O Serviço Nacional de Saúde é um sucesso socialista: foi concebido como sendo universal e tendencialmente gratuito, carácter que lhe vinha da Constituição (artº 64º).
Foi um triunfo, nos anos iniciais, ao melhorarem-se espectacularmente os indicadores de mortalidade infantil e esperança de vida, entre muitos outros, mesmo que a evolução científica e tecnológica, além de progressos no saneamento e nos hábitos de higiene, também tenham desempenhado o seu papel, habitualmente desconsiderado.
Na comparação com outros países, que é a que interessa quando se quer medir o desempenho, bastará dizer que Portugal, no indicador esperança de vida, ocupava em 2017 o 22º lugar em 201 países, à frente por exemplo da Alemanha, Dinamarca ou Reino Unido. É obra: só no futebol, e mesmo assim apenas enquanto Ronaldo não esgotar o prazo de validade, é que o nosso país se afasta do lugar que lhe cabe na hierarquia dos países medida em PIB por cabeça, onde aqueles três países estão naturalmente muito à frente de nós.
A Constituição poderá ser socialista deliberadamente, e a maioria dos cidadãos inconscientemente, mas o sector privado da Saúde nunca deixou de existir e crescer. Isso explica que o clamor que de há uns anos a esta parte tem vindo em crescendo contra o SNS não tenha o carácter explosivo que teria sem os privados: estes amortecem, para quem tenha seguros ou sistemas particulares como a ADSE ou os SAMS e muitos outros, as consequências da degradação, obsolescência e esgotamento dos estabelecimentos de propriedade pública e os seus crescentes e desumanos prazos, falhanços e insuficiências.
Nada que surpreenda: o socialismo acaba, como se sabe, quando acaba o dinheiro dos outros. E como o establishment interiorizou finalmente que défices não, e intui que não pode continuar a aumentar a ordenha da vaca leiteira dos impostos indirectos, sob pena de o eleitor se aperceber que está a ser sangrado em vida, há um grande mal-estar. Daí a guerra com a ADSE e as greves cirúrgicas dos enfermeiros: o Poder não pode ceder porque não tem dinheiro para ceder; e a tentação cresce de demonizar os privados e tachar os trabalhadores públicos de serventuários de interesses obscuros.
O jornalismo, como é vulgar em situações de crise, vai colher a opinião dos senadores, e estes são entre nós, quase sempre, gente que caucionou durante décadas o tipo de políticas que na economia, na saúde, na justiça e no resto, nos trouxeram à condição, para a qual caminhamos velozmente, de lanterna-vermelha da Europa.
Constantino Sakellarides é um desses: fala muito e imprecisamente, e não tem na realidade nenhuma ideia nova sobre a forma de resolver os problemas com que se defronta o SNS: mais orçamento, mais isto e mais aquilo e mais senso – o dele – com menos reivindicações, esta a receita que ministra, envolta em frases evasivas e enigmáticas.
Confesso: Desmontar o chorrilho de meias verdades, equívocos, vacuidades e imprecisões da entrevista seria como andar à paulada a gambozinos no meio do nevoeiro. Dispenso-me.
Num ponto, porém, foi clara: o jornalista quis saber o que pensava Constantino do que disse Rui Ramos no Observador, onde se referia “a uma ideologia do SNS que teria ódio ao negócio da saúde e uma velha obsessão do socialismo com a estatização dos setores básicos da economia”.
O que Rui Ramos disse só não é um truísmo porque em Portugal, infelizmente, nem os factos contrariam as crenças esquerdistas. Pois o velho senador riu, e declarou:
“É difícil encontrar tanto preconceito numa só frase! As pessoas não conhecem a história da saúde, não conhecem porque é que com a Revolução Industrial nós tivemos segurança social, porque é que a segurança social nos países mais avançados evoluiu de uma certa forma e nos países do sul da Europa evoluiu de uma forma diferente. O SNS não foi uma pessoa que num dia se sentou e disse ‘temos de ter um Serviço Nacional de Saúde’. Não foi um pecador que numa noite de desvario se sentou e criou um monstro. Isso que me leu, tenho pena que tenha sido escrito por uma pessoa com um background académico”.
Fantástico: as universidades, hoje e desde há poucas décadas, são mais vezes sim do que não coios de lunáticos e marxistas reciclados em engenheiros de costumes e magos da economia vudu, mas nem todas nem todos ꟷ Rui Ramos não faz parte da seita. Mas é historiador, e isso dá vontade de rir a Sakellarides, que é “professor” de políticas e administração de saúde, tem uma extensa carreira como funcionário do que está e julga conhecer bem a história da segurança social, provavelmente porque tresleu sobre o assunto meia dúzia de livros de autores suspeitos.
Não há outra gente? Há, claro. Mas não são de esquerda, e a nossa tragédia é esta: continuamos a querer resolver problemas com quem faz parte deles.
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