Claro que PSD e CDS morderam o isco - já andam a mordê-lo há algum tempo - e, batendo com a mão no peito indignado e patriota, dizem que sanções não, que horror, então faz lá algum sentido o povo, ai!, o povo sofredor e anónimo que com tanto empenho se esforçou nos anos negros da troica para cumprir um violento programa de sacrifícios ser agora, depois de uma saída limpa, agredido com sanções?
Não pode ser. E menos pode ser ainda quando se lembra que sanções não houve para a Alemanha e a França quando incumpriram as regras, que o défice acima de três por cento resultou da desgraça do BANIF, uma inevitabilidade que o governo actual herdou, e que as sanções consistem no corte de fundos dos quais o país desesperadamente precisa para investir.
Catarina, a actrizita esponja de quanto disparate anda nos ares internacionais da ideologia marxista recauchutada em causas fracturantes e teorias económicas igualitaristas e delirantes, rebola de indignação, para alegria da comunicação social, que a adora: "Bruxelas dizia que a austeridade era ser bom aluno. E agora quer sancionar aquilo que foi feito de acordo com o que dizia?"
Convém lembrar aos gentios:
Não, não se cumpriu o programa da troica, que foi sucessivamente revisto nos prazos e nos objectivos, à medida que o empenho obediente do governo cessante foi convencendo os credores à tolerância. E o procedimento pelo défice excessivo resulta não do que o governo anterior fez, mas do que o actual faz: o Eurogrupo e a parte da Comissão Europeia que tem juízo (excluindo portanto desde logo o Presidente Juncker, uma irrelevância quando está sóbrio e um inimputável achacado a confissões inconvenientes quando não está) têm, com boas razões, medo de Costa, uma reedição do alucinado Sócrates, numa versão sebosa e cheia de bonomia; e a ameaça (de resto pouco credível, os burocratas em Bruxelas estão tão aterrorizados com as brechas no edifício da União que a última coisa que querem é dar munições ao campo antieuropeu) é assim instrumental - tens que aninhar, Costa, pá, não queremos um quarto resgate.
A ideia de que países com pesos demográficos e económicos muito diferentes possam ter peso igual na hora de decidir foi sempre um argumento caro aos europeístas de todos os bordos, e ainda hoje, afrontando a evidência, se declara sem rir que temos que ter assento nas instituições europeias porque a nossa voz vale pelo menos tanto como outra qualquer. O que foi sempre um disparate, tal como é disparatada a ideia de que os pequenos países encalacrados podem fazer uma fronda contra os contribuintes líquidos da UE. Nenhum estadista se pode arriscar permanentemente a afrontar o seu eleitorado em nome do que entendem os representantes de outros eleitorados, a menos que consiga engendrar uma maneira de aldrabar quem o elegeu, o que não é simplesmente viável durante muito tempo. E é por as coisas serem assim, e não de outra maneira, que a Alemanha não importa mais, não obstante ter excedentes comerciais - Merkel tem que convencer o seu eleitorado, não frei Anacleto Louçã, Pacheco Pereira, Centeno ou qualquer das sumidades que pontificam no nosso espaço opinativo, que, para sossego dela, aliás, nem sabe quem são.
A Alemanha e a França podem incorrer em défices; a Itália e a Espanha, talvez, também. Nós não, não sem riscos de sanções e raios e coriscos. E isto não é uma coisa má, é uma coisa boa porque o défice da Alemanha serviu para pagar a reunificação, não sendo comparável ao nosso ou a outros quaisquer; a correcção dos défices nos outros grandes países é condição para que as respectivas economias deixem o atoleiro em que mergulharam há anos; e mesmo que nos conviesse que a Itália, a França e a Espanha saíssem do marasmo não está isso na nossa mão, mas ter a nossa economia sã - sim.
Não se pode ter opiniões sobre o caso BANIF sem se conhecer a história completa da débâcle, e essa nem a opinião pública nem os entendidos a conhecem - o que há são palpites. Dou o meu: não havia necessidade de o BANIF acabar, nunca deveria ter sido entregue ao preço da uva mijona ao Santander, nem o Banco de Portugal, dirigido por um eunuco cego e incontinente verbal, nem as autoridades europeias, que se refugiam em colégios inimputáveis, nem o governo, falam verdade. Este último precipitou-se para poder passar a batata quente para a responsabilidade do governo anterior, numa hipótese provável; e noutra, que não excluo, por ter havido corrupção - Costa é tão parecido com Sócrates que não é de pôr de parte a possibilidade de o ser também na venalidade.
Restam os fundos, os abençoados fundos europeus com os quais desde meados da década de oitenta se promete comprar o país moderno, desenvolvido, no pelotão da frente da modernidade, do pugresso e do crescimento, de todas as vezes se anunciando: agora é que vai ser!
Não vai ser: uma parte será torrada nas agências que distribuem o arame, outra em empreendimentos que em devido tempo fecharão a porta, outra em corrupção, outra em investimentos públicos não reprodutivos, e outra finalmente em empresas viáveis que nasceriam de todo o modo se o ambiente social, fiscal e legislativo não fosse anti-empresas.
Vale a pena apoiar Costa na sua jogada de Maquiavel das Avenidas Novas? O PSD, o CDS, os fósseis à esquerda do PS, todo o cão e gato que opina nos jornais, televisão, blogosfera e redes sociais, acham que sim; eu acho que não.
Sobre a redução do IRC para 10%, quando haja investimentos novos, disse há tempos, com a lucidez que me reconheço:
"A medida, a mim, embaraça-me: porque não vejo por que razão um investimento de cinco milhões é melhor do que cinco de um milhão cada; porque diabo três ou cinco estariam bem mas já não dois; e ainda porque qualquer medida que fira a igualdade de tratamento fiscal das empresas abre a porta a uma quantidade de distorções".
Por esta notícia ficamos a saber que a UE acha que a redução do IRC apenas para certas empresas em certas circunstâncias fere o princípio da livre concorrência; e que a redução para todas as empresas não a quer encarar o Governo - por temer uma queda de receita.
Mas o nosso País precisa desesperadamente de investimento, sem o qual o crescimento fica comprometido. E é da natureza do investimento (tipicamente se for privado, atipicamente se for público) produzir retorno. Não é assim absurdo pensar que a redução universal da taxa de imposto implicaria uma quebra de receita no imediato e um aumento no futuro, mesmo que a redução não viesse para os 10% mas para algo mais palatável para o Estado.
Seria preciso aceitar um aumento do défice, claro. Mas, sejamos francos: houve algum drama com as derrapagens já verificadas? Por outro lado, talvez não convenha imaginar que os credores são ainda mais estúpidos do que parecem: o Governo arrasta os pés para cortar no que deve e foi lesto a aumentar o que não devia. Fazer ao contrário, nesta maré, não parece um risco mal calculado.
E depois, por uma vez, a UE tem razão: as taxas diferenciadas ferem o princípio da livre concorrência. Pois então não deve ser excessivamente difícil tomá-los à letra. Afinal, os bons alunos às vezes também têm cara de pau.
Desta vez, limito-me a chamar a atenção para a data em que este texto foi publicado pela primeira vez.
DRAMA CAVAQUIANO
«A semana passada, os perversos sábios que se especializaram na nossa economia fizeram um seminário com banqueiros em Vilamoura. Nunca fui convidado para nenhuma destas negras actividades e tenho imensa pena. Os economistas não são como nós. Pertencem àquela espécie de seres que outrora nas florestas se ocupavam a conversar com espíritos e sabiam fórmulas mágicas para vender dragões. Ainda hoje há astrólogos e praticantes de medicinas paralelas. Mas com pouca influência. Só os economistas sobrevivem à civilização e conseguiram conservar os seu antigo prestígio. O grande Merlin (*Cavaco) ficou em Lisboa, a negociar a revisão constitucional. Em Vilamoura, só esteve o aprendiz Cadilhe, a fada Morgana, Teresa Ter-Minassian, e duas dúzias de feiticeiros teóricos. Mesmo assim valeu a pena.
Depois de vastas e profundas discussões e da celebração minuciosa dos ritos esotéricos da ciência, os sábios de Vilamoura resolveram mandar, pelo aprendiz Cadilhe, um recado urgente a Merlin: a raiz da mandrágora, a pele do sapo e os sinais de fumo indicavam, sem sombra de dúvida, que Merlin devia reduzir o défice do Estado. Da sua caverna de Linda-a-Velha, o venerando Alfredo de Sousa, ex-mestre de Merlin, aprovou esta grave advertência com todo o peso do seu afamado bom senso.
Não há certamente na história portuguesa dos últimos duzentos anos conselho que mais gente mais vezes tenha dado em vão a mais governos. Tirando Afonso Costa em 1913, do fim do século XVIII a 1928, nem um único governo foi capaz de reduzir significativamente o défice do Estado. O dr. Salazar, que foi capaz, era um ditador muito bem equipado, com um exército fascizante, uma bela polícia secreta e lindíssimos campos de concentração. Os sábios de Vilamoura, no etéreo assento onde subiram, desconhecem estas coisas vergonhosas ou não vêem por pura delicadeza qualquer relação entre o défice do Estado e a deliciosa capacidade de meter na cadeia os portugueses teimosos ou malvados, que se recusam a cumprir as profecias económicas dos peritos.
Quando lhes perguntam como pode o grande Merlin reduzir o défice, os sábios de Vilamoura deixam cair uma pérola da sua enorme sabedoria e respondem que, se diminuirem as despesas, eles garantem, porque um mocho lhes disse, que o défice também diminui. Quando lhes perguntam que despesas é preciso diminuir, eles respondem, falando sempre pelo mocho, que é preciso combater a burocracia. E que burocracia? A burocracia inútil. Perfeito. O feiticeiro de Linda-a-Velha chegou até a sugerir que se acabasse com o Conselho Nacional do Plano, acto heróico que pouparia pelo menos uns milhares (sic) de contos.
A ideia grotesca de que a maneira de reduzir o défice é reduzir o número de "empregos inúteis" fazia tradicionalmente parte do programa da Esquerda, ou seja, do radicalismo democrático. Durante séculos, a Esquerda berrou, ganiu, regougou contra os "empregados inúteis", para descobrir logo que chegava ao poder (e raras vezes chegou) que a "inutilidade" dos empregos consistia em não serem dela. Quando os "empregos" passavam para os "patriotas" do café Marrare e de outros cafés bem pensantes tornavam-se miraculosamente "úteis".
Dantes o ódio à burocracia disfarçava a ganância. Hoje disfarça a total ausência de pensamento político dos sábios de Vilamoura e a sua basáltica impermeabilidade ao real. Joaquim António de Aguiar declarou à hora da morte que não tinha gostado de nascer entre estúpidos, viver entre estúpidos e morrer entre estúpidos. Foi um excesso lamentável que só as circunstâncias explicam. Não está com certeza fora dos limites do entendimento dos sábios de Vilamoura que, em Portugal, o Estado preenche, ou tenta preencher, a diferença entre as expectativas dos portugueses e a pobreza do país e que, portanto, o défice é proporcional a essa diferença e reduzi-lo implica baixar essas expectativas.
Vamos lá devagarinho e com paciência. As expectativas dos portugueses não dependem apenas no governo. Dependem sobretudo do que os portugueses conhecem do estilo de vida na Europa e na América; das promessas que receberam de inúmeros demagogos desde 1974; e das próprias mudanças para melhor nestes últimos tempos. Incontestavelmente, o dr. Cavaco acirrou o apetite a toda a gente durante os dois anos da absurda campanha eleitoral, que começou no governo de 85 e acabou em 19 de Julho. Mas resta apurar se, sem ela, a situação seria menos intratável.
Os portugueses querem as escolas e as universidades que têm e mais escolas e mais universidades e mais professores e mais instalações. Querem mais hospitais, mais médicos e tratamentos mais caros. Querem reformas maiores. Querem mais casas e mais baratas. Querem mais esgotos, mais estradas, mais electrificação, mais água canalizada, mais tribunais e tribunais mais eficientes. Querem mais isto e mais aquilo e, a seguir, ainda mais e mais. Não há fundo no que os portugueses querem e no que se sentem com direito a ter. Os inválidos querem a assistência, os atletas pistas de tartan, os cineastas filmes e a aldeia de Pouca Terra o restauro de uma capela. Basta ligar a televisão dez minutos por dia para se apreciar o abismo insondável do que os portugueses esperam do Estado. Digam-me os sábios de Vilamoura de quem é que eles hão-de esperar? Da sua pobreza ou de Nossa Senhora de Fátima?
Nenhum milagre financeiro (incluindo a venda das empresas públicas e a contenção temporária da dívida) pode algum dia vir a satisfazer as exigências do país, no mínimo necessário à paz e ao equilíbrio social, com as receitas "normais" do Estado. O défice é, por consequência, inevitável e o crescimento do défice também, uma vez que a soma do que os portugueses consideram o mínimo necessário cresce exponencialmente à medida que esse mínimo é satisfeito. Por outro lado, como o grande Merlin não tardará a descobrir, a pobreza não põe limites à voracidade indígena, mas põe estreitíssimos limites à carga fiscal suportável pela classe média que, para classe média, vive numa patética indigência, constantemente ameaçada de um sério trambolhão social. Não é por acaso que, desde os bons tempos de el-rei D. João VI, os governos andam por aí apertados entre o imposto e a dívida, ora caindo por causa do imposto, ora caindo por causa da dívida. Neste capítulo, nada mudou. O que mudou foi a quantidade de coisas desejadas, hoje infinitamente maiores.
Não sendo pessoas mal nascidas e ordinárias, os sábios de Vilamoura não se preocupam com política. Limitam-se a oferecer opiniões muito avisadas e criteriosas, para os políticos, no seu próprio interesse, seguirem à risca. Eles guiam-se pela razão, os políticos pela razão inferior de ganhar votos, a que sacrificam a Pátria e o Desenvolvimento. Mas nunca lhes ocorreu que se, por exemplo, o dr. Cavaco não ganhar votos, os ganha o dr. Constâncio pelos mesmos sórdidos processos e para os mesmos repelentes fins, ou que a aplicação das suas receitas, além do recheio das suas queridas cabecinhas, exige dez PIDES e um considerável alvoroço.
O grande Merlin, agora bastante depenado, já pertenceu ao grupo dos sete sábios de Vilamoura. Este ano começou a sua educação. Ainda tem muito que aprender. Quando aprender tudo, vai descobrir que afinal não é o grande Merlin, é o dr. Cavaco, pequeno político com muita sorte, metido no pântano até ao pescoço. Como os outros, coitado. Um pobre homem.»
(Vasco Pulido Valente, in O Independente, 21 de Outubro de 1988)
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