"Jamaica somos todos nós", disse o solidário ministro da Administração Interna.
Quer dizer, Jamaica são vocês, que às cinco da manhã se vão meter na fila para tentar marcar uma consulta no centro de saúde para o médico de família vos passar uma guia para poderem marcar uma consulta de especialidade no hospital meses ou anos depois, e nessa consulta entrarem pelo fim na lista de espera para cirurgias, e até serem tratados mais alguns anos depois têm que morder o cinto e aguentar as dores, ou melhor ainda morrer e dar lugar a outros. Deixem-nos governar mais uns anos e trataremos de assegurar que serão todos Jamaica.
Nós vivemos em duplexes na Avenida da Liberdade, em condições que não vos explicamos porque se soubessem tudo faziam como nós fazemos e a Avenida da Liberdade seria uma chunguice, que largamos discretamente quando a visibilidade se intensifica por mudarmos de funções. Mas somos perseguidos pelo nosso tom de pele, que seria de nós se não fossemos?
Somos todos Jamaica, vocês com as penas que têm que arrastar e nós com as nossas.
Aqui recuado, diz-me a IMDB, e já lá chegamos para explicar porque é a IMDB que mo diz, que no dia 23 de Outubro de 1999, numa tarde de sábado entrei numa loja da Avenida da Liberdade.
A loja era completamente dominada pela presença de uma espanhola à volta da qual tudo orbitava. Cinquentona, vistosa, com uma energia de cortar a respiração, palavra rápida como só as espanholas são capazes, a gesticular enquanto corria de escaparate em escaparate onde pegava em peças que despejava nas mãos de todos os funcionários da loja que a seguiam e se viam aflitos para dar vazão àquela jornada frenética. Quando finalmente parava eles despejavam as montanhas de roupa que carregavam no banco corrido que ocupava o centro da loja, onde estava sentado o único homem que parecia relativamente indiferente à presença da espanhola, e ela pegava numa mão-cheia de peças e ia experimentá-las para a cabine de prova, chamando de quando em quando o indiferente para dar uma opinião, e deixando a loja, os clientes e todos os funcionários em suspensão na acalmia que precede a tormenta, que recomeçava mal ela saía da cabine. Raramente ou mesmo nunca assisti a uma situação em que uma mulher foi fervorosamente seguida por uma multidão de homens prontos a beijar o chão que ela pisa, mas dificilmente arranjaria outro modo mais fiel do que isto para retratar aquela loja naquele dia. Resumindo, parecia uma mulher do Almodovar, uma força da natureza.
Num destes intervalos entre incursões da espanhola pelos escaparates lá consegui tratar do meu assunto, que era breve, e fui-me embora, e ela permaneceu e a loja a orbitar à volta dela.
Nesse serão fui ao Monumental ver o filme "Todo sobre mi madre" que tinha estreado justamente naquela sala na sexta, e é por isso que sei exactamente em que dia é que isto se passou. A espanhola que não tinha reconhecido na Calvin Klein era, está de ver, a Marisa Paredes, que tinha vindo a Lisboa para estar presente na estreia. Era mesmo uma mulher do Almodovar.
Isto para dizer que sim, a Avenida da Liberdade é para negros, é até de negros, e basta lá passar às horas em que não anda por lá o povo trabalhador para perceber quem mora lá ou lá se abastece, ainda que de vez em quando no meio dos milionários angolanos albergue discretamente políticos barrigudinhos que conseguem alugar por rendas catitas apartamentos de que se desfazem antes de suscitar a curiosidade dos jornalistas que, aliás, costumam ser muito pouco curiosos relativamente a eles. É para negros, é para mulheres do Almodovar, é para quem tem dinheiro. Só jornalistas muito distraídas não se apercebem disso, mas é verdade que há jornalistas muito distraídas.
Aqui há umas décadas, a Avenida da Liberdade era uma rua cheia de putas que acenavam dos passeios centrais aos automobilistas que a percorriam à noite, nomeadamente pelas faixas laterais. Nessa época conseguia-se transitar de carro em Lisboa, conseguia-se estacionar nas faixas laterais, e circulava-se pela direita na Avenda da Liberdade.
As putas desapareceram, e agora a Avenida da Liberdade é uma avenida nobre onde os generais angolanos montam apartamentos às suas amantes favoritas e os patos bravos montam duplexes aos seus políticos favoritos que gostam de viver na mesma rua que elas.
Não mudou nada, só aumentaram os preços.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais