Na semana passada especulei aqui sobre quais podem vir a ser as consequências possíveis do anúncio pelo novo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, não se lhe pode chamar medida política porque ele ainda não governa, de exigir alterações ao contrato entre os governos brasileiro e cubano ao abrigo do programa "Mais Médicos" que são consideradas inaceitáveis pelo governo cubano, pelo que conduz inevitavelmente à ruptura do contrato.
Fiz essa análise essencialmente na óptica mais relevante para analisar uma medida política de um governo, a que olha para as consequências dessa medida para os governantes que a tomam e para os governados que são afectados por ela, o presidente Bolsonaro e os brasileiros servidos por médicos cubanos, e cheguei à conclusão que a medida terá certamente consequências positivas para o presidente, e para os utentes dos médicos terá consequências que poderão ir da neutralidade, se não houver uma disrupção dos cuidados médicos a que têm acesso hoje em dia, à catástrofe humanitária, se perderem durante um período longo o acesso a esses cuidados. E esta distância entre as consequências mais positiva e mais negativa inspirou o título do texto "Roleta Russa".
Mas alguém me chamou a atenção, e bem, para o facto de ter discutido insuficientemente as consequências da medida para uma parte que por um lado é importante neste processo e por outro está sujeita a uma situação de alguma fragilidade, os médicos cubanos.
Os médicos cubanos, tal como todos os cubanos, vivem numa ditadura comunista. Não têm, portanto, a liberdade que nós temos, mas alguns dos mais velhos de nós já não tivemos, e ao não ter tido aprendemos a perceber bem a diferença entre tê-la e não a ter. E vivem num país com a ineficiência económica inerente ao socialismo. Ou seja, não são livres nem prósperos.
E, como faz parte da natureza humana tentar a sorte noutras paragens quando não se é livre nem próspero onde se está, são impedidos de sair para o estrangeiro para não fugirem, e só lhes são permitidas as saídas em circunstâncias excepcionais. Por exemplo, quando são enviados pelo governo para desempenhar funções no estrangeiro, como acontece aos médicos cubanos.
Uma das formas de os desincentivar de fugirem quando se encontram num país estrangeiro como o Brasil, não sendo possível vigiá-los e controlá-los permanentemente, é de não permitir que se façam acompanhar pelas suas famílias quando saem do país, tendo a noção que se fugirem, como lhes é relativamente fácil fazer, podem não as voltar a ver por elas serem impedidas de sair do país para irem viver com eles.
Isto tudo é importante neste contexto porque um dos motivos pelos quais aqueles a quem a medida, ou a sucessão de anúncios de ameaças e de promessas, do presidente Bolsonaro parece mais positiva do que negativa é justamente a falta de liberdade que vitima os médicos cubanos que estão no Brasil, e a possibilidade de lhes devolver a liberdade se se desligarem, como têm oportunidadede fazer se o presidente cumprir a promessa de os acolher no Brasil, das amarras que os prendem ao regime cubano. E, quer sejam oito mil e tal, quer sejam onze mil e tal, e há notícias a citar os dois números e não sei determinar qual deles é o real, libertá-los a todos seria um sucesso extraordinário, sem qualquer tipo de cinismo político.
O presidente Bolsonaro não se cansou, aliás, de repetir que os queria no Brasil, livres (com a possibilidade de ter as famílias a viver com eles) e com direitos (a receber directamente o salário em vez de receberem do governo cubano um salário que é substancialmente mais elevado do que o que têm em Cuba mas substancialmente mais baixo do que o de um médico brasileiro e do que o valor pago por cada um ao govero cubano). E de comparar a situação actual deles com a escravatura, no que tem sido um argumento de carga dramática muito forte dos adeptos da medida.
Que consequências é que esta intenção declarada do presidente Bolsonaro, que desencadeou a reacção natural e esperada do governo cubano de rescindir o contrato com o governo brasileiro e ordenar o regresso dos médicos cubanos, pode ter então para os médicos cubanos?
A primeira definição que é necessário precisar para proceder a esta análise é que uma medida política vale pelas suas consequências, e a consequência de uma medida é a diferença entre a situação prévia e a situação real que resulta da concretização da medida, e não a diferença entre uma situação prévia que carece de intervenção e uma situação ideal que ela pretende ou alega atingir.
Neste quadro, a consequência de uma medida destinada a libertar os médicos cubanos que não são livres como deviam não é necessariamente a desejada liberdade deles, mas a situação real em que se vierem a encontrar depois de a medida ser implementada.
Posto isto, qual e a situação prévia que carece de intervenção?
É o facto de os cuidados médicos serem assegurados a um número cuja estimativa varia entre notícias mas que não deve ser inferior a vinte milhões de brasileiros por médicos cubanos ao abrigo do programa "Mais Médicos" , e de estes médicos receberem salários indignos para os padrões brasileiros e serem sujeitos a limitações inaceitáveis à sua liberdade, nomeadamente ao não serem livres de levar as famílias com eles para o Brasil, numa condição que uma retórica activista dos direitos humanos e sociais define como "escravos" com os familiares "reféns" do regime cubano. E serão mesmo?
Escravos? Já vimos que livres não são, como ninguém é numa ditadura, comunista ou de outra orientação ideológica qualquer. Mas para poderem ser honestamente considerados escravos seria preciso, em primeiro lugar, que fossem forçados a trabalhar contra a sua vontade.
Ora estes médicos trabalham no Serviço Nacional de Saúde cubano onde têm emprego assegurado e candidatam-se a vagas nas missões no estrangeiro para onde, quando as suas candidaturas são aceites, são enviados. E porque é que se candidatam a missões no estrangeiro em vez de continuarem nos seus portos de trabalho de origem? Porque, mesmo recebendo menos do que os médicos brasileiros e muito menos do o governo cubano recebe pelos serviços prestados por eles, recebem muito mais do que no SNS cubano. Estes médicos estão no Brasil porque querem e porque têm interesse pessoal, nomeadamente a nível salarial, em lá estar. Escravos não são.
Explorados? Os médicos colocados no Brasil recebem apenas um terço, vamos tomar esta fracção por fidedigna mas, mesmo que não seja, não tem grande relevância determinar o montate exacto, do que o governo cubano recebe pelos serviços que eles prestam. Isto é exploração? Se nos esforçarmos por olhar para a situação numa óptica trabalhista podemos dizer que sim. Se olharmos à nossa volta para a economia de mercado em que temos a sorte de viver, pode ser que não.
Eu iniciei a carreira profissional numa multinacional de informática onde, se eu passasse um dia completo a prestar assistência a um cliente e a empresa lhe facturasse as oito horas do trabalho prestado por mim, recebia por esse dia de trabalho meu mais do que me pagava de salário mensal. Eu sentia-me explorado? Não, ganhava muito bem e até sentia uma certa vaidade por ver como o meu trabalho era tão valorizado pelos clientes que apoiava. As empresas de serviços numa economia de mercado compram a mão-de-obra a preços de mercado e vendem os serviços a preços de mercado, e mesmo que os trabalhistas vejam nisto uma perversão, é o melhor que se arranjou até agora para proporcionar vidas mais decentes a mais trabalhadores. O governo cubano não faz muito diferente ao oferecer a médicos cubanos com salários inferiores a cem euros por mês a oportunidade de se candidatarem a ganhar várias vezes mais no Brasil, e a oferecer ao governo brasileiro serviços de médicos por um valor competitivo com o que o governo brasileiro teria que oferecer a médicos brasileiros para aceitarem ocupar as vagas nos locais pobres e remotos onde os médicos cubanos trabalham. Havendo aqui intervenientes que não são agentes numa economia de mercado, todos participam neste negócio bem informados sobre as suas condições e livres de decidir participar ou não, pelo que não se pode dizer que este negócio viole as exigências de uma economia de mercado, nem que a exploração a que é sujeta uma das partes seja diferente da exploração a que é sujeito qualquer trabalhador numa economia de mercado.
Reféns? Em Cuba, como na generalidade dos países comunistas, toda a gente é refém, toda a gente é impedida de se deslocar ao estrangeiro a não ser em circunstâncias excepcionais e normalmente acompanhada de funcionários com responsabilidade pela sua vigilância, e nomeadamente por não os deixar fugir.
E as famílias dos médicos também. São impedidas de sair mas não são ameaçadas de represálias no país no caso de o seu familiar fugir. Simplesmente continuarão a ser impedidas de sair, e ele de entrar para não se deixar recapturar, o que significa que uma fuga de um pode ter como consequência a impossibilidade de voltar a ver a família. Isto não faz deles vítimas de qualquer forma de discriminação comparativamente com qualquer outro cubano a trabalhar no estrangeiro ou em Cuba. São apenas, todos eles, vítimas do comunismo.
Acresce que entre os onze, ou oito, mil e tal médicos do contingente cubano no Brasil há cento e cinquenta, entre um e dois por cento, que têm a ambição declarada de não regressar a Cuba, tendo para isso instaurado processos na justiça brasileira.
Tudo junto, quais são as consequências para os médicos cubanos desta intenção de medida política do novo governo brasileiro com o objectivo confesso de os libertar?
Para os cento e cinquenta que querem ficar no Brasil isto é a oportunidade de libertação, tanto mais que o presidente Bolsonaro já prometeu publicamente que os acolherá no Brasil. Em boa verdade não seria necessário provocar a rescisão do contrato com o governo cubano para os libertar, bastaria conceder-lhes dupla nacionalidade ou o estatuto de refugiado político e contratá-los directamente para trabalharem no SNS brasileiro.
Para os que, mesmo sem terem até agora iniciado qualquer procedimento formal para tentar permanecer no Brasil, desejem aproveitar esta oportunidade para permanecer, a mesma consequência. É a oportunidade de libertação, mas não seria necessário o governo brasileiro rescindir o contrato com o governo cubano para os libertar.
Para os médicos cubanos que, por ter rescindido o contrato com o governo brasileiro, o governo cubano mandar regressar antecipadamente a Cuba, é uma oportunidade de ganhar melhor e juntar dinheiro para eles e para as famílias durante uma missão no estrangeiro para a qual se candidataram e conseguiram ser escolhidos que é terminada prematuramente. Vão perder dinheiro. E vão conquistar alguma liberdade ao libertarem-se desta escravatura a que estão sujeitos no Brasil com as famílias reféns em Cuba? Não, vão continuar a ter a mesma falta de liberdade que têm e sempre tiveram e as famílias vão continuar a ser impedidas de viajar como sempre foram e são enquanto eles estão no Brasil. Se eram escravos e as famílias reféns, vão continuar a ser escravos e as famílias reféns. Terão danos e não terão quaisquer benefícios a compensá-los.
Tudo junto, a rescisão do contrato com o governo cubano para colocar médicos no Brasil ao abrigo do programa "Mais Médicos" vai beneficiar um número de médicos cubanos previsivelmente muito reduzido, e cujo problema se poderia resolver com medidas alternativas directamente dirigidas a eles, e vai prejudicar financeiramente e no percurso profissional todos os outros sem lhes incrementar em nada a liberdade. Para eles a bala da Roleta Russa está mesmo na câmara.
Significa isto uma grande trapalhada do presidente Bolsonaro que anunciou uma medida política voluntariosa com a intenção declarada de proteger os médicos cubanos que estão a trabalhar no Brasil mas que acabará por prejudicar a esmagadora maioria deles, para além de prejudicar milhões de utentes?
Não.
Como eu tinha avisado na semana passada, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações populistas, mas não é a que motiva realmente as reivindicações.
Quando o programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo Dilma em 2013 o então deputado federal Jair Bolsonaro exigia ao governo que não permitisse a vinda de familiares dos médicos cubanos que o governo brasileiro autorizava no contrato.
O deputado justificava essa exigência insinuando que a autorização para os médicos cubanos virem acompanhados de familiares resultaria numa verdadeira invasão do Brasil por milhares de agentes do governo cubano, que ele estimava em setenta mil. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não era certamente o bem-estar das famílias dos médicos cubanos, agora designadas por reféns do regime cubano a quem ele exige que lhes permita viajarem para o Brasil, era, pelo contrário, impedir que entrassem no Brasil.
Mas ele entretanto podia ter mudade de ideias, e ter evoluído de uma preocupação securitária talvez paranóica para uma sensibilidade social ao bem-estar dos médicos e das suas famílias negado pelo regime cubano. Podia, mas não mudou.
Ainda em 2016, já tinha caído o governo Dilma, ele exigia a sujeição dos médicos cubanos a um exame à Ordem dos Médicos brasileira para comprovarem as suas competências e, deste modo, o governo brasileiro poder expulsar alegados "médicos" que eram na realidade agentes ou militares cubanos colocados no Brasil para provocar o caos no país depois de ocorrer um atentado islâmico. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não eram certamente com os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, era, pelo contrário, a de encontrar um modo de os expulsar do Brasil.
Resumindo, encontramos aqui bem tipificados alguns ditados portugueses.
Se a ambição de quem formulou ou concorda com as medidas propostas pelo presidente Bolsonaro para proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos é realmente proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, o melhor é deixar estar como está, porque o que está em curso não os vai proteger, vai-os penalizar sem lhes oferecer em contrapartida qualquer incremento de liberdade. "De boas intenções está o Inferno cheio".
Mas a ambição real destas medidas não é proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, e provavelmente também não será neutralizar uma conspiração imaginária de agentes cubanos no Brasil, será certamente a de iniciar um ciclo de reversões simbólicas de medidas simbólicas do governo pêtista para sinalizar aos brasileiros que o Brasil está a mudar, e para melhor. "Gato escondido com o rabo de fora".
E num balanço global isto vale os custos que terá? Para os médicos cubanos no Brasil, não.
O Brasil tem mais de 11 mil médicos cubanos que, como é habitual, não são contratados individualmente mas através de um protocolo celebrado com o governo cubano, o programa "Mais Médicos" , e com direitos laborais e sociais limitados pelo seu patrão, o governo cubano que, entre outras condições contratuais, lhes paga um salário várias vezes inferior aos honorários que recebe do governo brasileiro pelo serviço que eles prestam e lhes limita, nomeadamente, a liberdade de movimentos, e a das suas famílias. É a gestão socialista dos recursos humanos, assunto que considero fascinante por vários motivos e constituiu mesmo o tema do primeiro texto que publiquei neste blogue.
O programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo brasileiro Dilma em 2013 acompanhado de uma intensa campanha de propaganda mediática a título de fazer chegar a assistência médica a populações desfavorecidas em regiões remotas para onde era difícil recrutar médicos brasileiros, incluindo reportagens apoteóticas à chegada do contingente de médicos cubanos a cada aeroporto brasileiro. E alguma utilidade tem para além do fogo-de-vista mediático, por ter feito chegar médicos a zonas efectivamente desprovidas deles.
É aliás semelhante a um protocolo celebrado com muito menos circo mediático entre o governo português Sócrates e o governo cubano em 2009 para acolher médicos cubanos em Portugal, também para colocar em zonas onde de facto era e é difícil recrutar médicos portugueses, que actualmente abrange umas dezenas de médicos, perto de cem. E também sujeitos a condições salariais e sociais típicas de um regime socialista, recebendo de salário poucas centenas de euros dos mais de quatro mil que o governo cubano cobra por cada um, para além das despesas de alojamento suportadas pelas autarquias, e sendo cada grupo de quatro médicos coordenado por um chefe de missão cuja função primordial é a vigilância dos restantes membros. A sua presença em Portugal foi essencialmente contestada pela Ordem dos Médicos que, numa reacção corporativa típica e expectável, alegava que eles estavam sujeitos a um regime de quase-escravatura, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações corporativas populistas, e que se pagasse a médicos portugueses quatro mil euros por mês o governo conseguiria recrutá-los para essas regiões, a verdadeira motivação para a sua reacção.
Um dos sinais distintivos dos populismos é o recurso sistemático a medidas simbólicas, mais motivadas pela mensagem que fazem passar, e quanto mais facilmente passa a mensagem mais eficazes são, do que pela eficácia social, que no limite até pode ser contrária à intenção declarada. Foi para isso, para dar um exemplo, que o BE apresentou logo no primeiro dia desta legislatura em que a esquerda recuperou a maioria parlamentar que não tinha desde 2011 a proposta de eliminar a taxa moderadora para o aborto, cujo efeito prático é nulo, por a taxa ter nessa altura um valor meramente simbólico de 7,50€ e apenas abranger a minoria de cidadãos com rendimentos que não os isentam de taxas moderadoras, mas que serviu para o BE sinalizar que agora quem manda aqui somos nós.
No Brasil o governo mudou e o novo presidente também tem a preocupação de recorrer a medidas de forte carga simbólica, no caso dele anti-comunista, para mostrar que o tempo do petismo acabou e que quem manda ali é ele.
E uma das medidas que elegeu para exibir este simbolismo foi o programa "Mais Médicos". Que, aliás, é uma escolha feliz no domínio da carga simbólica, por ser uma medida do governo Dilma e por envolver o regime cubano.
Além de manifestar, ou de dar voz a manifestações de, dúvidas àcerca das qualificações profissionais dos médicos cubanos, que no Brasil, ao contrário de Portugal, não são obrigados a fazer um exame na Ordem dos Médicos para ficarem habilitados para o exercício da Medicina, também denunciou as condições laborais a que estão sujeitos pelo governo cubano. E a pretexto de garantir a qualidade do serviço prestado por eles e de exigir para eles direitos laborais e sociais que não têm, o presidente Bolsonaro anunciou que vai reformular o programa para passar a exigir que os médicos cubanos façam um exame para poderem exercer Medicina no Brasil e vejam os seus direitos laborais e sociais ampliados, recebendo por inteiro o salário pago pelo governo brasileiro e tendo liberdade para trazerem as suas famílias para o Brasil. Nada de radicalmente diferente do que foi reivindicado em Portugal pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, e certamente com a mesma preocupação pelos direitos deles e pelo bem-estar dos seus utentes.
Às ameaças anunciadas de imposição de alterações ao protocolo o governo cubano respondeu declarando-as inaceitáveis e ameaçando por sua vez rescindi-lo e fazer regressar os médicos a Cuba.
E à ameaça do governo cubano de fazer regressar os médicos a Cuba o presidente Bolsonaro respondeu com a promessa de acolher como refugiados todos os que queiram ficar no Brasil.
E é nisto que se está.
Sendo que, se desta circunstância resultar uma grande parte dos médicos cubanos aceitar o acolhimento no Brasil como refugiado, não haverá uma disrupção no serviço que prestam às populações em áreas carenciadas de assistência médica e o presidente Bolsonaro terá uma vitória política de monta, nomeadamente no domínio simbólico da luta contra o comunismo no continente americano, sem penalizar os utentes.
Se a maioria dos médicos obedecer à ordem do seu governo de regressar a Cuba, por motivos que só cada um poderá conhecer mas pode haver vários plausíveis, nomeadamente o bem-estar e a segurança das suas famílias que ficam em Cuba, poderá haver uma disrupção na prestação dos serviços de saúde que poderá ser dramática para as populações servidas por eles, mas o presidente terá uma saída airosa alegando, como já alegou, que foi o governo cubano, comunista, a rescindir unilateralmente o protocolo, ou seja, que abandonou estas populações.
Para o presidente Bolsonaro poderá ser uma grande vitória ou uma pequena vitória. Para as populações servidas pelos médicos cubanos poderá ser um pequeno contratempo ou um grande drama.
Tem todos os ingredientes de uma roleta russa.
O Bloco de Esquerda não vai acompanhar a visita do Presidente da República a Cuba.
Os motivos oficiais e oficiosos poderão oscilar entre Cuba andar a renegar os verdadeiros princípios do socialismo e se ter passado para o lado errado da História desde que o regime recentemente retomou relações diplomáticas com os Estados Unidos, o BE ter mais que fazer por ter as jornadas parlamentares marcadas para os dias da visita, ou porque sempre limitou muito a sua participação em visitas de Estado, com excepção dos países com fortes comunidades portuguesas ou língua portuguesa, com excepção de Angola, que acumula as duas condições mas não é visitado pelo BE. Em boa verdade, o motivo não é muito importante, porque não se perde nada por não ir. Nem o BE, nem o PR, nem Cuba.
Mas o verdadeiro motivo é outro.
A verdadeira razão de existir da esquerda radical é a reabertura de discussões que perdeu historicamente no seio do movimento comunista, nos já longínquos anos 30 e 40 do século passado, muitas à custa da vida dos arguentes, que as discussões no movimento comunista sempre foram suficientemente vivas para justificar a eliminação de vidas, algumas à machadada. Há-que reconhecer que, com tal modéstia de objectivos, e inutilidade para o mundo, a esquerda radical apresenta uma longevidade surpreendente.
Longevidade e, nalguns casos, popularidade.
A do BE baseou-se, inicialmente, em hastear uma série de bandeiras no domínio da liberalização dos costumes e da ecologia que os partidos políticos do sistema, os partidos burgueses, hesitavam em assumir por recearem que tomadas de posição claras nesses temas pudessem alienar uma parte mais conservadora dos seus eleitorados habituais. Aborto, consumo de drogas, direitos dos homossexuais (o nome cresceu para LGBTQIA+ mas é mais ou menos a mesma coisa), coisas de que uma parte importante da população, nomeadamente jovem, mas alguma da minha idade, estava farta de ver reguladas por pessoas que não tinham nada que lhes regular as vidas. Na verdade, estas bandeiras poderiam ter sido hasteadas por partidos de qualquer ideologia mais liberal, o que teria todo o sentido, porque todos são mais liberais que os da esquerda radical, em vez de por partidos da esquerda radical que, de liberal, não têm nada, assim alguém lhes dê a oportunidade de ficar entre quatro paredes a mandar num país. O José Sócrates percebeu isso e, se alguma realização lhe pode ser atribuída, foi o esvaziamento eleitoral do BE para metade, à custa de duas ou três iniciativas legislativas claras nesses domínios. O PSD e o CDS não, e insuflaram de novo o BE para o balão de ar que é hoje em dia. E o PS do António Costa também não, porque em vez de se apropriar da iniciativa legislativa nesses domínios, deixa o BE apropriar-se dela e limita-se a secundar as suas iniciativas, o que lhe vai permitir continuar a auto-insuflar-se.
Isto, e no facto de ter investido como mais ninguém no marketing político, não esquecendo que a sua primeira grande batalha parlamentar com o PCP foi pelo direito de um dos seus dois deputados eleitos ter um lugar à esquerda na primeira fila do parlamento, lugar que até aí era sempre ocupado por um deputado do PCP, e mais recentemente, e reforçando a sua aposta de sempre no marketing e nas marcas, por ter substituído o eterno duo Louçã / Fazenda de telegenia limitada por carinhas larocas que fazem olhinhos irresistíveis aos eleitores mais dados a essa modalidade.
Mas resta por explicar como é que o seu eleitorado se deixa enrolar pela defesa destas bandeiras liberais nas mãos de quem continua a defender também ideologias socialistas que, na retórica, sempre prometerem igualdade, justiça social e prosperidade, mas, na prática, sempre entregaram autoritarismo, iniquidade e miséria, e zero de liberdade?
É fácil. O segredo da longevidade da esquerda radical tem sido renegar sempre os resultados de todas as experiências socialistas que foram feitas ao longo destes 99 anos, defendendo que não são significativas do socialismo genuíno por ter havido desvios ao socialismo genuíno ao longo do processo em todos os processos pretensamente socialistas.
Durante uma revolução socialista, como no exemplo mais recente a eleição do Syriza na Grécia, a esquerda radical apoia publicamente a revolução, vai aos comícios, presta assistência à elaboração dos programas, deixa-se fotografar e filmar pelas televisões. Quando começam a ser públicos os resultados da revolução, no caso grego a inevitável cedência às exigências dos parceiros europeus para continuarem a prestar à Grécia a assistência financeira de que a revolução não teve capacidade para a libertar, desliga-se dos que antes apoiava e declara-os traidores, submissos, ou mesmo capitalistas de estado. Nunca se deixa salpicar pelos resultados das experiências socialistas reais, de modo a manter a ilusão que o seu socialismo genuíno tem para oferecer algo de melhor do que ofereceram os pseudo-socialismos dos outros. É um processo continuamente repetido de adesão inicial entusiástica a experiências socialistas e de negação posterior de os seus resultados cómicos a tender para trágicos serem consequências do socialismo, mas sim da falta de socialismo, de reconstrução da virgindade do socialismo genuíno que promete resultados diferentes dos dos abastardados socialismos reais.
Não, o Bloco de Esquerda nunca acompanhará o Presidente da República na visita a países socialistas que já mostraram para além de qualquer dúvida razoável o que o socialismo lhes ofereceu nos domínios da democracia, da liberdade e da prosperidade. Nunca visitará Cuba nem Angola, nem a Rússia nem a China, mas também a República Democrática Popular da Coreia, que chacina regularmente os dirigentes caídos em desgraça, nem a Venezuela, onde o socialismo remeteu à indigência o povo, e à prisão os opositores ao governo, do país com maiores reservas de petróleo do mundo. Irá sempre manter uma distância higiénica dos resultados reais dos socialismos reais e das suas pulhices e misérias.
O segredo da longevidade da esquerda radical é fugir a tirar conclusões sobre o que o socialismo tem para oferecer a partir de todas as experiências socialistas no mundo real ao longo de um século de socialismos. É varrer o socialismo real para debaixo do tapete.
E não lhes acontece nada porquê? Ora, é bom de ver: Polícia, Ministério Público, Tribunais, é tudo a mesma corja - em se tratando de passatempos da direita portuguesa fecham os olhos.
E não é só em Portugal. Em Espanha a coisa não é muito diferente: um dirigente do PP tinha 45 multas acumuladas desde 2011 e nada. Mas foi a Cuba, teve um acidente que provocou uma vítima mortal e "Ángel Carromero ficou sem carta e foi condenado a quatro anos de prisão". Cuba é um estado de direito, os poderosos, lá, não têm como passatempo pôr em risco a vida dos seus concidadãos.
Mas, espera: Para da comparação se poder tirar uma conclusão edificante, o dirigente preso não deveria ser governante local?
Porque, assim, almas mal-intencionadas - fascistas, vá lá - poderão julgar que o acidente pode ter tido alguma coisa a ver com a lástima das estradas e a decrepitude do parque automóvel cubano.
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