Terça-feira, 31 de Outubro de 2017

O regresso de El-Rei Dom Sebastião

2017-10-31 Puidgemont de barro.jpg

[Quando comecei a escrever isto ainda não era conhecido que o Carles Puidgemont se tinha pirado da Catalunha para a Bélgica, mas, apesar do potencial de incremento do dramatismo da história, a fuga não altera numa vírgula o que já escrevi nem o resto que tenciono escrever, apenas significa que ele é um bocado mas escorregadio do que o nosso José Sócrates que, mesmo sabendo que seria detido ao aterrar em Lisboa, veio a Portugal, em vez de ter esperado uma semana para voar para o Brasil com o bilhete que já tinha na mão. E, eventualmente, mais estúpido, por ter fugido para um país que não o abriga da possibilidade de extradição.]

O processo de independência da Catalunha é uma burla conduzida por radicais irresponsáveis que já a estão a precipitar numa tragédia económica, com a fuga em massa de capitais das empresas que se deslocalizam enquanto é tempo para regiões menos sujeitas à instabilidade política e jurídica e à irresponsabilidade dos governantes, provocando o empobrecimento da que tem sido uma das regiões mais prósperas da Europa, e social, com o extremar de posições barricadas dos lados do  e do no, que pode ser levado sem travão evidente à iminência de uma guerra civil, não entre catalães e espanhóis, mas entre catalães e catalães.

E é uma burla pelo recurso ao processo clássico da sucessão de faits accomplis,

  • a convocação do referendo que, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo, e desejável ou indesejável para conhecer a posição dos catalães sobre a independência, foi considerado ilegal pelos tribunais,
  • a resistência à ordem dos tribunais para o suspender, mantendo a sua realização mas em termos informais e sem qualquer tipo de controlo democrático do processo nem rigor, prescindindo até do recurso aos cadernos eleitorais,
  • a utilização dos resultados do referendo que não representam, nem formal, pela questão da ilegalidade, nem muito menos informalmente, pela questão da batota no processo, a vontade dos catalães, para sustentar uma declaração de independência,
  • a declaração atabalhoada da independência pelo parlamento dominado por uma maioria circunstancial de independentistas sem quaisquer afinidades políticas ou sequer de modelo económico ou mesmo de sociedade entre si, e sem conceder às bancadas não-independentistas a oportunidade de um mínimo de debate que permitisse expôr e ponderar séria e publicamente os seus abundantes prós e os contras,
  • a recusa da maioria independentista em aceitar a realização de eleições clarificadoras da posição do povo catalão sobre a independência à custa do risco de perder a maioria que utilizou para precipitar a declaração.

Utilizou adicionalmente o segredo clássico dos populismos que, mais do que a imprescindível inteligência emocional dos populistas e da sua capacidade para suscitarem no público, e depois manipularem, emoções, reside em apresentarem soluções milagrosas que, tudo o resto igual, resolveriam os problemas que prometem resolver, escondendo que, uma vez implementando a solução proposta, tudo o resto diferente, porque a solução proposta altera também aquilo que eles sabem muito bem mas não querem que se perceba que também altera. E acenou aos catalães com a independência, de valor emotivo e simbólico evidente, escondendo e evitando a discussão das consequências que, por exemplo na economia catalã, já são graves, mas poderão vir a ser catastróficas se a independência, e a consequente saída da Espanha e da União Europeia, se vier a concretizar.

Sobrou deste processo desonensto e perigoso a revelação de uma grande política, a líder da bancada do Ciudadanos no parlamento catalão, Inés Arrimadas, e daqui a 20 ou 30 anos, se o mundo ainda existir, eu ainda estiver vivo, e se ainda houver registo destas discussões nas redes sociais, regressarei a esta publicação para vos perguntar se tinha ou não tinha razão?

Se me for permitido propôr transferências antes do fim da época até proponho desde já a troca dela pelas bloquistas todas, dando-lhes a elas a oportunidade de irem fazer a revolução para uma região onde há muitos, se bem que não a maioria, que são tão tontos como elas, e a nós a de ganhar uma deputada de carácter, inteligente, gira e com uma voz ainda mais interessante do que a da Marisa Matias, que aliás até pode ficar se não for necessária para os termos da troca. E de caminho, chefe do governo que não presta contas ao parlamento por chefe de governo que não presta contas ao parlamento, também podíamos dar o António Costa em troca do Carles Puidgemont, que se podia hospedar cá numa das casas amarelas que ainda sobrevivem à especulação imobiliária.

O governo espanhol esteve bem neste processo? Honestamente não sei avaliar, porque em política, no mundo real, que não na retórica dos populistas onde tudo se consegue resolver sem custos, estar bem não significa conseguir atingir resultados bons, mas apenas os melhores, ou menos maus, de entre os possíveis, e não tenho informação para avaliar com rigor mediano quais seriam as opções possíveis. Mas não é estranho, nem sequer anti-democrático em si, que um governo nacional contrarie uma secessão de uma região, de modo que, visto daqui, o governo espanhol me pareceu razoavelmente prudente e moderado a lidar com o bando de dementes que liderou o processo. 

Os tribunais catalães estiveram bem neste processo? Ainda menos sei avaliar, porque os tribunais se regem pela Lei espanhola que desconheço ainda mais do que a portuguesa, se fizeram bem em proibir o referendo e em perseguir judicialmente os, e mesmo ordenar a detenção de alguns dos, organizadores que recusaram cumprir a proibição judicial.

Mas uma coisa eu sei. Os tribunais não tomaram as decisões que tomaram para fazer fretes ao poder político, seja o governo ou o parlamento central, sejam os seus correspondentes regionais independentistas, mas porque interpretaram, como era suposto fazerem, a Lei. Em democracia é assim, e chama-se a isto separação de poderes. Em ditadura, ou nos regimes populistas que formalmente são democracias mas na prática autocracias, a separação de poderes é a primeira vítima das revoluções e os tribunais acabam mesmo a servir os interesses do poder politico de modos que resultam, não necessariamente da lei, mas da correlação de forças. Como dizia o Álvaro Cunhal, a revolução não respeita a lei, fá-la.

De modo que a alegação que a Catalunha está a ser submetida a uma ditadura de Castela, e o recurso ao termo Castela é todo um programa de manipulação populista das emoções, uma das linhas da argumentação de vitimização mais usada pelos independentistas catalães e pelos seus apoiantes cá dentro, é infame, e um insulto à memória do sofrimento de todas as vítimas de todas as ditaduras da história da humanidade. Se a Espanha fosse uma ditadura, os líderes independentistas por esta hora estariam desaparecidos, ainda vivos a serem interrogados em cárceres secretos, ou já em valas comuns. E às vezes penso que quem recorre facilmente a infâmias destas, apontando ditaduras, fascismos ou mesmo nacional-socialismos em tudo aquilo de que discordam, merecia mesmo passar uns tempos numa ditadura, num fascismo ou num nacional-socialismo para ver como é que elas lhe cantavam e para ficar finalmente a perceber a diferença entre uma democracia onde nem sempre lhe fazem todas as vontades e um sistema realmente totalitário.

E quem são os independentistas que andam por cá?

Que a esquerda apoie o independentismo não é surpresa para ninguém. A esquerda nunca perdoará à Europa ter-se unido há 60 anos para se defender politica, económica e socialmente das tentações sovietizantes, militarmente defendeu-se com a Nato, e hoje em dia continua, talvez por um reflexo condicionado post morten do socialismo, a defender tudo o que divida e enfraqueça a Europa e as nações europeias, desde os mais diversos -exit, aos independentismos, à saída do euro, às auditorias às dívidas para sustentar o pretexto de não as pagar. A esquerda apoia pois o independentismo catalão e a libertação da Catalunha da pata de Castela.

Mais difícil de compreender são os independentistas de direita, até porque uma das linhas de fractura que se podem identificar na divisão entre a direita e a esquerda é justamente o gosto da primeira, e o desgosto da segunda, pelo conceito de Nação. Como pelos da Autoridade ou da Família, por exemplo. E estou a falar da direita tradicional e conservadora que gosta de respeitar estes conceitos, não da direita populista que respeita os conceitos que lhe possibilitarem conquistar apoios nos que lhe vão na conversa, ou seja, apenas os respeita como instrumentos e não como conceitos.

O que faz então um conservador de direita entusiasmar-se com o independentismo catalão e zangar-se com a ditadura de Castela? Eu vejo duas hipóteses explicativas deste fenómeno quase inverosímil mas que existe.

A primeira é que chegaram à idade Freitas do Amaral, ou à circunstância que parece potenciada pela idade em que quem andou a vida toda a ser desprezado e a desprezar a esquerda e a sua presunção de superioridade moral, porque não a tem de facto, começa a sentir uma necessidade de respeito, ou mesmo de afecto, da esquerda e adapta-se a ela começando a defender causas da esquerda, de que a auto-determinação dos povos é tão boa como qualquer outra, e tentando mostrar aos que antes desprezava e o desprezavam que afinal também tem sensibilidade social e princípios de justiça social como parece assumir que eles têm? E também desatam a ver ditaduras em democracias que não lhes fazem as vontades todas? A confundir governo com justiça como se a separação de poderes tivesse deixado de existir? A considerar que a lei é para se cumprir, tudo bem, mas quando não se cumpre é para o incumprimento não ter consequências? Não sei avaliar.

A segunda já se enquadra mais em princípios próprios da direita conservadora, nomeadamente no gosto pelo nacionalismo, e é sentir uma afinidade entre a libertação dos catalães do jugo de Castela e a nossa própria restauração da independência em 1640, é sentir-se participar, quase quinhentos anos depois e sem sujar o fato com sangue, na defenestração dos lacaios de Castela, é transportar para a actualidade catalã a opressão histórica que a Espanha exerceu ao longo de séculos sobre Portugal e os Portugueses? É sonhar com a reconquista de Olivença? Talvez seja.

Mas, se é isso, eu convido-os a reflectirem um pouco sobre a tal opressão de Castela sobre Portugal. É que é um facto que a Espanha passou séculos a exercer bullying militar e político sobre Portugal, a fazer invasões e anexações, a matar portugueses, e há poucos ditados populares tão estabelecidos como de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento, mesmo se eu conheço casos particulares de casamentos que não o confirmam. Mas a única circunstância histórica em que Portugal foi mesmo integrado na Espanha, os sessenta anos da dinastia Filipina de 1580 a 1640, não resultou de nenhuma conquista militar nem da opressão de Castela, mas da estupidez e incompetência das elites portuguesas, a começar pelo reizinho imaturo que decidiu ir a Marrocos matar mouros antes de assegurar sucessão, pela côrte que não foi capaz de o impedir de ir, nem que tivesse sido por um par de tabefes bem aplicados que na idade certa, e pelas restantes elites que deixaram resolver a questão como decorria da lei aceitando a entrega da coroa ao legítimo sucessor de Sebastião na linha de sucessão, o tio Felipe II, rei de Espanha. Não foi a opressão de Castela, mas a irresponsabilidade e a incompetência das elites portuguesas, que entregaram Portugal à coroa espanhola.

De modo que, se quiserem aprender alguma lição com a dinastia filipina e com a restauração, fariam melhor em prestar mais atenção à raiz do problema, a incompetência para governar das elites portuguesas que volta e meia, e em última instância, entregam a independência nas mãos de quem tem capacidade para o fazer, e menos aos heroísmos pretensiosos das restaurações, muitas vezes encenados pelos mesmos que estiveram activamente na sua perda. Defenestrem os Dom Sebastião para mais tarde não ser necessário defenestrar os Miguel de Vasconcelos.

E se com este sobressalto independentista andam a nutrir sonhos alucinogénicos, deixem-se deles: Olivença só voltará a ser portuguesa por cima dos cadáveres dos que lá vivem, que preferem ser espanhóis e governados por gente com um mínimo de juízo, a portugueses governados e de vez em quando abandonados à sua sorte pelos Dom Sebastião de serviço, que os há para dar e vender, mesmo que agora sejam entrevistados em cenários quartel de bombeiro.

Já se o que os motiva é a falta de afectos da esquerda, desistam. Eles não gostam nem respeitam os Freitas do Amaral, apenas os acolhem como idiotas úteis que lhes dão jeito e apenas enquanto lhes dão jeito. Logo que deixam de dar, passam a Jumento do Mês.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 10:09
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