram recrutados manu militari? Se o Pingo Doce não existisse, estariam melhor? E, sobretudo, poderia praticar os preços que pratica junto de outros trabalhadores seus clientes, expandir-se e crescer se pagasse os salários que frei Bento, ou outro dos subscritores, acharia justos?
"Expedientes fiscais para fugir aos impostos": Desculpem lá mas a obrigação de qualquer empresa bem gerida é, dentro da legalidade, gerar a maior quantidade possível de resultados positivos para crescer sustentadamente, o que inclui poupar o mais possível, incluindo nos impostos. Estes bons cristãos entendem que, tirando às empresas para dar ao Estado, os recursos terão melhor aplicação. Por que razão, então, a taxa de IRC não é de 100%?
"Um modelo de economia que permite o desemprego massivo, a grande concentração do património individual e correspondente poder político, com risco para a democracia e para a coesão social." Ah bom, o Pingo Doce tem um grande poder político? Mas por que é que o Governo e a Assembleia da República não ligam a ponta de um corno ao que diz o Sr. Alexandre Soares dos Santos, que acha a gestão do País um desastre? E que tem o preço dos detergentes e das maçãs reineta, no qual o Pingo Doce dá cartas, a ver com riscos para a democracia?
Não se acaba com os pobres acabando com os ricos. Não vem, suponho, na Bíblia, e em todos os lados em que foi tentado o resultado não foram cidadãos remediados mas cidadãos pobres, e nem todos: os do aparelho do Estado foram, aí, sempre relativamente ricos.
Estes bons servos do Senhor fariam melhor em fundar um partido político, visto que têm um grande amor à democracia mas não gostam nadinha da sociedade como ela está. Há porém um óbice: os seus pontos de vista já são subscritos por partidos existentes, e estes concorrem às eleições mas não ganham. Deve ser esse o "risco para a democracia".
Soares dos Santos é rico e diz uma quantidade prodigiosa de tolices. As tolices de Soares (deste, que é um privatus amador, não do outro, que é profissional do asneirol) têm acolhimento porque quem enriqueceu detém uma chave que toda a gente gostaria de ter e assim a audiência é garantida: quem é que não quer ficar ao corrente do que pensa George Soros ou Bill Gates, ou até mesmo Richard Branson, quando estes propinam às multidões anelantes as pérolas do seu saber? Se foram capazes de passar brilhantemente pela estreita porta do sucesso, enriquecendo, é porque sabem algo que os outros ignoram; e se a actividade política é hoje na sua maior parte, directa ou indirectamente, dirigida ao sucesso económico, então os conselhos dos magnatas são para ouvir.
Há mesmo uma tradição americana, para os homens de muito sucesso, que consiste em contratarem, quando em idade avançada, alguém para lhes escrever a biografia, onde ficará plasmada para a imortalidade a argúcia e o rol de qualidades que lhes deram o estrelato e o império nos ramos da sua especialidade. As pessoas compram avidamente o livrinho, para descobrirem desconsoladas que o grande homem se levantava cedo, trabalhava muito e era fino como um alho. Ora bolas, que não faltam por aí borra-botas com exactamente essas características.
Infelizmente, os países não são empresas, mesmo quando têm um PIB inferior ao volume de negócios de muitos conglomerados; e qualquer empresário que se dedique à política descobre a muito breve trecho que está metido num ninho de lacraus - governar cidadãos nem mesmo em ditadura é parecido com dirigir empregados, e produzir um bem ou serviço está a léguas da congeminação de leis. De resto, com o sucesso costuma vir a suficiência e esta, quando associada a doses confortáveis de ignorância, proporciona momentos deliciosos: Belmiro de Azevedo, provavelmente o mais completo e brilhante empresário da sua geração, há anos, quando inquirido sobre as reformas necessárias para o País, começou por pintar o organograma do governo, exactamente como se estivesse a fazer o layout de um qualquer board.
Mas eu falo assim dos empresários porque falo assim das pessoas. Não me move qualquer animosidade particular contra os ricos, e pelo contrário entendo que não apenas os ricos, incluindo os muito ricos, desempenham um papel insubstituível numa economia sã, como repousa neles, incluindo sobretudo mas não apenas os pequenos e muito pequenos empresários, a parte mais criativa e dinâmica do crescimento económico.
É por isso que o tom chocarreiro deste artigo ("saber vender iogurtes de pedaços, bacalhau demolhado da Noruega e champôs anticaspa...") é profundamente desagradável: Daniel Oliveira não fala assim de uma nulidade qualquer que seja depositária do que ele, Daniel, toma como cultura, isto é, um baladeiro capaz de ganir a um microfone umas fanhosas musiquetas de intervenção, ou uma actriz a declamar desastradamente num palco uma peça qualquer carregadinha de mensagens, ou ainda uma bailarina a espolinhar-se no chão, com o propósito de representar amores contrariados por inultrapassáveis obstáculos de classe, ou outra merda qualquer sobrevivente a golpes de subsídios e críticas favoráveis de críticos piolhosos e esquerdistas.
Soares dos Santos não tem clientes por decreto; não contrata trabalhadores apontando-lhes uma pistola à cabeça; contribui para o Estado, directa e indirectamente, com muito mais do que dele recebe; e, ainda que a dignidade das pessoas não se meça pelo seu contributo para o PIB, tem direito à admiração dos seus concidadãos por ter, dentro e sobretudo fora de portas, o sucesso que soube merecer.
Não precisamos, é claro, de lhe comprar as ideias políticas; e é aventureiro asseverar que são os Soares dos Santos desta vida "a decidirem, através da pressão que vão exercendo, o futuro do país".
Daniel está enganado: Portugal está como está, chegou onde chegou, não por causa dos Soares dos Santos, mas dos outros Soares, o propriamente dito e a sua família política, mais a nebulosa dos fazedores de opinião que venderam, e continuam a vender, ao eleitorado, a ideia de que a melhor maneira de criar riqueza é começar por expropriar quem a pode criar.
Daniel Oliveira, em que pese aos seus muitos méritos, faz - ainda - parte dessa nebulosa; Soares dos Santos não.
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