Há tempos havia decidido não voltar a ver a Quadratura do Círculo, por ter evoluído para um programa de debate entre Jorge Coelho, que apoia o PS, Pacheco Pereira, que apoia o PCP e o Bloco, e Lobo Xavier, que apoia Costa, todos irmanados numa solidária aversão a Passos Coelho e admiração pelo patente génio do trafulha que agora nos pastoreia.
Os programas de debate político, salvo os frente-a-frente entre deputados, que repetem os mesmos argumentos já utilizados no Parlamento, transformaram-se em rodas de amigos de onde está ausente qualquer forma realmente diferente de ver a coisa pública. E por exemplo Santana Lopes, outrora o enfant terrible do PSD (PPD/PSD, como diz, não vá alguém julgar que não é contemporâneo das gloriosas lutas do falecido Sá Carneiro), confraterniza semanalmente com António Vitorino, ambos remoendo com deleite o estatuto e os proveitos que as respectivas carreiras políticas lhes garantiram, Santana insinuando às vezes que talvez pudéssemos estar um pouco melhor, e Vitorino garantindo sorridentemente que não senhor, estamos em mãos boníssimas.
De debates, os espectadores preferem os sobre os méritos e deméritos de Jorge Jesus ou outra refulgente personalidade do mundo do futebol, e fazem muito bem: sempre vão mobilando o imenso vácuo que lhes habita as cabeças, e o que é facto é que com Costa tá-se melhor, o PCP vela pelos dereitos dos trabalhadores, o Bloco pelos dos transsexuais, e a Europa há-de tomar conta de todos, que nós somos pequeninos e eles não querem cá chatices.
Isto é estranho. Que num país que tem a quarta ou quinta dívida pública do mundo, cujo serviço em juros, medido em percentagem do PIB, é, no acabrunhado rol de potenciais caloteiros, o primeiro ou segundo; que sobrevive com crédito e taxas de juros relativamente moderadas apenas porque vive ligado à máquina do BCE, o qual estatutariamente apenas nos apoia porque tem a desculpa de evitar a desinflação, risco que está a dar sinais de ter desaparecido; que cresce raquiticamente; e que segundo os comunistas da Bayer e os genéricos, ambos apoiantes do governo do dia, jamais pagará o que deve, pelo que deve desde já dizer aos credores que vão bugiar, a fim de estes nos continuarem a emprestar, mas sem arrogâncias: seria de esperar que as melhores cabeças não apenas denunciassem o absurdo risco em que o país está mas também se digladiassem, de faca nos dentes, sobre o caminho a seguir.
Mas não. O caso do dia é a decisão da Concertação Social que pariu um aborto, que se pode descrever assim:
O salário mínimo sobe mais de 5% (27 Euros sobre 530, a que acrescem os 23,00% da TSU - já há um desconto de 0,75% - e aumento do custo de seguro de acidentes); as associações patronais encararam com horror a percentagem, cientes de que nem a situação de inúmeras empresas, nem a do país, nem a taxa de desemprego, nem a de inflação, recomendariam um tal salto; e para dourar a pílula o comissário de serviço da Situação, o celebrado ministro Vieira da Silva, ofereceu um aumento do desconto sobre a TSU, de 0,75 para 1,25%, passando portanto o encargo da entidade patronal a ser de 22,50%, incidindo sobre os salários mínimos pagos, e não os 23,75% que incidem sobre todos os outros. É fantástica a gigantesca baralhada que todas estas cabeças são capazes de produzir, no afã de poderem fingir que estão a concertar.
Contas feitas, o que os "patrões" pagam a menos do que pagariam sem a "benesse" são cerca de 3 Euros em 27 (isto é, pagando 22,5% em vez dos anteriores 23%). O que isto quer dizer é que as contas futuras da Segurança Social serão agravadas nesta medida e, portanto, ou o contribuinte futuro suporta a diferença ou, mais provavelmente, os futuros reformados a suportarão, dada a demonstrada insustentabilidade da trajectória das pensões sociais. Com a anuência dos "patrões" portanto, a Concertação colaborou numa pequena vigarice.
O que os patrões deveriam ter feito era não chegar a acordo algum, com ou sem descontos de mercearia, e recomendar aos seus associados que se puderem aumentar aos seus trabalhadores sem pôr em risco as empresas o façam, e se não puderem não. Mas isso era se fossem patrões, e não poltrões.
Pois bem: Dá-se o caso de os comunistas, desta vez, não estarem dispostos a um arranjo que não é tão penalizador para o patronato como desejariam, além do que começam a ter fortes suspeitas de que, para o PS ganhar eleições, podem eles perder clientela; e o PSD resolveu, e bem, não dar cobertura a mais um episódio governamental da novela "gaste agora, dê-nos o seu voto, e pague depois, quando abrir os olhos". Ora, os três senhores do primeiro parágrafo acham que isto é baixa política por entenderem que, sob pretexto de que o PSD tem o rabo trilhado na matéria, destrilhá-lo seria incoerência. E portanto entendem que, faltando o apoio dos dois pés botos da geringonça, deve a chamada direita suprir a falta.
Isto acham eles. Eu acho que tenho livros atrasados para ler, e filmes para ver: parece que estão disponíveis para aluguer episódios dos Three Stooges.
O primeiro ministro António Costa regressou a uma escola pública.
Não para lá levar ou trazer os meninos, que, os meninos dele, pô-los num colégio privado, era só o que faltava andarem na escola pública misturados com os filhos dos pobres? Nem para reaprender a juntar as sílabas, que burro velho não aprende línguas e o Português dele é um caso perdido. Nem em missão inchussonal que, entre feriados e tolerâncias de ponto, não é tempo delas.
Foi lá por a escola dar um bom cenário para mais uma acção de populismo, desta vez a sua mensagem de Natal. Como se fosse a uma feira de gado.
Post scriptum.
A reputação que eventualmente restasse à IURD como igreja foi devastada pela divulgação há anos atrás da gravação de uma conversa privada sobre dinheiro entre dirigentes que ignoravam que estavam a ser gravados. Menos entre os fanáticos da seita. A divulgação de conversas privadas entre os delinquentes que nos governam pode assassinar igualmente a reputação da democracia, se os ouvintes partirem do princípio, que é falso, mas a alguns pode parecer plausível, de os outros políticos serem tão ordinários como os membros deste bando. Menos entre os fanáticos do bando. Pelo que a comunicação social se devia abster de as divulgar.
Há países em que há fixação legal do salário mínimo e onde este é alto; e outros onde não há e este é igualmente alto, e até mais alto, do que nos primeiros, excepto quando é baixo; há países sem fixação legal do salário mínimo onde ele é baixíssimo, altíssimo e assim-assim; e países onde o salário mínimo é alto, nominalmente, mas o dinheiro não serve porque, para certos bens, o que há são listas de espera. Quanto à relação entre o salário mínimo e o médio, dentro de cada país (é o índice de não sei quê), há para todos os gostos mas, no nosso caso, os dois estão mais perto um do outro do que na maioria dos países.
Não vale a pena tentar encontrar o caminho da recta opinião (se se deve, ou não, fixar legalmente o salário mínimo, e a que nível) na floresta de literatura sobre o assunto (uma espécie de Amazónia da Economia, quase tão vasta como a que existe sobre moeda) porque há exemplos, e correlações, para ilustrar convincentemente todas as teses, e o seu contrário. E não se pode esperar nada de estudos, porque para estes serem válidos seria preciso, em duas sociedades iguais, ou parecidas, legislar numa e não legislar noutra, aguardar um certo tempo e, desde que todas as outras condições que influenciam a criação de emprego se mantivessem iguais, tirar conclusões. Mas nem há duas sociedades iguais nem, sobretudo, todos os outros factores evoluem da mesma maneira, nem é possível calcular exaustivamente de que forma uns factores interagem com outros.
Assim, ficamos como no princípio, com o nosso palpite. Eis o meu: o aumento do salário mínimo cria dificuldades acrescidas para pessoal indiferenciado (isto é, que não sabe especificamente fazer nada) encontrar o primeiro emprego; incentiva o despedimento, ou a não contratação, daqueles trabalhadores que desempenham tarefas que podem ser automatizadas, porque é cada vez mais barato automatizar; e empurra para cima os outros salários, para restaurar a hierarquia salarial que existia antes, o que numas empresas pode, mas noutras não, ser acomodado. Se o livre jogo do mercado de trabalho conduzir a salários de miséria em alguns casos, poderia talvez haver compensações directas da comunidade para os trabalhadores, desde que compatível com fiscalidade baixa e se evitassem distorções da concorrência e fenómenos de corrupção. Pode ser? Não faço ideia. Mas faço ideia de que distorcer o mercado do trabalho, como qualquer outro, só pode levar a consequências perversas, e no caso deste elas são o desemprego. Este efeito pode ser mascarado por outros factores benéficos para o emprego, mas não é menos real por causa disso.
Um liberal doutrinário dirá que a empresa que fecha por não poder acomodar aumentos de salários permite o aumento de produção de outra mais eficiente, que lhe herdará a quota de mercado e parte dos trabalhadores; um esquerdista idiota, com perdão da redundância, dirá que um patrão que apenas pode sobreviver pagando salários de miséria deve desaparecer, sendo substituído por um outro com adequada formação, que brotará da geração mais bem preparada de sempre; um consultor de gestão afirmará convicto que o que interessa é encontrar formas criativas, imaginativas, inovadoras, de aumentar as margens, pelo que o custo do factor trabalho é muito menos relevante que a aplicação de ferramentas de gestão moderna; um socialista dirá que é preciso apostar na formação e nas novas tecnologias para reforçar a competitividade (competividade, se o socialista em questão for o actual primeiro-ministro); e todos, mais a gente que se julga de direita por ser conservadora nos costumes e acreditar no milagre de Fátima, e ainda os gestores e economistas que saem das universidades às fornadas, bem como os professores deles, estarão de acordo em que a classe empresarial do país é lamentável, ao contrário da dos jornalistas, dos poetas, dos políticos da preferência de cada qual, e ainda da dos eleitores a que todos pertencemos, e que acredita piamente em todas estas tolices, porque com elas lhes martelam os ouvidos há décadas.
Pois a candente matéria está em debate pelo organismo daninho que se dedica à concertação social, um dos fétiches da nossa Constituição. O que penso sobre ele disse já inúmeras vezes, por exemplo aqui - é uma câmara corporativa, e devia ser extinta.
Desta vez, o leilão abusivo no qual as confederações fingem umas que representam os trabalhadores e outras os patrões, sob a batuta de um ministro que finge que tem a mais remota noção do que as empresas podem pagar, todos para licitar bens roubados porque se trata de riqueza que não criaram nem sabem como se cria, e que de todo o modo não lhes pertence, é ainda mais caricata do que o habitual: as confederações patronais querem evitar estragos na imagem e danos maiores, tolhidas de medo que as tratem de fascistas; a CGTP, uma filial do PCP, finge que não é aliada do governo - uma novidade, costumava limitar-se a fingir que não era comunista; a UGT, uma filial do PS, finge que não fará o que lhe mandarem; e o ministro Vieira finge que está ali a discutir, quando na realidade está apenas a tentar encontrar o ponto de equilíbrio que lhe renda mais votos, que é a matéria-prima de que depende a sobrevivência da sua lamentável carcaça política.
Vão-se entender, no fim. A CGTP carpindo que não se chegue desde já aos 600 euros porque o governo não é suficientemente patriótico e de esquerda mas, enfim, a direita ainda é pior; a UGT triunfante porque, mais uma vez, deu provas de grande realismo; as confederações patronais satisfeitas porque conseguiram garantir que a legislação laboral não volte a ficar cubana; e o governo porque deu um brilhante exemplo de que o diálogo funciona.
Os abutres são assim: disputam agressivamente a carniça mas todos se vão alimentando. E o empregado? Vai ficar melhor - se não for despedido. E o desempregado? Também - se encontrar emprego.
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