Sábado, 22 de Junho de 2019

Guerra perdida

Compareci no hospital à hora marcada, em jejum, para o efeito de me enfiarem pelo rabo acima um gadanho para inquirir in loco dos desmandos de uma víscera indisciplinada. Como uma desgraça nunca vem só, a maré foi julgada oportuna para estadear dentro de um tubo, imóvel, ao som de várias escaramuças de metralhadora, por espaço de mais de meia hora, com o propósito de apurar o estado de uma outra, usualmente discreta, mas que em exame anterior havia dado de si indicações ominosas.

 

É bom de ver que o estado de espírito não era excessivamente bem-disposto. E a ausência da ração de três cafés com que há muito tempo começo um novo dia recomendava, para quem me conhece, a precaução de me passar ao largo.

 

A menina na recepção, após um pequeno tempo de espera, disse:

 

 ꟷ Prontos, Sr. José, é sempre em frente, na sala tal, serviço tal.

 

Logo ali, signifiquei carrancudo à funcionária que Sr. José era o meu jardineiro. E na tal sala outra recepcionista, igualmente novinha, simpática e ignorante, foi objecto do mesmo esclarecimento e da desnecessária informação de que o meu sobrenome figurava no papel que tinha na mão.

 

O médico, jovenzinho (há uns anos uma profusão de profissionais me começaram a parecer jovenzinhos) era surpreendentemente da mesma escola, mas prudentemente abstive-me de lhe dar a formação, antes do exame, em normas de trato de que carecia; guardei-a para depois.

 

Os resultados dos exames vieram e, como esperava (pratos ruins não caem abaixo do louceiro), não havia nada além da patine e das mazelas comuns para a idade e estilo de vida.

 

Fui mostrá-los ao meu médico, amigo antigo e anormalmente (para a profissão) sensato, na clínica que dirige.

 

Actualizou o meu cadastro, inquiriu, como habitualmente, se já tinha deixado de fumar e, como habitualmente, foi inteirado de que sim, há cerca de dez minutos, preencheu requisições para análises lá para Setembro, e como na recepção da clínica já tivesse havido o ritual do “Sr. José” para a frente e “Sr. Graça” para trás, contei-lhe a história – da clínica dele e do hospital privado onde torturam as pessoas a requisição médica e, sem requisição, se lhes dirigem como se pertencêssemos todos à geração mais bem formada de sempre.

 

Disse-me que era uma guerra perdida ꟷ a malta nova era incapaz de aprender fórmulas correctas de trato. Mas que, se eu julgava que a coisa era fácil de explicar, lhe mandasse um texto simples. Claro que o que ele queria era fechar-me a matraca, mas o expediente escolhido não era o mais indicado para mim, que tendo a ser incontinente verbal, e pior ainda por escrito.

 

O texto que lhe enviei, sumário e simples, figura abaixo.

 

Convenções sociais são as normas, geralmente não escritas, e que evoluem lentamente, pelas quais se regem os cidadãos nas suas relações com os outros. É em nome delas que ninguém em seu juízo comparece a um velório de pijama ou vai a um casamento em fato de banho; e é em nome da evolução dos costumes que já ninguém é tratado por “Vossa Mercê”.

 

Variam com o tempo e têm vindo há muito a mudar de mais para menos formais. Não cabe porém aos funcionários deste estabelecimento ou qualquer outro serem inovadores em matéria de trato social, mas antes respeitarem as normas comummente aceites, o que se verifica frequentemente não acontecer.

 

Razões por que abaixo se dão, em termos práticos, orientações sobre as fórmulas de trato que devem ser seguidas quando os funcionários se dirijam a utentes desta Casa de Saúde.

 

Em relação a utentes do sexo feminino

 

Quando exista e se conheça o grau académico, as senhoras devem ser tratadas por esse grau, por exemplo: Sra. Dra., Sra. Engenheira, Sra. Arquitecta, etc. Deste modo, e NUNCA simplesmente por Dra., Engenheira, Arquitecta, etc.

 

Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (o caso mais vulgar é a sala de espera) deverá, além do Sra. [grau académico] acrescentar o primeiro e o último nome, por exemplo: Sra. Dra. Maria Alves, Sra. Engenheira Antónia Ferreira, Sra. Arquitecta Francisca Silva, etc.

 

Quando não exista ou não se conheça o grau académico, as senhoras devem ser tratadas pelo nome próprio, precedido de Sra. Dona. Por exemplo, Sra. D. Maria, Sra. D. Antónia, Sra. D. Francisca, etc. É preferível, porém, se a pessoa tiver dois nomes próprios, usar os dois, como segue: Sra. D. Maria da Glória, Sra. D. Antónia Maria, Sra. D. Francisca da Anunciação, etc. NUNCA Sra. Maria, Sra. Antónia, Sra. Francisca, etc.

 

Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (por exemplo, na sala e espera) deverá, além do Sra. D. [nome ou nomes próprios], acrescentar o último sobrenome, tal como: Sra. D. Maria Alves, Sra. D. Antónia Ferreira, Sra. D. Francisca Silva, etc.

 

Em relação a utentes do sexo masculino

 

Quando exista e se conheça o grau académico, os senhores devem ser tratados por esse grau, por exemplo: Sr. Dr., Sr. Engenheiro, Sr. Arquitecto, etc. Deste modo, e NUNCA simplesmente por Dr., Engenheiro, Arquitecto, etc.

 

Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (por exemplo, na sala de espera) deverá, além do Sr. [grau académico] acrescentar o primeiro e o último nome, a saber: Sr. Dr. Mário Alves, Sr. Engenheiro António Ferreira, Sr. Arquitecto Francisco Silva, etc.

 

Quando não exista ou não se conheça o grau académico, os senhores devem ser tratados pelo nome próprio e último sobrenome, precedido de Senhor, quer os funcionários se lhes estejam a dirigir directamente quer estejam a ser chamados, por exemplo na sala de espera. Quer dizer, no caso, Sr. Mário Alves, Sr. António Ferreira, Sr. Francisco Silva, etc. Ou, alternativamente, apenas por Senhor seguido do último sobrenome, por exemplo Sr. Alves, Sr. Ferreira, Sr. Silva, etc., mas neste último caso apenas quando o funcionário se esteja a dirigir directamente ao utente.

 

A razão de ser desta distinção é que quando se chama uma pessoa na sala de espera devem ser limitadas ao máximo as probabilidades de confusão, para além de ser útil significar publicamente, pelo formalismo do trato, o respeito que à instituição merecem todos os clientes.

Em relação a crianças e adolescentes

 

Crianças podem ser tratadas pelo nome próprio e por tu, se muito novinhas, mas se chamadas, por exemplo na sala de espera, deve preceder-se o nome próprio e sobrenome de “menino” ou “menina”, por exemplo menino Mário Alves, menino António Ferreira, menina Francisca Silva, etc.

 

Com adolescentes, se ainda novos, pode suprimir-se o “senhor” e “senhora”, mas não se deve utilizar o “tu”.

 

É em nome do respeito devido a todos os clientes desta casa que se recomenda a atenção às normas de trato vigentes, cuja ignorância pode ofender, cujo atropelo não tem quaisquer vantagens e cuja memorização não apresenta particulares dificuldades.

publicado por José Meireles Graça às 16:28
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