Segunda-feira, 4 de Junho de 2012

As criadas

 

 

Eu espirrei e ela disse "Bom tempo; espirram os bodes", ao que a minha mãe respondeu "Ó Mariana, o que é que você disse?" E a Mariana explicou que era assim que se dizia na terra dela, "minha senhora, quando as pessoas espirram". "Então você está a chamar bode à menina, Mariana?" E a Mariana, que era de Barrancos, percebeu que aquilo não estava bem. Por isso dali para a frente, cada vez que eu espirrava no berço, a Mariana dizia "Bom tempo!" e a minha mãe, se a ouvia, fazia-lhe uns olhares, mas nunca a conseguiu ensinar que o que estava errado era a ideia em si mesma, de chamar bode a um bebé, e era indiferente que ela dissesse ou não a palavra "bode". A Mariana gostava de prever as condições meteorológicas, e ficava toda contente quando me ouvia espirrar porque, no entender dela, era prenúncio de "Bom tempo!" e não conseguia deixar de o dizer. Tenho quase a certeza que me lembro de a ver aproximar-se, ocultando-me a vista, ocupando todo o meu campo de visão, o bigode esparso de pêlos escuros muito erectos, para sussurrar "Bom tempo!" junto à minha orelha, porque a minha mãe estava ali mesmo ao pé.

 

Depois veio a Assunção, gorda e minhota, o bigode da Assunção era loiro. Nessa altura eu já andava, e a Assunção parecia-me altíssima, volumosa, os aventais da Assunção levavam muito pano, eu tinha ideia que podia dormir nos aventais da Assunção. Essa gostava de me passear, "os meninos não é para estarem fechados, balha-me Deus, por causa das vactérias minha senhora", e todos os dias me vestia de saia lavada, passada a ferro, impecável, e andávamos na rua, para cima e para baixo, eu pela mão da Assunção, até ela me considerar passeada.

 

Foi substituida pela Noémia que chegou num sábado, bonita e decidida, um olho verde e outro azul, fomos buscá-la à camioneta. Vinha de Valença do Minho e ficou muitos anos. Seis anos, para ser rigorosa. Naquela idade é uma vida inteira. Não a deixámos na camioneta. Deixámo-la num altar minhoto, onde já estava o António, porque casou "lá de casa" e os meus pais foram os padrinhos.

 

Era da Noémia a barriga que sossegava a minha irmã. A mais nova de todos, era crédula e gozada por nós, faziamos sempre a mesma graçola durante as refeições. Consistia em bater com uma mão debaixo da mesa, como quem bate a uma porta, e dizermos uns para os outros "olha, vem aí o lobo mau!". A cara dela ficava muito encarnada, os olhos largavam lágrimas e, com uns deditos abebezados, acenava à Noémia que já sabia o que fazer: aproximava a barriga. Ela afundava a cabeça na barriga da Noémia, nós levávamos uma descompostura, e a coisa ficava resolvida até à refeição seguinte.

 

A Noémia cantava o fado. E diz quem gostava de fado que ela cantava bem. Eu sempre detestei, mas sabia distinguir uma afinação e uma boa voz. A voz da Noémia era compacta, poderosa, saía de cima da tábua de passar a ferro e chegava à porta de entrada, ao quarto onde dormíamos a sesta, e ao fundo do terraço onde brincávamos. Os fados da Noémia foram a banda sonora de muita correria.

 

A Noémia tinha a quarta classe. À minha mãe pareceu-lhe pouco. Passou a vir almoçar a casa e, todos os dias da semana, depois da mesa levantada, seguiam-se as lições. Nós andávamos por ali até serem horas de voltar para a escola, e elas estendiam uma série de livros e cadernos em cima da toalha. A seguir liam, faziam contas, a minha mãe debitava, a Noémia perguntava, resolviam-se folhas de exercícios e despachou-se o ciclo preparatório. Não fazia parte do curriculum, mas havia uma coisa que a Noémia adorava fazer. E fazia como nenhum outro português: falar espanhol.

 

Num certo verão, a minha mãe indispôs-se com a minha avó porque ela insistia em que as criadas deviam ir fardadas para a praia. A minha mãe disse-lhe "as minhas vão de fato de banho, como toda a gente". Aquilo correu mal. Trombone o resto das férias e, no ano seguinte, os meus pais marcaram viagem por Espanha, com praia em Zarautz e passagem pelos Picos da Europa. Seis pessoas, contando os meus pais, nós os três, e a Noémia. Tudo enfiado num Fiat 850 Especial, mais a bagagem para um mês, a caminho do País Basco, ida e volta, com rolos e rolos de fotografias, e a Noémia luminosa num sorriso contínuo porque falou espanhol durante as férias inteiras. E os espanhois não davam por nada, pensavam que a Noémia era espanhola, e só falavam com ela.

 

O luto pelo casamento da Noémia foi curto, porque a Gumercinda chegou logo a seguir e conquistou de imediato as simpatias do povo. Era muito pequenina e quase magricela, toda vestida de preto pela morte do pai, cabelo apanhado num carrapito preso com ganchos, rosetas nas bochechas de andar ao sol, e muitas soluções. A Gumercinda atirava-se aos problemas como os socialistas nunca se atiraram à cultura, e os problemas tinham medo dela. O primeiro, logo no dia em que aterrou de Mirandela, foi uma saca de batatas que trazia lá para casa, enviada pela família, uma coisa com (informaram-me depois) cinquenta quilos que a Gumercinda alombou até ao fundo da despensa porque o meu pai não se aguentou com o peso escadas acima.

 

A Gumercinda encarregava-se de cortar os pescoços aos perús que recebíamos, de presente, por alturas do Natal. Anos que viva, não me esqueço dos perús, já sem cabeça, a correr ensanguentados pelo terraço, penas por todo o lado e a Gumercinda de pé, satisfeita e vestida de preto, pernas abertas, braços descidos e barriga espetada, empunhando o facalhão e comentando para o meu pai: "Parexe-me que já istá, xenhor ingenheiro". E dava golpes nos cachaços dos coelhos, e murros bem apontados nas batatas que saiam assadas em tabuleiros, para acompanhar bacalhau. E ralhava conosco quando fazíamos asneiras, e punha-nos de castigo no canto da cozinha "a ber che bos acalmais", mas não contava as asneiras quando os meus pais chegavam a casa, poupando-nos as consequências. E a meio da tarde, quando três patos bebés muito amarelinhos que tinhamos trazido do Parque do Alvito começavam a andar de roda dela no terraço, dizia: "Bós tendes fome!" e dava-lhes de comer. Aos patos e a nós. Alheiras maravilhosas que trazia "da terra" e a que eu torcia o nariz, porque era ignorante e preferia um ovo mexido com salsichas.

 

Tinha medo do mar, a Gumercinda. Um medo que lhe tirava a cor e lhe alterava o tom de voz. O meu pai convidou-a uma vez para ir dar um passeio de barco. Ao perceber o terror, insistiu. "Num bou, xenhor ingenheiro! Num bou! Já le dixe que num bou!" E foi no dia em que nós, crianças, percebemos que a Gumercinda não era imortal.

 

Mas também a Gumercinda tinha uma tarefa da sua predilecção: arear os amarelos. E pela maneira como lidava com os perús, os coelhos, e as batatas assadas no forno, nem preciso descrever a fúria com que a Gumercinda se atirava aos amarelos.

 

E depois veio a Júlia, que perguntava "ó menina, quantos quilómetros são daqui às Amoreiras?" porque gostava de centros comerciais. E outra Assunção, esta de Alcains, que despachava os magalas que se metiam com ela na rua, quando ela "binha do supermercade, vunva, vunva por aí fora", e eles ficavam a rir-se quando ela lhes atirava "ide pró diave!". Essa gostava de revistas de moda, abdicava das folgas, e passava os domingos a costurar. Para ela, como é evidente. E andava sempre vestida como as apresentadoras da televisão. E a Rosa, que era de Lisboa e que a sabia toda, que gostava de romances e de amantes, e nos aconselhava (como nunca mais ninguém) sobre como conduzir os nossos namoros de adolescência. Também a Rosa encobria os nossos abusos, e não contava aos meus pais quando eles iam de viagem e nós chegávamos a casa de madrugada, e levávamos gente que ficava para dormir.

 

Por isso é que eu consolidei a seguinte certeza: todas as criadas têm uma tarefa preferida, que desempenham sempre que podem. Seja prever o tempo, passear miúdas pequenas, falar espanhol, esmurrar batatas, arear os amarelos, ir ao centro comercial, costurar vestidos, ou aconselhar assuntos do coração. Destas guardo boas memórias.

 

Nas últimas semanas dei com um fenómeno semelhante, mas agora já não sei onde as vão buscar. As criadas do Expresso, do Público, do Diário de Notícias, de toda a imprensa escrita e de toda a blogosfera não sabem ler nem escrever. Não limpam coisa nenhuma nem ajudam as crianças, e adoram dar palpites sobre "o caso Miguel Relvas".

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 04:37
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