Anteontem, por ocasião do lançamento de um livro de Joaquim Miranda Sarmento sobre finanças públicas, Cavaco Silva emergiu das catacumbas onde se entretém a redigir tomos ilegíveis sobre as maravilhas da sua pessoa e acção política, e falou.
Disse várias coisas, e das que disse saliento: "Como se tem vindo a verificar, a prática de 'jobs for the boys' é muito negativa para o país e para os portugueses”; “O actual leque salarial da função pública, que no passado se apelidava de albanês, é bem reflexo da hipocrisia e cobardia de boa parte da classe política portuguesa"; “O saldo das contas públicas tal como o das contas externas não é objeto da política económica em si próprio (...) Não faz qualquer sentido que o saldo das contas públicas continue a ser um tema dominante da política orçamental portuguesa"; "Não posso deixar de ligar a perda de receita com a descida do IVA da restauração à acentuada degradação da qualidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O benefício concedido ao setor da restauração está a ser pago pelos utentes do SNS sob forma de degradação da qualidade dos serviços que lhes são prestados, utentes que não dispõem de rendimentos para recorrer aos privados". “A esta medida, o antigo governante associou também a descida das 40 para as 35 horas de trabalho semanal para os trabalhadores do setor da saúde, para concluir: ‘É assim claro que a degradação dos serviços públicos da saúde se deve a decisões políticas erradas tomadas, provavelmente, com propósitos eleitoralistas"; e “Estas medidas de profunda injustiça, atingindo sobretudo cidadão de baixos rendimentos, foram aprovadas não só pelo PS, mas também pelo PCP e pelo BE, o que ilustra bem a hipocrisia de partidos que procuram iludir os portugueses com falsos discursos de defesa dos mais desfavorecidos".
Isto disse, e tenho-me divertido com o frenesim que tomou conta dos jornais e das redes sociais, os primeiros porque estão enxundiados de esquerdistas sortidos e as segundas porque lá mora gente que nutre pelo homem o mesmo ódio visceral que vota a Portas, a Passos Coelho, e a quem quer que seja que não reze no altar do abrilismo socialista, nas suas várias capelas, e que tenha tido o desplante contranatura de governar.
A máquina socialista mexeu-se. E hoje o Polígrafo (uma organização que, em números redondos, tem acertado no que já se sabia e omitido ou manipulado aquilo que mais interessava esclarecer), pressuroso, estadeia uma capa do Independente de 7 de Fevereiro de 1992 onde se denunciam as quinze mulheres que quando Cavaco era PM foram nomeadas para lugares de confiança política. E diz, com fina ironia: “Ora, se agora Cavaco repugna os ‘jobs for the boys’, no tempo em governou não se opunha aos ‘jobs for the girls”. Foi pena não acrescentar que a nomeação de todo este mulherio era bem o sintoma de fortes sentimentos feministas avant la lettre, que era para a gente se rir com vontade.
Claro que há uma diferença de grau e de essência entre o passado e o presente: quinze não são quarenta ou cinquenta; e ministros pai e filha, e marido e mulher, não são meras secretárias ou adjuntas de não sei quê. O PS de Sócrates, cujo pessoal foi quase integralmente recuperado pelo PS de Costa, é o partido corrupto por antonomásia, e esta colonização gargantuesca do aparelho de Estado é o corolário lógico da impunidade com que o eleitorado, anestesiado pela propaganda e por esmolas, brinda os abusos.
Hoje por hoje, Cavaco conta com a minha benevolência: quem põe a esquerda a rabiar, e denuncia o evidente oportunismo do PCP e do Bloco com a autoridade de quem ganhou e reganhou eleições, e além disso fez o que pôde para impedir o ascenso da camarilha golpista que acaparou o poder, tem direito a que eu ponha uma surdina nas reservas.
Porque, se não, tinha que dizer:
Só se poderia ligar a redução do IVA para a restauração à degradação do SNS se as receitas daquele imposto estivessem afectas àquele Serviço. Mas não estão, nem podem estar, porque isso ofenderia o princípio de não consignação de receitas fiscais. E mesmo que, na realidade, a medida de redução tenha sido demagógica, por corresponder apenas a uma promessa eleitoral para ganhar votos, e não se justificar a discriminação positiva do sector restaurador, nada impedia que houvesse cortes de despesas inúteis do Estado. Cavaco, nisso, não fala, nem pode: o seu magistério sempre assentou no pressuposto de que o Estado obeso, investidor, dirigista, dinamizador e visionário, é a pedra de toque do progresso.
Agora que o PS, por obediência aos ditames de Bruxelas e medo dos credores e da quarta falência, se reconciliou com a ideia do défice zero, talvez deixe de fazer sentido que o saldo das contas públicas continue a ser um tema da política orçamental. Mas é irrealista esperar que o único resultado realmente positivo que o PS pode apresentar – a redução do défice – deixe de ser objecto de propaganda. É certo que o país nunca crescerá mais do que aqueles que lhe estão mais próximos no PIB por cabeça sem reduções da carga fiscal; e estas só são possíveis com défice ou cortes. Mas ao défice Cavaco diz, e bem, t’arrenego; e dos cortes não fala, mas é pena.
Finalmente, e quanto “à hipocrisia e cobardia de boa parte da classe política portuguesa”, talvez Cavaco pudesse ter a bondade de explicar onde estão os recursos para pagar adequadamente aos seus estimados funcionários superiores sem emagrecer a máquina. Mas não explica: será por hipocrisia e cobardia?
Dei o meu voto a Cavaco para presidente, à falta de melhor - tenho uma longa prática de votar em males menores.
Quando acabou o discurso de ontem, surpreendi-me, pela primeira vez, agradado: o homem disse o que queria para o país e o que não queria, e porquê.
Isto é uma novidade, que os presidentes costumam refugiar-se em discursos jesuíticos, recheados de recados que requerem intérpretes encartados e que por isso se prestam a enjoativas elucubrações de uma floresta de politólogos e jornalistas.
Os presidentes fazem assim, se quiserem ser reeleitos, para não afugentarem mais eleitores do que o absolutamente indispensável; e, se já não puderem ser reeleitos, em homenagem à ficção de presidente de todos os portugueses que gostam de cultivar - uma homenagem inconsciente à instituição monárquica, que por definição se supõe pairar acima dos partidos.
É claro que o presidente só o é de todos os portugueses no mesmo sentido que o governo eleito o é de todo o país - tem legitimidade e pronto, temos que obedecer mas não somos obrigados nem a concordar nem, ainda menos, a nutrir um acendrado amor pelas personalidades que em cada momento encarnam os órgãos de soberania.
Cavaco mostrou que não é isento, porque a isenção não existe, e fez muito bem: quem o elegeu não quer comunistas perto do governo, nem uma trajectória de choque com as instituições europeias.
(Há uns maduros que nem são europeístas, nem apreciadores do Euro, nem comunistas, como eu, mas não contam, dada a exiguidade dos seus números, além de que não deixamos, neste passo, de ter presente o realismo ululante de o país estar ligado, para sobreviver, à máquina europeia.)
Cavaco disse ao Parlamento o que quer, e sobretudo o que não quer, com a autoridade de quem foi eleito, com maioria absoluta, à primeira volta, pelos eleitores da PàF e parte dos do PS.
Diz-se por aí que, tacticamente, pôs o pé na argola: aqueles deputados do PS que talvez se abstivessem na votação das moções de censura porque não veem com bons olhos a maioria vermelha serão agora obrigados, sob acusação de traição, a juntar-se à tribo.
Não acredito que essa possibilidade não tivesse sido sopesada. E que, portanto, quando disse que o risco de um governo vermelho, pilotado pelo oportunista Costa, é maior do que o risco de um governo de gestão (não foi assim que disse mas é assim que interpreto) estava a enunciar as duas únicas hipóteses possíveis.
Para quem, como eu, ainda há dias, admitia um governo apoiado pela comunistada, para funcionar como vacina ao eleitorado, esta hipótese, que não me tinha ocorrido, não é tão boa, porque é nebulosa a distribuição das culpas (Costa vai chorar baba e ranho, porque os fássistas não o deixaram cumprir o seu glorioso destino, e pode haver quem compre o arrazoado). Mas o resultado será o mesmo - eleições logo que legalmente possíveis. E talvez se estrague menos.
"O facto de essa autoridade lhe faltar - sobre o líder do PSD, sobre o líder do PS, sobre os eleitorados de partidos mais à direita e mais à esquerda - transforma o Presidente da República, independentemente das boas ideias que tenha, numa espécie de fantasma que assombra a vida política, mas não a determina nem sequer nela influi com eficácia. Ler mais: http://expresso.sapo.pt/a-irrelevancia-de-cavaco=f848560#ixzz2pQeT7Vnr"
Compreendo o ponto de vista. Não gosto de Cavaco, tal como a maior parte dos portugueses que o escolheram, porque as alternativas eram... piores.
Ora imaginem que neste momento era Soares o presidente. Que situação de ingovernabilidade existiria, quer com o PSD quer com o PS, forçado a seguir os ditames que a "nossa" irresponsabilidade desde 85 impuseram? Que conflitos, forçados pelo irrealismo dos "desejos de agradar a todos" se tentaria implementar, quando as condições da moeda única impõem a redução da dívida e do défice pela competitividade e não pela desvalorização?
Em Portugal, o país que nem se governa, nem se deixa governar, a democracia efectiva (ops!, afirmação polémica), é mais antiga do que a inglesa. Os nossos governantes, dada a dimensão do país, governam pela permissão dada pelo povo, próximo das portas do palácio, avô, tio e primo do líder. E, "eles sabem" ou tentam saber, o que o povo quer.
A "liderança" em Portugal é uma tentativa de interpretação do que o povo quer, do que deseja, almeja e pretende. Não de criar o que o povo pode vir a querer para si. Cavaco, tal como todos os outros não pode ser "São" Sebastião. Sebastião só o é, depois de morto, quando tudo é possível pela metafísica.
E é assim que o povo quer, e gosta. Cavaco, tal como todos os primeiros-ministros e presidentes em democracia, negoceia constantemente a - permissão - dada indirectamente, e interpretada pelo líder, pelos portugueses. Cavaco, em termos absolutos, "é" o povo.
Na voz de Fernando Pessoa sobre Dom Sebastião:
"Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?"
Esta do "cadáver adiado", não a compro para a nação, para o indivíduo, sim, naturalmente, mas para o país ainda há muito para dar. Pessoa, génio da humanidade, é português, tal como Henrique Monteiro.
Sugestão de leitura para o próximo fim-de-semana.
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