Quando a Comissão de Censura e as editoras começam a colaborar preventivamente para evitar a publicação de conteúdos que possam perturbar a moral e os bons constumes, sabes que estás a entrar numa espécie de Primavera mercelista em sentido oposto: no Outono bloquista. Se lhes deixares a rédea solta, prepara-te para uma longa noite fascista.
Enquanto o ministro Eduardo Cabrita e a Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género às ordens dele varrem dos escaparates os livrinhos de actividades para as férias para crianças dos 4 aos 6 anos que "acentuam estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens", e a escritora e gestora cultural Inês Pedrosa propõe acabar com a venda de brinquedos diferentes para meninos e para meninas nas prateleiras do Continente, o Bloco de Esquerda já vai muito mais à frente nas questões da igualdade do género, e já experimentou as casas de banho partilhadas no Acampamento Liberdade.
Como explicou a Ana Rosa, uma das campistas, "Para nós, não faz sentido ter casas-de-banho binárias. A separação homem/mulher é extremamente redutora". Está cheia de razão, não faz mesmo sentido nenhum.
Inesperadamente, em vez de usufruirem da oportunidade para "desafiar os limites do género e os papéis de género e os pudores", por exemplo, espreitando-se uns aos outros ou organizando brincadeiras uns com os outros durante o banho, os rapazes, provavelmente privados do papel que a revista Gina tinha tido na educação sexual de outras gerações de rapazes antes de ser removida da circulação por também reflectir os estereotipos de género, e movidos por uma curiosidade anacrónica pela anatomia do corpo feminino, ou meramente para organizarem uma experiência cultural de recriação da visita dos marinheiros do Vasco da Gama à Ilha dos Amores e verificação in-loco da hipótese colocada pelo poeta Luís Vaz de Camões no verso "andando as lácteas tetas lhe tremiam", usaram esta experiência para olhar para as raparigas, tendo provocado desconforto nalgumas delas. Boys will be boys.
Perante este inesperado revés, os bloquistas regressaram às casas de banho separadas. Mas o Ricardo Gouveia, moço novo mas já senhor de uma retórica espertalhona, não desiste, porque "continuamos a ter no nosso horizonte chegar um dia e poder dizer que vamos tornar isto misto, porque queremos mesmo desafiar os limites do género e os papéis de género e os pudores". Ah, Ricardo, Ricardo, o que tu queres sei eu!
Uma editora privada editou livros de exercícios escolares para crianças dos 4 aos 6 anos que os pais podem, se quiserem, comprar para ocupar os seus filhos durante as férias. E decidiu publicar um para rapazes e outro para raparigas, com grafismos e exercícios diferentes, sendo que qualquer pai ou mãe pode comprar para o seu filho ou filha aquele que bem entender, ou os dois, ou mesmo nenhum e simplesmente deixar as crianças serem crianças durante as férias grandes na esperança de com essa liberdade desenvolverem alguma autonomia para serem alunos interessados no regresso às aulas.
Os exercícios propostos, pelo menos o exercício que saltou para as páginas dos jornais e não sei se é ilustrativo de uma tendência geral ou se apenas se representa a si próprio, têm graus de dificuldade diferentes no livrinho para os meninos e no livrinho para as meninas. O labirinto dos meninos é mais difícil de resolver que o labirinto das meninas. Se eu tivesse uma filha nesta idade, como já tive, com mais gosto pela matemática do que pela conversa, como era o caso, e me desse ao trabalho de folhear os livrinhos antes de os comprar, comprar-lhe-ia o dos meninos. Isso, se a quisesse manter ocupada a estudar durante as férias, o que nunca foi o caso, para a formatar para 12 anos mais tarde conseguir média para entrar em Medicina.
Mas há pais que preferem tentar formatar as suas crianças para um dia entrarem em Medicina e que desde a idade do Jardim de Infância lhes compram livrinhos para estudarem durante as férias. E, entre estes, há os que não admitem as diferenças de género, mesmo entre livros que eles têm a liberdade de não comprar ou de comprar, e neste caso, escolher, para os seus filhos ou filhas. E chamaram a polícia.
A rede de bufos do neo-fascismo dos costumes, os do velho e clássico fascismo dos costumes apresentavam queixa de outras coisas como mulheres de calças, alunas de liceu sem bata ou rapazes de cabelo comprido, mobilizou-se para apresentar múltiplas queixas de discriminação de género por haver duas versões do livrinho a uma das novas polícias dos costumes, a Comissão de Cidadania e Igualdade do Género. E esta, em vez de se dedicar a resolver as questões sérias e reais de cidadania e igualdade do género que persistem na sociedade, abraçou, como tem sido hábito, as pretensões dos neo-fascistas dos costumes a terem uma palavra a dizer sobre os estilos de vida e as decisões tomadas em liberdade pela generalidade dos cidadãos e decidiu "agir em conformidade. O assunto não é indiferente, nem vai morrer aqui", o que significa que vai investigar se consegue arranjar fundamento legal para censurar e proibir a venda do livro que os irrita. Não pode haver livrinhos pró menino e livrinhos prá menina. E aproveitar para, de caminho, fazer a sua prova de vida cíclica, não vá alguém suspeitar que comissões como ela não servem para nada.
Eu, por mim, quero que estes neo-fascistas se f., e continuo a ter pena de a Constituição da República Portuguesa de 1976 não ter generalizado a proibição das organizações que perfilhem a ideologia fascista para a de organizações que perfilhem ideologias totalitárias. Mais do que isso, receio que qualquer idiota que um dia se proponha mobilizar a sociedade contra este neo-totalitarismo, mesmo sem ter a mais pequena ideia sobre como resolver os problemas que de facto a sociedade devia resolver, acabe por se conseguir fazer eleger para aquilo de que é manifestamente incapaz, governar. Não seria inédito.
PS: Ainda o dia não acabou e já esta história de censura teve um final feliz. O ministro adjunto, o mesmo que enquanto deputado desligava o micofone a adjuntos de ministros, mantém o gosto por desligar microfones depois de chegar a ministro adjunto, e deu orientações à Comissão de Cidadania e Igualdade do Género para recomendar a retirada dos livrinhos da circulação. O que confirma duas coisas: a inutilidade de comissões como esta que apenas servem de magafone aos ministros que as tutelam; que o ministro é coerente com o seu exemplo cívico de igualdade de género no único lar de Portugal onde tanto o marido como a mulher são ministros. É o Tempo Novo.
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