Quando era menino, aí pelos lados da Ramada Alta, no Porto, havia uma carroça que fazia o circuito dos tascos (não sei se de alguma casa também) para recolher a lavadura. A carroça despedia um cheiro inconfundível, dos bidões sem tampa cheios daqueles restos de comida que fariam, primeiro, as delícias de alguns recos a cevar e, depois, por porco nédio interposto, de amantes do cozido à portuguesa - não sei se estão a seguir o fio do raciocínio.
O moço que conduzia - ia dizer pilotava - a carroça puxada por uma mula esgrouviada e fogosa rejeitou o meu pedido para dar uma volta no bólide, desprezando a coragem que me tinha custado a reunir para lho fazer - um grande desgosto numa vida pontilhada deles.
Não circulam hoje carroças nas cidades; e o equivalente actual, que seria o tractor com um reboque, não recolhe restos de comida - isso ofenderia decerto uma meia-dúzia de directivas devidamente transpostas para o relicário do asneirol doméstico, comummente designado por Diário da República, bem como o ministro da pasta (sim, existe um ministro para o Ambiente, que Deus lhe perdoe a ele e tenha piedade de nós).
Mas restos de comida continua a haver e são pelos vistos um problema. Porcos também há, amantes de cozido e orelheira idem, e clientes dispostos a pagar mais para poderem usufruir de produtos com sabor de outros tempos não serão muitos mas existem e, com tempo e em podendo experimentar e comparar, seriam mais.
O que existe cada vez menos é liberdade: não se pode andar de carroça, nem recolher lavadura, nem criar e vender porcos sem licença, nem abatê-los à maneira tradicional, nem comer nada que não tenha um selo de garantia e um prazo de validade, estabelecidos ambos por parasitas, interesseiros e benfeitores do povo ignaro.
Pois doravante não poderá cada um servir-se e descobrir depois que, afinal, não tem apetite ou a coisa não lhe sabe bem: cozinhaste e trouxeste para a mesa? Tens que comer. Não porque, como dantes se dizia às crianças com fastio, há muitos meninos a morrer de fome no mundo; mas por causa do efeito de estufa.
É este mundo que estamos lentamente a construir: os pais educavam os filhos segundo os valores e interesses que achavam apropriados, baseados nas suas crenças, conhecimentos e experiência de adultos, e se os meninos transgredissem arriscavam açoites, hoje ilegais; agora o Estado educa-nos a todos e os interditos e respectivos açoites são cada vez em maior número - porque o cidadão é menino toda a vida.
Em minha casa, éramos 8 à mesa. Não se falava alto, não se discutia, e quaisquer conversas dos adultos implicavam automaticamente o silêncio respeitoso da filharada, a menos que fosse directamente interpelada. Insistências para comer eram desconhecidas, cada um dos seis rebentos tinha a sua ração tácita, as ocasionais e raras faltas de apetite (mais frequentemente repulsa idiossincrática por certos pratos) eram ignoradas.
Quando comecei a frequentar outras casas, estranhei a barulheira e os dramas: se o menino comia ou não comia a sopa, se era bem alimentado, e olha que a cenoura faz bem aos olhos, só comes sobremesa se acabares o que tens no prato - toda uma parafernália de regras, regrinhas e invencionices, um tédio.
Ainda hoje, fico pasmado com a quantidade de treta que envolve as refeições: as minhas categorias são salgado e insosso, doce e azedo, fresco e passado, canónico ou criativo (a designação simpática para a modernice culinária incompetente e internacionalista), e apetite ou falta dele. E tudo isto justifica pouca conversa: está bom, óptimo, assim-assim ou uma merda - eis tudo. Que alguns dos meus amigos mastiguem a alcachofra porque "faz bem ao fígado" ou ingurgitem quantidades inconfessáveis de fígado de cebolada porque "tem muito ferro", em vez de simplesmente porque lhes apeteça, releva para mim de impenetrável mistério.
Uma vez antes de muitas, ouvi em casa alheia um argumento que me deixou meditabundo, atirado à cara consternada de uma criança indefesa: o menino tem que comer porque há muitas crianças em África que morrem de fome. Levei algum tempo (demasiado porventura, alguns de nós são de raciocínio lento) a concluir que a fome dos meninos em África não fica saciada pelo efeito de as crianças mimadas comerem ou deixarem de comer o que quer que seja na Europa. E encalhei nessa conclusão de irrepreensível lógica.
Lembrei-me desta história por causa do que li aqui hoje: um maduro fretou um avião para transportar de costa a costa, a fim de lhes evitar a morte prematura, 1150 galinhas velhotas para um santuário onde os nobres bichos se vão poder espolinhar à vontade. Isto num país onde, nas grandes cidades, se tropeça frequentemente nos sem-abrigo a dormir nos umbrais das portas. Não me passa pela cabeça negar o direito ao benemérito de fazer com o que lhe pertence o que bem entenda, e menos ainda defender, com o que não é meu, generosidade pública - não sou de esquerda.
Mas lá que este menino grande americano era um daqueles aos quais, para comer o bifinho, se tinham que contar historinhas - era, de certeza.
Todos os dias tomo a minha ração de indignação e ternura, juntamente com três cafés. O café, dadas as suas propriedades excitantes, desperta-me do torpor e dá-me, não vontade de ir trabalhar, que apesar de tudo não se trata de um alucinogénio, mas de acordar; e a ração vou bebê-la a este sítio.
Hoje indignei-me, como de costume, contra eles (eles são os empresários, os consumistas, os republicanos, os accionistas das grandes empresas, os ignorantões, os mal-intencionados - os capitalistas, em suma), desta vez por causa desses patifes que andam por aí a fracturar rochas para libertar gás, que depois é utilizado em actividades criminosas.
E enterneci-me moderadamente com uma gata a querer dar de mamar a uns patinhos, não conseguindo todavia evitar a suspeita de a bichinha ser um pouco burra.
Estava o dia ganho, julgava eu. Mas o Homem põe e a comunicação social dispõe: que antes de acabar o dia fui surpreendido com a notícia de que os golfinhos foram declarados pessoas não-humanas. Isto pode ser um pequeno passo, perdão, impulso para eles, mas é um grande passo para a Humanidade. E fico agora à espera da inclusão na Declaração Universal dos Direitos do Homem das baleias-de-bossa, macacos, cães e focas.
Sou todo a favor dos direitos, da modernidade e assim. Mas, por amor de Deus, nem vos passe pela cabeça incluir as ratazanas. São muito inteligentes, não contesto, mas isso não.
A trela do meu cão é verde de um lado e bege do outro, mas esta delicada combinação de cores não resultou da escolha, aliás avisada, de quem a comprou, mas de puro acaso.
O mesmo acaso poderia ter determinado a cor amarela, e isso seria potencialmente uma grande alhada. É que a visão de um cão com uma fita amarela na trela significa que o animal "precisa de espaço", razão pela qual devemos ou afastar-nos ou dar tempo à alma compassiva que passeia o bicho para passar ao largo.
É pelo menos o que é defendido em 45 (!) países, tendo os materiais pedagógicos já sido traduzidos para 12 línguas.
A notícia não esclarece se uma dessas línguas é o Português. Mas, se esse urgente trabalho ainda não estiver feito, sê-lo-á asinha. Que não há causa parva, bandeira imbecil, ou iniciativa estapafúrdia que cá não chegue, se vier embrulhada na bandeira da defesa de causas boazinhas, em nome de "direitos".
Direitos dos animais, neste caso. Que não basta que quem aprecie não possa ver uma tourada; é ainda necessário que, se nos cruzarmos com um canídeo perigoso devidamente assinalado, mudemos de passeio, não vá, além de corrermos o risco de pisar o cocó do animal, ainda lhe ofendermos os sentimentos.
Para fazer meio quilo de seda natural é necessário assassinar barbaramente entre dois e três mil bichos-da-seda. Por aqui já se vê que, para confeccionar um elegante vestido de Verão, daqueles que devastam corações ou que usa a senhora Christine Lagarde, estamos a falar de verdadeiros genocídios.
Os bichos em questão, quando terminam o seu processo de transformação em insectos, têm o desagradável hábito de perfurarem os casulos para se porem na senhora da alheta, e esta perniciosa tendência estraga algumas valiosas fibras. Daí que os criadores, com oportunista prudência, cozam os casulos, com as lagartas lá dentro, em água fervente.
Isto gela o coração: os pobres animais indefesos, os ocelos (ou lá o que é) arregalados de pavor, revendo num instante as suas até aí confortáveis vidas, e os quilos de folhas de amoreira que devoraram. Ai credo!, que se tivesse aqui à mão um formulário, não sei se não era desta que me inscrevia no budismo ou no PAN.
Mas para as (e os) elegantes com um coração de esquerda (esta modernice dos seres sencientes e não sei quê é, como quase todas as causas, uma coisa de esquerda e de lunáticos, com perdão da redundância), há a alternativa da seda da paz: o insecto Eri vai à vida e os locais recolhem os casulos vazios, com os quais confeccionam à mão uma seda extremamente compassiva.
Se porém ainda isto for demais, há uns filamentos de uma árvore, e umas sementes de uma erva - também dão seda, sobre cuja qualidade o artigo, infelizmente, diz nada.
Já estou por tudo, desde que não se estenda o amor pela Natureza até às bactérias maléficas e aos vermes nojentos, e se deixe Braga em regime de extra-territorialidade.
É que hoje encaro a hipótese de jantar arroz de lavagante na cidade dos Arcebispos, num estabelecimento cujo nome não divulgo. E é claro que não tenciono inquirir de que forma, exactamente, se deu o falecimento do infeliz animal.
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