Antes que os partidos cheguem a acordo, como desejo, que o Presidente veja restaurada a sua popularidade, como seria útil, e que o PS se divida ou não, a bem da clareza, digo que as circunstâncias vão alterando aquilo que em cada momento um cidadão sensato e pragmático estima desejável, e que por isso o que ontem era a melhor escolha deixou de o ser.
Porque, na realidade, Cavaco fez um grande desserviço à Nação quando se pôs em bicos de pés, rejeitando a solução de um problema que os envolvidos haviam pelos seus próprios meios engendrado, e condicionando as escolhas dos responsáveis políticos, agora e, petulantemente, no futuro.
Passos, vendo rejeitada a solução e o elenco que apresentara, devia ter calmamente dito: O senhor Presidente não governa, quem governa sou eu. Se insiste em impôr-me a sua opinião sobre como devo proceder no exercício do meu mandato, não pode exigir-me que, em vez de fazer aquilo em que acredito, faça, sob minha responsabilidade, aquilo em que o senhor acredita, pelo que terá que ter a maçada de resolver a situação como lhe aprouver, mas sem mim.
Cavaco nunca, como governante, foi além da vulgata do europeísmo, porque acompanhada da cornucópia dos milhões da solidariedade da CEE, e só deixou obra feita porque no momento histórico em que assumiu funções as condições estavam maduras para a evidente necessidade de desmantelar a economia socialista e modernizar a sociedade - coisas que, por incapacidade e falta de coragem e convicção, deixou aliás a meio. Como Presidente, colaborou no governo socrático muito para além da solidariedade institucional, refugiando-se em "avisos" que por ingenuidade imagina lhe garantirão uma imagem histórica positiva. E, de forma geral, nunca, nem por palavras nem por actos, deu a impressão de estarmos perante um estadista, mas apenas um político manhoso que se faz passar por não-político, um orador menos que medíocre que tacha a oratória de "verborreia", e um economista que acredita piamente que ele e um grupo de colegas, por estarem todos albardados das mesmas qualificações académicas, ficaram ungidos da sabedoria que permite a solução de todos os problemas.
Cavaco, confrontado com a renuncia de Passos, provavelmente recuaria. Ou talvez não, e iria buscar ao armário do PSD a amiga Manuela, ou Rui Rio, ou outro qualquer - o PSD tem governantes potenciais para abastecer cerca de metade dos países representados na ONU.
Nunca saberemos. Mas que o PSD, o CDS e o PS tenham sido forçados a fazer, sob a égide de um fiscal presidencial, umas negociações grotescas fora do lugar delas, que é o Parlamento, sob pena de, se não colaborarem no humilhante exercício, se arriscarem a ser severamente penalizados nas urnas, fica como exemplo de como uma Presidência entende o exercício da Democracia.
Desejo o sucesso das negociações, sim. E não duvido que, se ele tiver lugar, Cavaco será aplaudido de pé não apenas pelas numerosas pessoas que sempre nele viram o que lá não está, mas também por muitas outras.
Por uma vez, abençoo a Constituição: não permite a reeleição.
A história que se está fazendo conta-se aqui, com fundamentos sólidos nos factos que são do domínio público.
Enquanto Portas não falar, ou não verterem mais informações, é o que há a dizer.
Numa alegria histérica estão os comunistas e os primos; os socialistas, muitos, veem tachos e negócios no horizonte e, alguns, os mais lúcidos, franzem os sobrolhos de ansiedade e preocupação porque não é altura - as castanhas ainda estão ao lume, diabo de governo incompetente que não deixou as coisas prontas para o business as usual; até mesmo no CDS a oposição interna arreganha os dentes, Portas sempre foi um eucalipto e há muita planta que gostaria de crescer para o Sol.
Já a laranjada, essa, está num irritantezinho alvoroço, a boa obra pretérita do guru Gaspar num bolso, o superior interesse nacional no outro, a incompreensão pelos estados de alma daquele partidozeco a que deram boleia para o Governo nos bestuntos, e a incontinência verbal nas entrevistas e nos textos.
Convém lembrar: A saída do número dois não comoveu a bolsa, ou os mercados, ou a tróica. E o próprio fez pública uma carta em que reconhece a parte má do seu trabalho, num exercício de lucidez que nem sempre o assistiu enquanto governante. Já a saída do número três fez chover raios e coriscos. E isto devia fazer parar para pensar: ser sócio-gerente de uma empresa, ainda que com quota minoritária, não é a mesma coisa que ser um funcionário - Passos que aprenda esta lição de Direito Comercial.
Depois, do que seja o interesse nacional há tantas opiniões quantos os partidos, mais outras muitas que andam para aí avulsas. Mas, a menos que se seja comunista, ignorante, ingénuo, socialista, ou intelectual, é difícil negar que as eleições, agora, sob a sombra da tróica, mergulhariam o País numa horrenda barafunda.
O meu interesse nacional é que se entendam. E que, não podendo amar-se, e mesmo que vivam em quartos separados, guardem entre si e mostrem a terceiros aquele mínimo de respeito que garantia a sobrevivência de muito casamento vitoriano.
Encaremos os factos: anteontem a Esquerda, toda ela, teve uma vitória; e a Direita, toda ela, ficou num canto, ensimesmada, a lamber a ferida e a coçar a cabeça.
Não é surpresa: a Esquerda governa o País há quase quarenta anos, mesmo quando não está no Governo; e nas raras oportunidades que tem havido para reverter o rumo das coisas, sempre o espírito de compromisso, os princípios submetidos às razões táticas, o apego aos lugares com os quais o Centrão colonizou o aparelho de Estado e respectivo sector empresarial, e o medo "democrático" às reacções da clientela do Orçamento, que é hoje a maioria da população e do eleitorado, se conjugaram para anular qualquer veleidade de reforma, que aliás nunca foi senão timidamente defendida e, menos ainda, posta em prática.
Foi assim que a Constituição, cujo preâmbulo apontava o caminho do "socialismo" e continha efectivamente um programa de governo que deixava aberta a porta para lá chegar, foi aprovada, de má-fé, por dois partidos: pelo PCP e apêndices, que a achavam útil não obstante conter elementos de democracia burguesa e cretinismo parlamentar; e pelo PSD, que a achava um progresso em relação à revolução da rua e fingia acreditar que a social-democracia era o que a Constituição defendia. A prolixidade, o tudo para todos que a Constituição é, como se os direitos económicos de uns não fossem as obrigações económicas de outros, foi o contributo do PS, uma associação de beneméritos com propensão para a generosidade a crédito.
O partido que ficou de fora da aprovação, o CDS, não tinha, como ainda hoje não tem, peso específico para influenciar significativamente o curso das coisas. Mas cabe referir que, se o PSD tivesse votado contra, as revisões que se foram sucedendo teriam podido ter outra profundidade, por ser mais nítida a clivagem esquerda/direita e mais equilibrado e espectro partidário.
Depois veio a "Europa". Então como hoje, o Centrão apostou todas as fichas na "solidariedade" europeia. E, mais tarde, comprometeu o País numa desastrada adesão ao Euro, um clamoroso erro de toda uma geração, que só ainda não é visto pacificamente como tal por os responsáveis que detêm as alavancas do Poder e da Opinião ainda serem basicamente os mesmos.
Chegámos aqui, na terceira edição da bancarrota que o regime democrático foi capaz de engendrar. E, mais uma vez, a curta oportunidade que houve de reformar seriamente o Estado, nos primeiros seis meses do Governo, foi desperdiçada por falta de lucidez (o prestigiado Gaspar é um estrangeirado que não conhece, nem entende, o País, e tem todos os tiques do apparatchik incompetente e europeu que efectivamente é), de coragem (os boys do PS e PSD só podem ser liquidados, e os poderes fácticos que minam a competitividade da economia portuguesa só podem ser afrontados, por quem esteja disposto a fazer hara-kiri) e erros de avaliação de forças: engolir acefalamente quanta prescrição idiota fazem os credores é, além de cobarde, não compreender que ajudá-los a receberem o que lhes é devido NÃO implica andar permanentemente de gatas.
No momento em que isto escrevo, está toda a gente em suspenso, no confronto atordoado das respectivas impotências. E arrisco que nada de dramático vai acontecer: uma remodelação talvez, uns cortes na despesa que deviam ter sido feitos há muito, uns aumentos de impostos para os "ricos", mais um esforço na "luta contra a evasão fiscal", mais uma renegociaçãozinha que a tróica fingirá ter grande dificuldade em engolir, et le tour sera joué.
Até ao próximo incidente.
Entendamo-nos: tirando um corte de despesa sectorial aqui e ali mais ou menos bem sucedido que havia sido imposto pelo memorando incial acordado com a troika, este governo dito de direita não reformou o estado, não se recentrou nos seus serviços fundamentais (onde falha) abandonando outros (onde não é necessário), não privatizou o que havia para privatizar, não tomou qualquer medida que permitisse uma redução estrutural de despesa pública. Os cortes temporários que tentou – reduzindo os ordenados dos funcionários públicos – foram boicotados pelo tribunal constitucional. Não vejo bem que outro caminho possa ter o governo se não a demissão. A seguir que venha o zero confesso; não vai reformar o estado, não vai reduzir despesa, não vai privatizar; ficamos, portanto, na mesma e sempre deixamos de ter um governo que dá mau nome aos liberais.
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