Até a CIA desclassifica os seus documentos ao fim de algumas décadas, e os documentos da CIA referem-se a façanhas como assassinar políticos e pessoas normais, promover golpes de estado para derrubar governos democraticamente eleitos, inventar ficções para pretextar a proclamação de guerras que fazem milhares de vítimas, financiar grupos terroristas para fustigarem os inimigos estratégicos dos EUA, até para protegerem a discrição dos engates dos presidentes, uma galeria de horrores, coisas cada qual mais indigna que a outra cometidas em nome, nem sempre com sustentação real, do interesse nacional. Ao fim de algumas décadas, não tão poucas que ponham em causa a eficácia das operações desclassificadas, não tantas que os participantes não corram o risco de virem a ser sujeitos ao vexame público por ainda estarem vivos, estão cá fora. Coisas de democracias maduras, em que se conciliam a necessidade de eficácia da acção do Estado que, por vezes, depende do segredo, com a de transparência do Estado perante os cidadãos, para saberem como são governados pelos seus representamtes, que necessita de publicidade.
Não em Portugal.
Em Portugal, a publicação de um livro de memórias por um ex-presidente em que revela conversas privadas com um ex-primeiro-ministro, como se as conversas entre orgãos de soberania fossem um assunto privado e, portanto, isento de escrutínio público, e o jeito que não dá a isenção do escrutínio público? é um escândalo, uma delação intriguista, e é preciso perceber o significado de delação para quem ainda viveu, nem que tenha sido a infância e a juventude, num regime político que recorria à delação para manter um monopólio da representação que, como os monopólios económicos, promove o bem-estar dos monopolistas à custa do bem-estar do país, ou os interesses privados à custa do interesse público. E o apelo ao segredo é tanto mais intenso quanto os participantes nas conversas têm intervenções que prefeririam manter em segredo a ver reveladas. É até clássica uma definição de ética que consiste mais ou menos em fazer, mesmo em privado, o mesmo que se faria se o que se faz fosse tornado público. Quanto menos éticos, mais os participantes se sentem ofendidos com as revelações de conversas privadas entre orgãos de soberania, públicos, mas que gostariam de ser isentos do escrutínio público, e mais facilmente acusam o divulgador de falha ética.
Como dizem os minhotos, eu eu tenho sido aqui menos minhoto do que sou geneticamente e por coração, o caralhinho que os foda!
Para o primeiro post nesta ilustre casa, tinha de escolher matéria pacifica. Vai daí, e porque ainda ontem abri mão de duas horas e de mais de um conto e duzentos, falarei sobre o filme da polémica: Zero Dark Thirty.
Kathryn Bigelow fez um filme muito competente, onde nos conta tudo, desde o high tech, até às simulações de afogamento. Conta-nos todos os passos que foram dados para chegar a Ben Laden. Todos os passos que tomaram conta da vida da mulher que o perseguiu e o encontrou.
Perante isto, perante a história e os factos que a compõem, apareceu Naomi Wolf, um misto de Carla Alves e Maria Teresa Horta com uma cara laroca, ícone liberal das élites democráticas, que vem a público desfazer Bigelow.
Em modo epistolar, lança-se como um lobo à carótida de Bigelow. Chama-lhe a Riefenstahl da administração Bush e dos poderes ocultos. Acusa-a de serva da tortura e dos agentes que a praticaram. Julga-a sumariamente por colaboracionismo com a CIA, os militares, os poderes ocultos e o pior de tudo: os Republicanos.
Não escondo a minha preferência pelos Democratas, nem o meu entusiasmo por Obama, malgré tout. No filme, as mudanças políticas são bem retratadas, são encaradas tal qual são: o tempo traz a sucessão de diferentes tempos políticos, e o de Obama é necessariamente diferente do de Bush, o mundo é diferente em Obama. Bigelow constata este facto, mostra-nos uma administração escaldada pela "armas de destruição massiva no Iraque", mais prudente, mais insegura na aproximação, mais observada por um mundo que já guardou na gaveta da história o horror do 9/11. Obama e os seus homens são aqui muito bem tratados. Não percebo o problema de Wolf.
A tortura domina o inicio do filme, do processo. Deu resultado. A crueza com que nos é mostrada é semelhante à Paixão de Gibson; não é um filme para os mais sensíveis. A componente multifacetada da relação inquiridor-torturado é muito bem explorada e em momento algum somos empurrados para a simples dialética do bom policia e do bandido.
Entre outras coisas, se há uma particularmente bem sucedida no filme, é despertar-nos o dilema moral e ético da tortura. Não é a situação fácil do inocente torturado, mas a dificuldade do confronto intimo de cada um de nós com a eficácia da tortura.
Wolf não quis ver nada disto, aliás, não quis ver nada; quis pendurar-se num enorme sucesso e ser falada às suas custas.
Mas Wolf tem virtude no que faz, lembra-nos que não é só neste rectangulozinho nosso que há gente assim, lembra-nos que na vida para cada Sarah Palin há uma Naomi Wolf.
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