Um ladrão rouba informação da empresa que lhe dá trabalho e com ela põe a boca no trombone, numa história rocambolesca que envolve vários países, polícias, magistrados e políticos.
Agiu por ódio aos ricos? Por radicalismo de esquerda? Por querer dinamitar o sistema bancário suíço? Por ter um invencível horror à evasão fiscal? Ou para, mais provavelmente, vender a informação?
Não sabemos. Líquido é que praticou um crime num estado de Direito, que além do mais não é conhecido por ofensas aos Direitos Humanos, ou insuficiências do seu regime democrático, ou a dureza do seu sistema penal, ou a violência dos costumes. Se permanecesse na Suíça estaria provavelmente preso.
Christine Lagarde não rasgou, como devia, a papelada - passou-a adiante. De toda a evidência, o segredo bancário não é um valor que Christine julgue ser seu dever preservar.
Fez mal. E mal fizeram e fazem todos os políticos que sobre este e outros leaks vêm para a praça pública, o olho arregalado de cobiça, as bocas torcidas num rictus justiceiro, bater as mãos no peito a prometer justiça, sob a forma de multas terroristas, confiscos, quando não prisões - ai que somos tão comunas, quando somos da esquerda social-democrata, e tão cowboys americanos, quando não somos.
É claro que os paraísos fiscais não vão acabar, não obstante a lunática reivindicação de muitos profundos pensadores da coisa pública mundial - a isso se opõe a globalização, que implica liberdade de comércio, que por sua vez gera mais alçapões do que os que consegue ver um super-polícia, e o próprio princípio da nacionalidade e independência dos países - sempre haverá candidatos a furar o esquema.
Donde, prejudicar a Suíça é como fazer apreensões de droga: se forem grandes o produto encarece por algum tempo, após o que a produção, ou o engenho do tráfico, recuperam - porque o consumidor, e a procura, não diminuíram. O traficante vai dentro, as polícias fazem o seu show, as televisões agradecem, os pais de família sorriem agradados - e o tráfico arranja outros actores, e outros circuitos.
Isto é muito frustrante para o contribuinte, que imagina que se não houvesse evasão a sua carga seria aliviada. Puro engano: entre o erro dos cálculos sobre a falha de receita (uma parte do dinheiro evadido regressa aos cofres dos Estados sob a forma de impostos sobre o consumo ou sobre a propriedade), os danos à poupança (os Estados não poupam, os cidadãos sim), e os danos ao investimento (os bancos emprestam para investir na proporção, grosso modo, dos depósitos que detêm), o que sobra para alívio não é tanto como se supõe. E fica ainda menos se nos lembrarmos que não há, no passado recente, qualquer prova de que, salvo diktats dos credores, se os Estados deficitários cobrassem mais, teriam défices menores: se cobrassem mais gastariam mais, ponto.
Os Estados não têm défices e dívida, de forma continuada, por cobrarem muito ou pouco - os défices são escolhas.
Acresce que a confiança nos bancos está já, um pouco por toda a parte, abalada, por o sistema de recrutamento não filtrar patifes, carreiristas e académicos travestidos de gestores, sob a supervisão de farinha do mesmo saco, e se ter perdido algures não os fatos às riscas mas a prudência que dantes vinha com eles. Razão por que o sistema bancário não precisa que se nos abale ainda mais a confiança, mesmo que a não mereça, nem de incentivos a evasões para debaixo dos colchões, ou para aforro em antiguidades ou metais, por exemplo.
Depois, espera-se de responsáveis políticos, em sentido estrito ou lato (Christine Lagarde, os governadores de bancos centrais, a cáfila que está no Eurogrupo, ou nos outros enxundiosos organismos supra-nacionais, são políticos), que sejam mais lúcidos, prudentes, ponderados do que a opinião pública. Esta, além de ser uma rameira volúvel - hoje pensa uma asneira qualquer e amanhã outra oposta - vive a reboque de uma imprensa ignara, esquerdista pela sua maioria, que usa pontapear a lógica, o senso e a gramática na mesma frase em que assopra o lume da inveja.
Estou a fazer a apologia da evasão fiscal? De modo algum: ela financia a concorrência desleal, incentiva o desrespeito pela lei e diminui a importância da concorrência fiscal (esta, precisamente, o melhor argumento para a opinião pública perceber que os impostos altos sobre os ricos e as empresas têm consequências no emprego e na riqueza dos países).
Mas não se combate um mal com outro maior; não se conquista, a prazo, o respeito da opinião pública por se a seguir caninamente; e não governa capazmente quem não sabe mais do que os lorpas com que se aconselha.
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