A situação começa a ficar mais clara na escuridão dos últimos dias no que diz respeito à governabilidade da Itália. Como? Embora interesse a todos, ela não se realizará, nem fácil nem dificilmente. Ou seja, é claro que não há governabilidade.
O presidente Napolitano termina o seu mandato em Maio próximo. Por estar no chamado “semestre branco”, não pode dissolver as câmaras e convocar novas eleições. Temos por isso, de esperar pelo próximo Presidente da República e parte da luta que se começa agora a desenhar é em torno do seu nome que é nomeado em consenso entre os partidos políticos com assento parlamentar. Além do poder de convocar novas eleições, o presidente tem a discricionariedade de dar posse a um governo de iniciativa presidencial. Naoplitano já o fez com Monti e há a forte possibilidade de o próximo presidente o fazer de novo com outro nome pois Monti não tem qualquer possibilidade de conquistar, depois em parlamento, a “fiducia” necessária para constituir governo. Fala-se no nome de Corrado Passera, um financeiro (mais um) duro de roer, europeísta e tecnocrata. Monti bis, portanto.
Entre os partidos, a situação continua fortemente condicionada pelo resultado de Beppe Grillo. O Partido Democrático (PD) de Bersani sugere uma aliança com Grillo, mas Grillo responde-lhe com insultos e recomenda-lhe que se vá associar mais uma vez a Berlusconi para criar o novo governo ou suster um governo técnico. Grillo sabe perfeitamente que uma oposição continuada assente no mesmo discurso do "contra todos" lhe assegurará uma votação acrescida nas previsíveis eleições a prazo (seis, oito meses, um ano?).
Berlusconi, está pronto para aliar-se com o PD. O PD diz que jamais se aliará com Berlusconi e abre a Grillo com uma agenda de oito pontos que espera lhe permita arrancar a tão necessária “fiducia” de Grillo. - O PD está assim condenado a mendigar a Grillo o apoio que este recusa claramente - . Grillo diz que não dará “fiducia” mas apoiará medidas legislativas pontuais que venham de encontro ao seu programa eleitoral. Entretanto diz que Bersani é "il morto che parla".
Uma aliança Berlusconi/Bersani resultará provavelmente num governo muito instável, incapaz de reformar, e naturalmente incapaz de terminar com a austeridade, aberto aos ataques continuados de Grillo que muito deseja essa solução para poder crescer eleitoralmente. O PD, vencedor em coligação com a esquerda mais radical, está verdadeiramente encurralado e a estratégia parece ser a de decidir ir em frente e fechar os olhos.
Tudo dependerá muito do próximo presidente da República. Grillo sugere que seja Dario Fo, prémio Nobel da literatura com 87 anos e um homem de humanidades muito respeitado. O PD sugere Romano Prodi, um homem ao serviço de Bruxelas e a sonolência e aborrecimento personificados. Berlusconi sugere-se a si próprio.
Como vêm, o “cappuccino” continua escuro. A Europa de Bruxelas e Berlim continua a apanhar um duche frio, enquanto em Itália as forças anti-euro condicionam a situação política.
Uma lei eleitoral apelidada de “Porcata”, “Porcelllum”, ou em português “Porcaria” condiciona fortemente os resultados, ao atribuir um prémio de maioria à força política mais votada para a Câmara de Deputados, dando-lhe automaticamente 55% dos lugares e, um método de eleger o Senado em função de lugares atribuídos por regiões que retiram qualquer proporcionalidade à eleição para esta câmara. Esta lei foi publicada por Berlusconi em 2005.
Na actual situação, o governo de centro-esquerda, coligação mais votada, a ser nomeado pelo presidente da república poderá propor leis que até poderão vir a passar na Câmara graças à maioria forçada de 55% mas estarão condenadas a não passar no Senado se os senadores de Berlusconi as quiserem bloquear. Ingovernabilidade.
A lei “Porcaria” já deveria ter sido alterada mas graças à incapacidade de todos os partidos manteve-se em vigor. No fundo, cada um deles esperava vir a ser beneficiado pelo sistema, e em vez disso, foi criado o bloqueio. Como se resolverá? Nos próximos dias começarão a definir-se os novos equilíbrios mas uma aliança Berlusconi e Bersani parece altamente improvável e potencialmente muito instável. Grillo já disse que não se alia com ninguém e também já afirmou que espera por novas eleições em Setembro para subir o seu peso e poder finalmente governar a Itália. É possível que assim suceda e essa perspectiva servirá como pressão para que Berlusconi e Bersani se aliem mas, estes dois, estarão provavelmente condenados a não se entenderem, e em alternativa, caso se entendam, o governo sairá necessariamente muito fraco e incapaz de fazer reformas urgentes e profundas.
Como se chegou aqui? Como os principais intervenientes criaram a situação em que a Itália aparece tão dividida?
Berlusconi (PDL "Popolo della Libertà" e Legga Nord): este alcançou o resultado e fez a recuperação estrondosa em função de uma mentira demagógica óbvia. Prometeu que aboliria o imposto “IMU” (o IMI local) e devolveria tudo o que os cidadãos pagaram em 2012, em 2013, um mês depois de tomar posse como governo. A história da IMU é caricata, pois foi com a promessa da sua abolição, que Berlusconi ganhou as eleições em 2008 e, de facto, assim o fez. Em 2011, fruto da enorme pressão europeia e do aumento do“spread”, Berlusconi foi obrigado a reintroduzi-la. Em 2013 recupera e ganha o Senado, de novo com a promessa da abolição da taxa e devolução dos montantes pagos pelos contribuintes.
- Uma verdadeira lição de como o populismo demagógico é capaz de vencer os corações de eleitores menos preparados.
Beppe Grillo (Movimento 5 Stelle) : Grillo é a revolução democrática pacífica italiana. Um cómico, a quem poucos auguravam sucesso político, consegue mobilizar os descontentes de um sistema político terrivelmente malsão. Com primárias feitas por toda a Itália, Grillo conseguiu eleger cidadãos comuns com a missão de sanear os políticos “velhos” que são vistos como a origem de todos os males italianos. Grillo pretende referendar o Euro, controlar a imigração, atribuir um rendimento de cidadania a todos, e julgar em praça pública os políticos responsáveis pela corrupção e decadência italiana. Espetacular é também o facto de Grillo e o seu Movimento 5 Estrelas conseguiram o excelente resultado sem usarem a televisão como meio de campanha eleitoral. Apenas com a web, Facebook, blogs e praças públicas cheias de gente, Grillo mobilizou cerca de 25% dos italianos.
– Grillo disse ontem: “Onde nos sentaremos nas câmaras? Atrás de vós (os outros deputados e senadores) para controlarmos cada passo que dão”.
Bersani (PD "Partito Democratico" e SEL "Sinistra, Ecologia e Liebertà"): este é, no meu entender, o grande responsável pela distribuição tão dividida da votação. O PD, nas primárias que se desenrolaram em finais de 2012, teve a grande oportunidade de se constituir como alternativa, ao poder eleger como candidato a primeiro-ministro Matteo Renzi. Renzi, o jovem “sindaco” de Florença, aos 37 anos (um miúdo para os parâmetros italianos de ser político com sucesso) com um discurso muito liberal e de “reciclagem” da velha guarda do PD, tinha nas sondagens mais intenções de voto que Bersani. Mesmo assim, a velha guarda, boicotou Renzi de todas as maneiras possíveis e este não foi eleito. Berlusconi tinha dito que se Renzi fosse o candidato, não concorreria e, chegou inclusivamente a convidá-lo para concorrer com o PDL. Os descontentes também encontravam resposta em Renzi pois o seu discurso, em termos de propostas de alteração do sistema político era semelhante ao de Grillo, com a vantagem de vir de um partido político estabelecido no poder.
– Bersani fez uma campanha sensaborona sem qualquer brilho, própria de quem não tem mais que fazer que implementar a política de Bruxelas. Os italianos, pelo demonstrado, não querem isso.
Monti (Scelta Civica): assessorado pelo gestor de campanha de Obama que tentou introduzir métodos americanos numa cultura política profundamente diferente, obteve um resultado péssimo e desbaratou o capital de “super-partes” que tinha obtido com o seu governo técnico e com o qual conseguiu conter em 2012 a explosiva situação italiana. Com 10% dos votos nem é importante para formar coligação com o PD. Tornou-se irrelevante e pode dizer-se que por escolha própria.
– Monti é a prova de como o bom técnico não faz o bom político.
O pano de fundo destas eleições é um país profundamente desiludido consigo próprio onde os rendimentos estão fortemente em baixa por via da utilização de uma moeda não própria que não serve a robustez declinante industrial italiana e a dinâmica de uma economia muito fechada em si própria. De há 15 anos para cá o poder de compra das pensões reduziu-se em 30%, o desemprego está a subir, a produção industrial a cair e a pressão fiscal sobre as empresas a 70%.
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