Há uns bons pares de anos, numa segunda-feira de manhã, a capa de uma revista veio comover a nação que vivia o auge do cavaquismo com euforia. O arquitecto do regime, que fazia projectos milionários para tudo o que fosse eregível, e facturava ao governo muitas dezenas de milhares de contos (e muitas dezenas de milhares de contos ainda são dinheiro, mas naquela altura eram muito mais) por meros ante-projectos de urbanizações a eregir em manicómios deslocalizados para fora do centro da cidade, figura central do jet-set da época, até empresário da noite, era um dos donos do Bananas, e senhor de uma riqueza ostentada sem vergonha, deslocava-se de Rolls, também se dedicava ao cinema amador. O título da notícia era algo como "As loucuras do arquitecto", ou "Pau para toda a obra", já não me lembro bem. Mas lembro-me que, antes da hora de almoço, o jornalismo de investigação que se praticava na era pré-internet nas grandes empresas multinacionais quando havia grandes debates públicos a decorrer já tinha descoberto, na empresa onde eu trabalhava, que, nas Páginas Amarelas, o gabinete do arquitecto vinha na página com o separador "Pronto a Comer", na secção "Projectos de Arquitectura". Nas multinacionais, quando se investiga, investiga-se a sério.
Entretanto o regime mudou, o Cavaco Silva, ou porque não lhe apeteceu, ou porque pensou que ia perder, não se voltou a candidatar a primeiro-ministro, e o cavaquismo acabou e foi substituído pelo socialismo, entremeado com algumas interrupções neoliberais rapidamente postas na ordem pelos socialistas, mesmo quando perdem as eleições. E, com o socialismo, mudou o arquitecto do regime.
Hoje em dia não há peido que se dê no Portugal socialista sem um tripezinho Siza para o segurar, ou um candeeirozinho Siza para o iluminar.
Do museu ao auditório da escola, do bairro de uma grande cidade destruído por um incêndio ao pavilhão de uma exposição universal, vai a todas as que têm promotores públicos, um dia hei-de tentar perceber se por concurso público ou por ajuste directo? se bem que tenha a intuição que mais por este do que por aquele, porque o talento não se leva a concurso. Temos, pois, o novo arquitecto do regime.
Acontece que eu tenho alguma dificuldade em compreender, para usar uma expressão na moda, o que faz de um arquitecto cuja obra é uma pain in the ass para os desgraçados que são forçados a usufruir dela um grande arquitecto, para além da facturação do gabinete?
A mim que, na arquitectura, me impressionam menos os Pritzker do que o cuidado com "as pessoas" que são condenadas a viver dentro dela, ou a ergonomia, só posso esperar que o regime mude rapidamente, para aparecer um novo arquitecto que nos torne a vida menos penosa e perigosa e mais agradável e segura.
O bairro, se assim lhe podemos chamar, fica na zona mais cara do Porto. Em lotes de dimensão razoável, os edifícios de habitação atingem com frequência os 15 andares. São volumes dispersos, de aspecto rico, espaçoso, e desinteressante, limpos de adornos e revestidos de materiais decentes, com áreas abertas nos intervalos. As manchas de verde, geralmente bem cuidadas, não chegam a formar jardins. Pelo meio sobrevivem meia dúzia de moradias. De alguma maneira, todo o conjunto consegue apresentar-se correcto, hesitante e desordenado. Para todos os efeitos, é um bairro residencial sem grande história – mas dos bons.
A coisa foi construída naquele bairro. Ocupa um terreno de inclinação relativamente suave, descendo em direcção à foz do Douro. Souto Moura voltou-lhe as costas para a vizinhança. Escolheu dois compartimentos e virou-os para uma paisagem, suponho, magnífica - cada um no seu eixo, evitando a obstrução visual dos edifícios que tinha em frente. Rematou estes compartimentos com paredes de vidro, dando-lhes o aspecto de aparelhos de televisão (os grandes arquitectos têm estas subtilezas). Em volumes geometricamente simplificados, que se intersectam num corte quase infantil (tal é a lógica dos seus propósitos e o despudor com que encara as convenções), a “casa” existe com uma identidade totalmente autónoma. Somos informados que é uma casa, mas nada no objecto nos permite chegar a essa conclusão. Está ali, num bairro do Porto, mas podia estar em Tóquio, em Narvik, ou nos arredores de Estremoz.
Para o autor deste projecto, a relação com o lugar é interpretada exclusivamente de dentro para fora. O exterior, o que já lá estava, só conta na medida em que possa servir o interior. Souto Moura separa a área envolvente em duas categorias: a paisagem (que é a parte boa) e o resto do bairro (onde vivem os outros, que é a parte má). E Souto Moura não desce à humilhação de submeter a superioridade do seu risco ao entendimento e aos costumes dos brutos: eles fazem as casas deles à maneira e à medida das suas vidas primárias. É um mundo diferente, estreito e banal, com que Souto Moura (e os seus iniciados) não querem ter contacto.
Para Souto Moura, a paisagem é importante desde que se possa extrair dela um benefício próprio; mas não é importante perceber como é que a construção altera e condiciona a área envolvente, como é que o objecto é percebido, até que ponto é que a obra aceita ou recusa, integra ou despreza, despótica e sobranceira, o prazer e os costumes dos outros. Não é indiferente que o presente de Souto Moura à humanidade tenha custado cerca de 4 vezes o seu valor de mercado; mesmo porque a humanidade já o pagou.
Souto Moura sabe, como qualquer arquitecto é obrigado a saber, que a arquitectura é sempre uma imposição. Deve ser, por esse motivo, um exercício de compromisso. E a atitude educada é dar pelo menos tanto quanto retira. É procurar que a sua presença não seja um fardo. É entender e falar pelo menos uma parte da linguagem comum que faz de cada autor um membro da comunidade – e não um fanfarrão. O arquitecto que se dá ao respeito projecta para o cliente no contexto da cidade. Não projecta para se “expressar”, segundo o seu sentimento ou a sua emoção - que só a si dizem respeito. Nem projecta homenagens a si mesmo e à importância que imagina ter.
O que se fez com a “Casa” Manoel de Oliveira foi uma desconsideração. O suposto habitante (como é natural) recusou morar nela. E agora ninguém a quer. De resto, o próprio tempo (como é hábito) encarregou-se de deixar à mostra a moral desta história: se ao artista não lhe interessa obter o respeito dos outros, caminha confiante para merecer deles o desdém.
"Em 1913, o promissor fabricante de automóveis Henry Ford aperfeiçoou a primeira linha de montagem em larga escala.
(...)
Detroit, capital industrial do século XX, desempenhou um papel fundamental na formação do mundo moderno. A lógica que criou a cidade também a destruiu. Actualmente, como em mais nenhum sítio, as ruínas da cidade não são detalhes isolados do ambiente urbano. Tornaram-se um componente natural da paisagem. Detroit apresenta todos os edifícios-arquétipo de uma cidade americana em estado de mumificação. Os seus esplêndidos monumentos decadentes são, não menos que as pirâmides do Egipto, o coliseu de Roma, ou a Acrópole de Atenas, vestígios da passagem de um grande Império."
Yves Marchand e Romain Meffre, "The ruins of Detroit"
Michigan Central Station
Woodward Avenue
David Broderick Tower, consultório de dentista no 18º andar
Donovan Building
Metropolitan e Wurlitzer Buildings
Sala de aulas, St Margaret Mary School
Esquadra de Polícia de Highland Park
Quarto 1504, Lee Plaza Hotel
Salão de bailes, Lee Plaza Hotel
Passados 100 anos, a cidade de Detroit declarou bancarrota.
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Fotografias daqui.
Para que a Câmara Municipal de Lisboa me aprove um projecto, tenho de apresentar as cores de todos os elementos das fachadas (com as respectivas referências no catálogo RAL). Se a Câmara aprovar aquelas cores (o que não é certo), o proprietário não pode alterá-las sem um pedido de autorização prévia, que obriga à apresentação e apreciação de novo processo de Licenciamento. No entanto, discute-se placidamente a "liberdade de expressão" dos "artistas" de graffiti.
Aparentemente, o governo planeia passar a sujeitar estas "intervenções" a uma aprovação pelas câmaras municipais. Os "artistas" mostram-se naturalmente contrariados: "Epá, eu conde chego aqui é que sei o que é que o meu espírito quer pintar". E vão logo avisando: "Puto, a mim ninguém me vai impedir de pintar a Anjelamérquel a mandar nos plíticos, meu!".
Pressupõe-se que as câmaras municipais, munidas dos desenhos (e sabe Deus de quantas mais "peças" que irão "instruir o processo" de acordo com "a regulamentação aplicável") vão apreciar os pedidos. Com base no gosto, porque não podem fundamentar a decisão em mais nenhum critério, vão aprovar uns e indeferir outros. No fim, só falta cobrar a taxazinha e emitir a respectiva licença.
Quem distingue as obras de "arte" do lixo? Quem separa as "maravilhas" que "enriquecem" as cidades das simples selvajarias que destroem as fachadas dos edifícios? No entender deste governo "liberal" (já não uso "ultra" nem "neo" porque este post não é uma galhofa), as câmaras municipais estão em condições para decidir.
Pessoalmente, considero que os graffitis são quase sempre um nojo. E os marmanjos que os pintam são vândalos puros que, em lugar de colo, mereciam dos cidadãos decentes, se não castigo, o mais absoluto desdém. Mas isto é o que eu penso, e o que eu penso vale tanto como o que pensa qualquer "artista", de graffiti ou de outra "arte", e por isso não deve transformar-se em decreto.
Eu sou arquitecta. Faço essencialmente reabilitação. Sou obrigada por lei a ser membro da Ordem dos Arquitectos. E a Ordem dos Arquitectos tem a obrigação de me vigiar (não vigia: só me cobra quotas principescas e ocupa-se de fechar, em nome dos arquitectos, péssimos negócios legislativos com o Estado), de garantir que eu sei fazer arquitectura, e de me punir se eu não cumprir a lei (designadamente, expulsando-me e impedindo-me de exercer a minha profissão). Como tal, nenhuma outra entidade pública devia ser autorizada a emitir pareceres, com base no gosto, sobre os meus projectos.
Não se trata da minha "liberdade de expressão" nem da minha "arte". Trata-se da vontade dos meus clientes, que são cidadãos particulares e se dispõem, do seu bolso e de livre vontade, a reabilitar os centros históricos. E trata-se da minha experiência, da minha cultura, do meu estudo, e da minha responsabilidade profissional. Não reconheço a nenhum burocrata qualquer superioridade que o habilite a emitir juízos estéticos sobre o meu trabalho.
Conhecendo os riscos, estou disponível para aceitar, no capítulo dos graffitis, a seguinte solução: Podem expressar-se, pintar, escavacar o que entenderem desde que autorizados pelos proprietários dos edifícios. Por maioria de razão, exijo para os arquitectos a aplicação do mesmo princípio.
A morte recente de Oscar Niemeyer voltou a provocar a discussão sobre o movimento moderno na arquitectura. Talvez o único sobre o qual, ainda hoje, interessa verdadeiramente conversar.
Esta e outras imagens estão no Malomil, num post do António Araújo que vem muito a propósito.
(Originalmente publicado no Senatus, em 30 de Janeiro 2012)
Hoje decorreu no Teatro São Luiz o debate "Rejuvenescimento e Identidade Cultural de Lisboa", organizado pela respectiva Assembleia Municipal. Isto é o que eu penso do assunto, e foi isto que fui lá dizer:
As cidades são uma das primeiras expressões de identidade cultural. Os centros históricos das cidades portuguesas têm vindo a morrer.
Sucessivos governos, tanto centrais como locais, não conseguiram resistir a duas tentações. A primeira foi a da promiscuidade com os grandes promotores imobiliários. A segunda foi a tentação de "deixar obra". Uma e outra conduziram ao desvio de massa construída para os subúrbios das cidades, onde havia espaço. Não só havia espaço como este era relativamente barato. Compravam-se terrenos agrícolas, faziam-se uns truques com os Planos Directores Municipais, alteravam-se as manchas de ocupação, convertia-se aquilo em zona urbana, subiam-se os índices permitidos (de ocupação, de impermeabilização, etc.), e estava encomendado mais um conjunto de fogos. Não vou falar no mal que isso fez à economia, que foi muito. Mas vou falar no mal que isso fez aos centros históricos das cidades, que não foi menos.
O objectivo de fazer política social de habitação à custa da banca arruinou o que sobrava do mercado de arrendamento. Durante muito tempo, em lugar de resolver o problema eleitoralmente sensível da legislação sobre as rendas, o Estado entendeu-se com a banca para oferecer toda a espécie de vantagens à concessão de crédito, com juros muito baixos, sobreavaliação dos imóveis e ausência de cálculo dos riscos de incumprimento. Com isto, o Estado convenceu-se que não existia um problema de habitação em Portugal. Convenceu os cidadãos que era possível e normal que as famílias fossem proprietárias das casas em que viviam. Às vezes, também das casas de férias. E elevou a aquisição de casa própria a níveis delirantes. Hoje, muita gente não consegue pagar as prestações e olhamos para um país repleto de trambolhos devolutos.
Enquanto isto acontecia, os centros históricos ficaram quase exclusivamente entregues à iniciativa de particulares. Aí o Estado actuou de outra maneira. Criou gabinetes técnicos (muitas vezes empresas municipais, as famosas Sociedades de Reabilitação Urbana) destinados à "defesa" das chamadas "zonas sensíveis" (defesa contra quê? Ou contra quem?). Inventou toda a espécie de entraves ao licenciamento urbanístico. Acrescentou a complexidade da regulamentação, a morosidade das respostas, os valores absurdos das taxas e impostos, e o último recurso dos incompetentes: meter o nariz em tudo e colocar as decisões ao nível do "gosto" (isto assim fica um bocadinho desenquadrado, ficava mais bonito se as mansardas fossem em "em bico", porque é que não se tira este revestimento e se põe antes um que seja mais "a condizer" com a "traça antiga", etc.). Este "gosto" foi debatido de um lado da mesa por arquitectos municipais que nunca exerceram a profissão, e do outro lado por artistas saídos em tabuleiros das dezenas de faculdades de arquitectura que, com a escassez de trabalho e deficiência de formação, estavam desejosos de "deixar marca". Assim nasceram uma série de híbridos, negociados de forma a garantir que o resultado final era caríssimo, ia contra a vontade de todos e tinha o parecer favorável das entidades competentes. Quem se meteu nisso uma vez, raramente repetiu. Na impossibilidade de rentabilizar o seu património, muitas vezes envolvido em processos complicados de natureza cadastral, as pessoas foram desistindo. E o interesse público, que o Estado devia defender, transformou-se em desinteresse generalizado.
Importa que o Estado comece por reabilitar os seu imóveis devolutos (em Lisboa, por exemplo, é o maior proprietário). E para se dar ao respeito, tem que reabilitar estes imóveis no mais absoluto cumprimento da legislação que obriga os particulares a cumprir. Importa que o Estado cumpra também os prazos legalmente estipulados para dar resposta aos pedidos de licenciamento. Que torne claros, públicos e razoáveis os valores que cobra pelas operações urbanísticas. Que reforme a legislação que regula a reabilitação de edifícios, designadamente a das acessibilidades e a do comportamento térmico, de modo a garantir que a mesma seja inteligível, aplicável e sensata.
O Regulamento das Características do Comportamento Térmico dos Edifícios é um dos mais exigentes da Europa. Se não for o mais exigente. O que é curioso num país com amplitudes térmicas relativamente reduzidas (porque estamos no Sul e porque estamos junto ao mar), e com um construção tipicamente pesada em termos de inércia térmica. A inércia térmica de um edifício é a capacidade de resistência a variações térmicas no seu interior, provocadas por alterações térmicas no exterior. Mas o referido regulamento não permite sequer considerar o valor real da inércia térmica dos elementos construtivos; estabelece valores máximos de 150 Kg/m2 ou de 300 Kg/m2 consoante os elementos estejam ou não em contacto com o exterior. A exigência deste regulamento obriga a cálculos complicadíssimos para as situações de Inverno e, da última vez que me informei, as DOZE entidades conhecidas que o concertaram e elaboraram (porque ainda são referidas as "associações representativas do sector", cuja identidade não é revelada) preparavam-se para aplicar o mesmo detalhe aos cálculos das situações de Verão.
Independentemente da complexidade dos cálculos, e das soluções construtivas que este regulamento exige, poder-se-ia pensar que os resultados eram bons. Mas não são. A maior parte das vezes, o seu cumprimento resulta num gasto incomportável em consumos energéticos mensais.
Com o regulamento das acessibilidades acontece a mesma coisa. As exigências são de tal ordem abrangentes que, para conseguir cumpri-lo, os promotores vêm-se obrigados a fazer obras caríssimas, em locais muitas vezes incompatíveis com a própria morfologia dos edifícios, o que os torna absurdos quando não os torna inabitáveis.
Seria bom que o Estado validasse as opções conjuntas dos proprietários e dos técnicos responsáveis pelos projectos e pelas obras, retirando as trapalhadas do caminho e permitindo aos cidadãos criar e habitar as suas cidades de acordo com a sua identidade cultural. De outra forma, não chegaremos sequer a conhecê-la.
Importa, por isso, que o Estado desista da ideia de se defender dos cidadãos. O bom-senso dos cidadãos tem-se mostrado, em muitas situações, infinitamente superior ao das entidades supostamente criadas para lhes dizer como devem habitar, limitando-lhes as opções em nome de uma escolha mais correcta. É preciso arriscar e absorver algumas escolhas erradas. Não é nenhum drama, nem é irreversível. O drama é deixar morrer.
As cidades mais interessantes, mais confortáveis e mais civilizadas evoluiram sempre de forma orgânica, mais apoiadas na manutenção do que na construção. Responderam às necessidades de cada geração sem impedirem que as gerações seguintes pudessem responder às suas. Isto define uma cultura.
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