Suponho que o senhor embaixador sofrerá tratos de polé para conseguir dizer, diplomaticamente, que o reino da Dinamarca não tem que dar explicações ao Parlamento Português, muito menos em sede de comissão parlamentar, sobre decisões que toma no âmbito das suas competências e para aplicação no seu território. Essas explicações teria que as dar o governo dinamarquês ao parlamento dinamarquês, se a decisão, no caso, não fosse precisamente... do parlamento dinamarquês.
Ou poderia o senhor Embaixador ser informado pelo nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros da posição, se tiver alguma, do nosso Governo, caso em que decerto o diplomata e o país que representa tomariam boa nota e agradeceriam o cuidado.
Agora, o Partido Socialista, sob a esclarecida liderança de um tal Vitalino Canas, acha que o representante de um país estrangeiro deve ser convidado urgentemente a vir dar-lhe, e aos seus colegas, explicações sobre uma legislação que "não pode deixar de suscitar, desde já e inequivocamente, uma condenação”.
Sobre a legislação em apreço tenho uma opinião formada, e convoquei já o meu animal de companhia, de seu nome "Cacau", que me deve obediência, para o inteirar da minha indignação. E estava até disposto a consignar neste blogue o meu ponto de vista na matéria, merecedora de abundantes considerações.
Mas de momento perdi a vontade: que o assunto é sério mas tenho receio de que os meus escassos leitores me associem a Vitalino e ao PS. E posso ter razão ou não ter, acertar ou não, sair-me um texto escorreito ou uma mixórdia - mas ridículo não.
Claro que as autoridades dinamarquesas se estão nas tintas para o que custa produzir as notas e as moedas: os custos administrativos e financeiros dessa produção não são senão uma pequeníssima parte dos custos da omnipresença informática do Estado; e se esses custos tivessem realmente alguma importância poderiam ser cobertos com uma taxa - se tantas se inventam para serviços que inexistem ou são daninhos, mais uma menos uma nem se notaria.
Sucede que o cidadão com dinheiro no bolso é um perigo: pode subtrair-se ao cumprimento das suas obrigações fiscais, e induzir outros a que o façam; pode adquirir produtos, e alimentar hábitos, que lhe façam mal à saúde; pode inclusive sustentar - ó perfídia! - vícios; e sobretudo a sua vida ainda não é um livro completamente aberto - pode, em suma, fazer coisas sem que as autoridades saibam.
Ora, isto não pode ser. Um suspeito de qualquer coisa já hoje pode ter a sua vida completamente espiolhada: que doenças tem, com quem se dá, onde vai, onde come, o que come, o que lê, quais as suas inclinações políticas e religiosas, o que compra, quando, com que recursos, se tem ou não pecadilhos, e um longo etc. E suspeitos todos podem ser, para já desde que haja denúncias ou deem nas vistas, a prazo, e porque os meios já existem, e quem os controla também, a título de fiscalização preventiva.
A populaça local acha bem, e se esta iniciativa agrada aos cidadãos dinamarqueses, que, por serem loiros, altos, ricos e social-democratas à moda do Norte, tendem, na opinião de não poucos dos meus compatriotas, a ser mais lúcidos do que nós, a coisa há-de cá chegar.
O pretexto não será o custo material do dinheiro em espécie - a desculpa pode funcionar com os totós lá do Norte, aqui costuma-se embarcar em tiradas de maior fôlego, como o combate à evasão fiscal e o reforço da justiça social - dois bordões ao abrigo dos quais os direitos dos cidadãos se veem diminuídos e os das burocracias e parasitagens aumentados.
A quem protestar dir-se-á: mas o que é que você tem a esconder, hem? E o destinatário da objurgatória embatucará porque realmente quem tem qualquer coisa a esconder (e toda a gente tem, salvo santos, heróis e doidos) não pode, precisamente, responder - porque se denuncia.
Prossigamos, então. Desde que, é claro, não se ofenda o sagrado direito à opinião - isso nunca. E mesmo esse, crescentemente, só na medida em que não se tenham opiniões racistas, fascistas, sexistas ou outros istas que a liberdade vigiada vai inventando.
A caminho da sociedade perfeita, pois: de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades. E sem revoluções, nem convulsões, nem griteiros - com medidinhas fiscais. O Fisco é poderoso: foi com ele que se tramou Al Capone, que a dificuldade de provar os crimes que praticou não permitia condená-lo.
Mas com Al Capone foi um recurso; agora é uma fatalidade. E criminosos, bem vistas as coisas, somos todos - até prova em contrário.
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