O estilo errático dos anúncios, essencialmente através de tweets, do presidente Donald Trump não aconselha prognósticos antes do fim dos jogos, porque o que ele diz hoje não é parecido nem coerente com o que disse ontem, e certamente que amanhã dirá outra coisa diferente destas duas e eventualmente contraditória.
Os detratores do presidente americano atribuem esta variabilidade a falta de juízo, mas os apoiantes mais entusiastas acreditam que é pura estratégia negocial, e até é plausível que o seja, porque com quem não diz coisa com coisa ninguém gosta de discutir e as pessoas normais querem é distância, o que facilita os processos negociais por falta de comparência da outra parte, e pelo meio de um processo negocial pode ter havido tweets tão delirantes que qualquer proposta final que pareça minimamente razoável lhes pode parecer uma conquista inesperada da sensatez sobre a loucura, e aceitável, mesmo que não seja a desejada ou a ideal. E assim, simulando loucura, pode-se ganhar uma negociação.
Um dos domínios onde a sucessão de posições aparentemente erráticas tem sido evidente é no comércio internacional. Entre anúncios de ameaças de tarifas sobre os inimigos comerciais dos EUA, que incluem sempre a Europa e o Canada, as proposta de erradicação total das tarifas, as recusas em subscrever acordos que incluem compromissos de as reduzir, anúncios de novas ameaças de tarifas, e anúncios de intenção de afinal não as introduzir, nenhum dia é igual ao anterior e a única constante é a inconstância.
Um dos campos de batalha mais importantes é o da indústria automóvel, uma das que são comulativamente grandes e sexy. Saindo dos anúncios e das especulações sobre intenções que todos os dias há dados novos para ilustrar, e ficando pelos factos, a UE impõe uma taxa de 10% sobre a importação de automóveis americanos e os EUA impõem uma taxa de 2,5% sobre a importação de automóveis europeus, e uma taxa mais elevada sobre os pesados que não vale a pena discutir aqui. Outro facto, que não tenho quantificado mas que é tão evidente que não vale a pena googlar para quantificar, é que os americanos importam muito mais automóveis europeus, principalmente alemães, do que os europeus automóveis americanos. E outro ainda para baralhar as contas, mas que pode não valer a pena trazer à discussão, dois grandes produtores de automóveis na Europa, a Opel e a Ford, são americanos, e a fábrica que exporta mais automóveis dos EUA é europeia, da BMW.
Primeira constatação, a taxa é assimétrica, e a UE penaliza mais a importação de automóveis americanos que os EUA a de automóveis europeus, o que justifica inegavelmente algum desagrado do governo americano.
Segunda, que é provável que a desproporção nos volumes de importações cruzadas seja tão elevada que, apesar de a taxa ser de apenas um quarto da simétrica, é provável que o governo americano arrecade mais taxas pela importação de automóveis europeus do que os governos europeus pela de automóveis americanos.
Terceira, que as tarifas alfandegárias não são um imposto imposto aos exportadores para o país que o impõe, são um imposto pago pelos consumidores desse país que compram produtos importados, um acréscimo aos impostos ao consumo pagos por eles. Quando nos dizem que as exportações americanas vão pagar uma tarifa alfandegária estão-nos a dizer na realidade que os consumidores europeus vão pagar mais caro por essas importações, não que os exportadores americanos a vão pagar, e vice-versa. O que significa que a imposição de tarifas às importações, comulativamente com agradar aos produtores locais de bens concorrentes com os bens importados taxados que podem ser favorecidos pelo aumento dos preços de venda deles aumentando as suas quotas de mercado, também desagrada aos consumidores que vêem os preços dos produtos que preferem consumir aumentar por causa de um novo imposto.
Quarta, e decorre da anterior, a imposição de tarifas alfandegárias traz a uma sociedade ganhos, e até pode criar empregos, principalmente se não houver retaliação, mas também pode destruir empregos se houver, com um balanço final indeterminado, também lhe traz perdas, até políticas, por ser paga pelos consumidores do país que as impõe. Se eu tiver o sonho de possuir um BMW e tiver dinheiro para o comprar mas de repente, por o preço do BMW ter aumentado, me vir forçado a optar por um Chevrolet, posso ficar chateado com o governo que me estragou o sonho com o seu aumento de impostos.
A quinta, digo-a no fim.
Neste mundo de notícias todos os dias diferentes das do dia anterior e que não indiciam o que dirão as do dia seguinte torna-se quase impossível acompanhar para discutir informadamente o enredo do filme, mas podem-se analizar e discutir fotogramas. E o fotograma de hoje diz o quê? Diz "Bruxelas admite baixar tarifas às importações de eutomóveis para agradar a Trump", ou "Recuo de Trump impulsiona bolsas e BCE ajuda euro", adaptando a mesma notícia às preferências dos trumpistas por uma vitória negocial do Trump ou dos europeistas por um recuo do Trump.
Traduzido em miúdos, que a UE vai reduzir a tarifa alfandegária de 10% sobre as importações de automóveis americanos, provavelmente para um valor idêntico ao aplicado às importações de automóveis europeus nos EUA, e que o governo americano vai desistir da intenção anunciada de aumentar as tarifas alfandegárias sobre os automóveis europeus para 20%. Ou mesmo que as vão anular, o que irá conduzir mais ou menos ao mesmo.
O que se segue não é aconselhável aos que olham para a política internacional como um combate de wrestling entre o Donald Trump e a Angela Merkel, nomeadamente aos que, por parecerem andar a tomar esteróides que lhes dão força, ou anfetaminas que lhes dão a sensação de força, distribuem murros metafóricos no ar traduzidos em insultos e ameaças enquanto assistem ao combate.
Deixar cair a taxa alfandegária actual de 10% sobre a importação de automóveis americanos em troca de o governo americano não lançar uma de 20% sobre os automóveis europeus parece uma medida inteligente, e até cínica, da UE. É que não é a taxa de 10%, e o consequente aumento de 10% no preço de venda, que desencoraja os consumidores europeus de comprarem automóveis americanos, mas o facto de acharem que eles não prestam, de modo que a eliminação desta taxa não vai certamente desencadear uma invasão de importações americanas que prejudique a indústria europeia. Não é a tarifa alfandegária que a protege, mas a diferença na qualidade percebida pelos consumidores europeus que justifica que os automóveis europeus, e principalmente os alemães, e principalmente os alemães de fabricantes europeus como a Mercedes, a BMW, a Audi, a VW ou a Porsche, sustentem um preço premium comparativamente com os americanos.
Já a taxa de 20% sobre os automóveis europeus importados nos EUA aumentaria o seu preço de venda de modo a afectar certamente as exportações da indústria automóvel europeia, mesmo que os consumidores americanos estejam dispostos, como estão, a pagar preços premium pelos automóveis europeus por considerarem que são melhores que os oferecidos pela indústria local.
O acordo registado no fotograma de hoje é pois favorável à indústria automóvel europeia que estava na iminência de ser prejudicada no mercado americano sem a penalizar no mercado europeu. Não é desfavorável à indústria americana comparativamente com a situação actual, se bem que possa ser aparentemente menos favorável que a imposição de tarifas mais elevadas às importações de automóveis europeus no mercado americano, mas também não a vai favorecer significativamente no mercado europeu, por não ser a tarifa de 10% que desincentiva os europeus de comprar automóveis americanos mas a sua falta de qualidade percebida comparativamente com a produção europeia. Dá aos adeptos do status quo europeu alguma estabilidade. E dá aos adeptos do Donald Trump um título de jornal vitorioso onde a UE cede para agradar a Trump. Em suma, todos ganham.
Todos menos os americanos de Detroit que tanto precisam dos american jobs que lhes foram prometidos pelo Donald Trump, não estou a falar dos que a conjuntura lhes oferece tal como os oferece aos portugueses governados pelo socialista António Costa, e pelos quais o Donald Trump parece estar a lutar com as suas guerras das tarifas, mas que não chegarão, sem tarifas ou com elas. É que não é com tarifas alfandegárias ou acordos comerciais que se resolve o desequilíbrio da balança comercial entre os EUA e a UE, mas com produtos bons e competitivos. E andar a discutir tarifas não é o caminho para a indústria americana os melhorar, é, pelo contrário, um bom pretexto para evitar reconhecer o problema e deixar tudo ficar na mesma à espera que a política o resolva. O que está nos antípodas da american way, em que é tradicional ser a sociedade, e não a política, a tomar o seu destino nas mãos.
E esta foi a quinta constatação.
Gosto de estar ao corrente das causas que inflamam alguns jovens e alguns eternamente jovens; e das modas de pensamento, seja na gestão das empresas, no arranjo de jardins, nos menus dos restaurantes, no combate aos fogos ou na preservação das espécies. Disto e de muito mais. As pessoas, parece, precisam de causas e de bandeiras, tanto mais quanto mais novas e radicais forem, e suspeito que uma parte do apelo das causas vem do conforto da pertença a uma tribo cujos membros defendem a mesma coisa contra terceiros que, como os cépticos do aquecimento global, defendem "interesses" e estão maculados com uma insondável ignorância, um egoísmo reprovável e um comportamento inadmissível - castigo neles.
Em tempos, frequentei um blogue onde lavrava uma campanha contra os carros nas cidades. Os autores apresentavam, dia sim, dia não, fotografias onde se viam passeios pejados de automóveis e desprezo contumaz pelas proibições de estacionamento; e, em paralelo, vinham as fotografias de aprazíveis bairros e mesmo cidades em que a circulação era ou proibida ou fortemente condicionada (creio que em França, na maioria dos casos).
Um dia lembrei-me de dizer, num comentário, que a solução para o problema não era nem a proibição de circular, nem o transporte colectivo, salvo se escolhido voluntariamente, ou por economia, ou por insuficiência de recursos; e que as pessoas não são burras - se, podendo fazê-lo, escolhem o automóvel, lá terão as suas razões. E, se bem me lembro, insinuei que, conscientemente ou não, havia por ali, na mania da proibição, na aversão ao transporte individual e na obsessão com a poluição e o consumo de combustíveis, muita mentalidade de esquerda.
O que eu fui dizer - caíram-me em cima, indignados. O blogue e os leitores habituais não se viam a essa luz, e pelo contrário defendiam o que lhes parecia uma melhoria considerável da qualidade de vida, prejudicada pela inconsciência dos automobilistas, a preguiça das edilidades, e a ignorância e inércia dos cidadãos. No decorrer da, aliás relativamente cordata, discussão, referi uma cidade onde tinha estado (Minneapolis) onde, pelo menos na parte da cidade onde permaneci por uma semana, não se viam carros estacionados em muitas ruas, porque não era permitido, mas se circulava livremente. Porém, havia um silo-automóvel em cada quarteirão, e não vi nenhum que não tivesse muitos lugares disponíveis, a um preço razoável.
Lembrei-me desta história por causa disto. Um parque deste tipo conheço há muito, em Vigo, mas é caro. Com a evolução tecnológica e a massificação, os preços descerão.
É por aqui uma parte da solução, a meu ver. Não para casar perfeitamente o transporte individual com o colectivo, e os dois com a qualidade de vida nas cidades, porque isso não é possível em cidades velhas, que nasceram e cresceram num mundo onde não havia automóveis. Mas para melhorar um compromisso incómodo. Com proibições sim, mas também com alternativas de aparcamento - não se pode meter o automóvel ao bolso; com transportes colectivos, mas que sejam superiores em comodidade e rapidez ao individual; e com liberdade de escolha, dentro dos meios de cada qual.
Não convenci ninguém, claro. Nem importa muito: o progresso, como sempre, vem nada das pessoas, que são hoje iguais ao que sempre foram; um pouco das instituições que, aos solavancos e sempre prontas a involuir, lá vão progredindo; e muito da ciência e tecnologia, que vão resolvendo problemas. É verdade que criam outros - mas, lá está, muitos de nós precisam de bandeiras.
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