Nos anos 90 meteu-se-me em cabeça exportar para os EUA - encontrei umas quantas firmas que estariam interessadas em importar os móveis frigoríficos que então fabricava, desde que estes tivessem a "certificação NSF" e a "certificação UL". O negócio parecia aliciante: para performances semelhantes o produto local era inacreditavelmente tosco e muitíssimo mais caro e o importador que aceitou colaborar no meritório propósito de obter os malditos certificados era da mesma opinião.
Infelizmente, os vários protótipos que fomos executando (e que não eram mais do que os nossos modelos adaptados ao que julgávamos ser as exigências regulamentares daquele liberal mercado) foram ficando sucessivamente mais caros: ai este cabo não pode ser porque tem que ter a marcação "UL", ai esta chapa não porque o fabricante não dispõe do certificado não-sei-quê, ai esta mola nem pensar porque Deus nos livre se o mecânico tiver acesso ao motor sem precisar de ferramentas especializadas, ui este suporte não dá garantias de que, se uma matrona com 90 kg (eles diziam "lady") trepar aqui para cima não venha a superestrutura abaixo, ai credo que aqui há uma ventoinha que não está blindada, e se um menino mete o dedo mindinho nesta fresta e o corta, hem?
Isto e muito mais confortou-nos (a mim e ao desalentado cliente) na ideia de que o melhor era encontrar um especialista nestas merdas. Com sorte, encontrei: por uns modestos 3000 USD por semana, mais viagens e estadias, o homem, antigo funcionário de uma das agências que regulam estas coisas, passava uma semana por mês na fábrica orientando a construção e inteirando os técnicos locais na quantidade prodigiosa de burrices que, encarecendo o produto sem qualquer análise razoável de custo/benefício, tranquilizava as autoridades quanto a imaginários riscos de acidentes e delirantes ameaças para o ambiente.
Santo homem: pastor de uma igreja qualquer dessas que julgam que não são seitas, lia todos os meses uma revista que dava notícias sobre a Guerra Civil como se ela ainda estivesse a decorrer, prestava desinteressadamente ajuda à pequena comunidade onde vivia, perto de Chicago, e era pai de uma filharada, incluindo adoptivos.
Era de uma ignorância crassa sobre tudo que não tivesse a ver com a América; e apreciou a cozinha local, que invariavelmente achava "delicious" e da qual enfardava quantidades respeitáveis.
Às oito da manhã, já lá estava; e com frequência saía às oito da tarde. Sem nunca o ter dito, creio que ficou a achar que o meu pessoal era uma boa quadrilha de calaceiros; e de mim, o maior preguiçoso de todos, não sei o que pensou porque, por orgulho besta, não perguntei.
Gostei muito dele. E fez um bom trabalho: o primeiro modelo foi homologado aí um ano mais tarde. Já não assisti ao desenvolvimento da iniciativa porque os proprietários da empresa acharam que, tendo esta já filiais em três países europeus, precisava de um gestor realmente competente, que me ajudasse a ser o que não era, e a fazer o que não queria, pelo que, com a minha saída, ficaram reunidas as condições para um grande passo em frente.
Recomeçando, num certo sentido, a minha vida profissional, fui fabricar câmaras frigoríficas, entre outras coisas. E lembrei-me desta história porque hoje recebi uma extensa correspondência que começa assim:
WORKING DOCUMENT
In the framework of the implementation of Commission Regulation (EU) No…/…implementing Directive 2009/125/EC of the European Parliament and of the Council with regard to ecodesign requirements for refrigerated commercial display cabinets
(Text with EEA relevance)
COMMISSION REGULATION (EU) No…/…
of XXX
Depois, são mais 18 páginas de palavreado ora hermético, ora tolo, ora intrometido, mas sempre inútil.
Quer dizer que mais uma pedra oculta, num longo rosário delas, vai ser dependurada ao pescoço de algumas pequenas empresas; que essa pedra pesará mais do que no das grandes, e será mais um obstáculo ao aparecimento de novos fabricantes; que uma nova burocracia nascerá, e que ela se encarregará, com o tempo, de multiplicar normas até que já ninguém se lembre daquilo para que, originalmente, serviam - gente que será preciso sustentar; e que se vai alimentar a irresponsabilidade das pessoas, e a conflitualidade judicial, com questiúnculas sobre se faltava ou não faltava uma etiqueta a avisar que não se deve virar um jato de mangueira para um quadro eléctrico.
Dizem que, pondo uma mensagem dentro de uma garrafa e atirando-a ao mar, pode chegar ao outro lado do mundo. Pois pode; e se a mensagem for decidida por parasitas, escrita por idiotas, interpretada por inúteis e sancionada pelo Estado, chega mais depressa.
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