Segunda-feira, 27 de Maio de 2019

Notas sobre a noite eleitoral

O eleitorado borrifou-se para as eleições europeias: não sabia quem eram os candidatos, quem eram os deputados que lá estavam, o que fizeram, e o que vão fazer estes agora eleitos. Sabe difusamente que ganham bem; e que nenhum dos futuros deputados é contra a Europa dos subsídios. A Europa dos subsídios é boa, como é a dos empregos quando falham aqui, a dos empregos mais bem pagos quando aqui são mal, e, para a juventude, o Erasmus. O Euro deixou de ser assunto porque criou a sua própria realidade: agrada à direita porque obriga a disciplina orçamental; agrada ao PS porque, fazendo da necessidade força, descobriu que mesmo com ele e a disciplina a que obriga pode ganhar eleições; agrada ao eleitor porque tem no bolso a mesma moeda que o alemão ou o francês; e, desagradando ao Bloco, e mais ainda ao PCP, nenhum dos dois quer, por razões tácticas, insistir num cavalo perdedor, sendo que o Bloco, por estar a caminho do poder efectivo, tende a ser cada vez mais europeísta e institucional, guardando o esquerdismo para as cores do arco-íris.

 

Não havendo nada para discutir sobre o “parlamento” europeu, discutiram-se as trincas caseiras. Mas nenhum dos candidatos o era para governar, e todos foram eco das posições dos respectivos partidos sobre a governação do país, razão pela qual o que estava em jogo era apenas uma mega-sondagem. À qual os consultados, à altura de quase 70% (provavelmente menos: ninguém afiança que os cadernos eleitorais estejam expurgados de mortos. O que é estranho, num país onde a máquina do Estado, se quiser, pode apurar quantas pessoas sofrem de hemorroidal, mas não é capaz de actualizar a lista de cidadãos eleitores) disseram não querer responder.

 

O PCP continua a perder eleitores (quase 200.000), e o herdeiro natural dos votos perdidos é o Bloco. Entende-se: as posições do PCP dentro da geringonça mal se têm distinguido das do Bloco. Como as credenciais democráticas dos comunistas inexistem, e as bloquistas parecem existir, além do que tem uma retórica mais moderna, fracturante e flexível, ao PCP restaria ser o depositário da esperança de uma sociedade alternativa. Se tudo o que tem para oferecer é o apoio a funcionários públicos e pensionistas, agora que até os sindicatos se atrevem a ignorá-los porque sabem que no essencial o PCP está amarrado ao que o governo decide, votar comunista não vale a pena.  A actual direcção do PCP fez um gambito errado, que o partido seguiu por causa do centralismo “democrático”. E só não é garantido o abençoado enterro desta associação de malfeitores porque não é impossível que mudem de orientação, sobretudo se uma futura geringonça incluir o Bloco no governo mas não o PCP (se incluísse também o PCP, o suicídio confirmar-se-ia – comunistas não resistem a experiências governamentais, a menos que liquidem os compagnons, a democracia e a alternância).

 

Nem o PSD nem o CDS perderam votos em relação a 2014 (pelo contrário, ganharam um pouco mais de 20.000; se incluirmos a Aliança, o Chega e a IL, que presumivelmente integravam a PàF, o ganho é de cerca de 144.000). Porém, a base de cálculo é diferente porque há quase um milhão de novos eleitores. Donde, a chamada direita teve uma clara derrota.

 

Que fazer com a derrota? O que há a fazer é evidente, já que os eleitores que faltam para derrubar a situação estão em casa, pelo que é preciso ir lá buscá-los.

 

O busílis é como. Rui Rio, no inacreditável discurso de derrota da noite eleitoral, disse isto: estou convencido de que, se fizer mais do mesmo, o eleitorado que agora me mandou bugiar mudará de opinião daqui a três meses. O homem é teimoso, mas nem ele acreditará numa tese destas, pelo que, traduzindo, afirmou que conta perder as eleições legislativas mas ir para o governo na posição de sócio júnior, fazendo então as reformas de que o país precisa, com o amigo Costa.

 

Costa, porém, não sabe o que são reformas, mas sabe o que lhe convém para preservar o seu couro político. Fará portanto as alianças que forem necessárias para continuar a andar de carro com motorista e ter o poder de distribuir lugares no aparelho de Estado. E como, na sua abissal ignorância sobre o que conviria fazer para pôr o país a crescer seriamente, guarda instintos de esquerda, preferirá alianças com as maluquinhas do Bloco ou os comedores de tofu do PAN, caso em que, de reformas, podemos contar com a extinção das touradas, a modificação dos menus das cantinas escolares e o reforço da agenda LGBTI nos manuais do ensino.

 

Se viesse a aliar-se, por um bambúrrio qualquer do destino eleitoral, com Rio, é provável que alinhasse na loucura da regionalização que, longe de diminuir o peso do Estado, aproximaria este do cidadão, mas em veste da multiplicação de terreiros do Paço pelo país, de tiranetes pela província, e de publicanos a esmifrar o que resta de rendimento disponível.

 

Os eleitores que ficaram em casa poucas razões terão portanto para se incomodarem a dar o seu voto ao PSD nas legislativas. E no CDS?

 

Este partido nunca ganhou eleições e nasceu tarde para acaparar lugares no aparelho de Estado – já estavam ocupados. Quando chegou ao governo, foi como ancilar do PSD. Desde que Rio elegeu, como potencial aliado, o PS, o papel do CDS deveria ser falar, além do seu eleitorado tradicional (católicos, social-democratas que se autodescrevem como democratas-cristãos, conservadores, liberais e reaccionários sortidos) àquele do PSD que Rio desamparou.

 

Fez isso, mas sem consistência e com uma pecha triunfalista (nós vamos ultrapassar o PSD) que nem era realista nem podia cair bem. E ao mesmo tempo, como uma galinha sem cabeça, desatou a correr atrás de todas as causas em que houvesse descontentes, tomando-lhes as dores sem cuidar de saber que quaisquer posições, para serem credíveis, precisam de ter, antes de mais, autenticidade. Foi o caso com os professores: o CDS não pode, na oposição, defender coisas diferentes das que defenderia se fosse governo, porque o eleitorado não engole a patranha.

 

No lamber das feridas, é provável que as várias capelas dentro dos partidos derrotados reivindiquem para si a exclusão das outras, com o propósito de ganhar eleitores com consistência e unidade de propósitos. Puro engano: aos partidos de poder a consistência e unidade são fornecidas pela direcção, que todavia exclui da decisão sem excluir do partido – as tendências fazem parte da vida dos partidos que querem ser grandes. E é também seguro que as novas franjas de eleitores, sobretudo a miudagem que chegou hoje ao voto e traz a cabeça formatada pelas tretas do ambiente e da salvação do planeta, precisam de uma resposta. Mas essa resposta, mesmo que não muito convincente, não pode ser a mesma da esquerda, que consiste em mais leis, mais organismos, mais propaganda e mais despesa pública. Porque, nisto como no resto, o eleitor prefere os originais aos sucedâneos.

 

Nada mudará, provavelmente, nos três meses que faltam até às legislativas. E não é impossível que a provável vitória do PS se venha a revelar pírrica, porque o aparelho de Estado está anquilosado por falta de investimento de manutenção, a economia não cresce senão em doses minúsculas, o Estado Social dá mostras de esgotamento, e as contas públicas não melhoraram a ponto de se poder dizer que o país está preparado para resistir a uma crise.

 

Talvez portanto esta derrota seja menos má do que parece, porque da introspecção que vai provocar pode nascer uma melhor direita. Uma que ache que é possível demonstrar ao eleitor que se pode fazer melhor não com versões diferentes das mesmas políticas mas com políticas alternativas; e que, tendo desaparecido das análises políticas a maioria sociológica de esquerda, mas não tendo desaparecido da realidade nem do grosso das mensagens subliminares  da comunicação social, e sendo a lei eleitoral o que é, o melhor caminho para quem tenha saudades do futuro é a reedição da PàF.

 

Não com Rio, que é um cadáver adiado; mas decerto com a Iniciativa Liberal, e talvez com a Aliança.

 

Anda por aí um movimento (o 5.7), que voluntariamente submergiu durante a campanha. Que reemerja, porque esse é o caminho.

publicado por José Meireles Graça às 23:41
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Sexta-feira, 24 de Maio de 2019

Declaração de voto

O PSD e o CDS, que constituem o que em Portugal se chama “a direita” não são hoje, nem poderiam ser, o que eram quando nasceram. O primeiro nasceu para impedir que o revanchismo anti Velha Senhora descambasse numa Cuba europeia; e o segundo para atrair franjas de antigos situacionistas, católicos de vária pinta, embriões de liberais e reaccionários sortidos que convinha arregimentar a benefício do jogo democrático. Mas a Velha Senhora já quase ninguém a viveu e conheceu; e o que hoje se descreve como extrema-direita, entre nós e no exterior, nem remotamente põe em causa o regime democrático, apenas defende soluções públicas que não agradam ao complexo jornalístico-situacionista actual, feito de um socialismo mole regado a impostagens absurdamente altas, engenharias sociais fracturantes, Estados obesos, clientelas imensas e dirigismos bem-pensantes.

 

Para quem não viveu, é difícil imaginar as circunstâncias deste parto e as juras, sentidas ou hipócritas, que foi preciso fazer, sobretudo o CDS, de respeito pela democracia socialista, pela revolução de Abril e os seus capitães e, finalmente, pela Constituição que consagrou a sociedade sem classes. A qual, aliás, o CDS, com a coragem e coerência que o PSD não teve, não aprovou. Hoje, semelhante destino colectivo apenas permanece no preâmbulo, que os sucessivos revisores constitucionais deixaram incólume.

 

Esta ternurenta preservação, em que pese aos realistas que entendem que, por não ter conteúdo jurídico substantivo, é inócua, é pelo contrário sintomática: indicia o pecado original de o nosso xadrez partidário ter sido inquinado pela defesa do socialismo.

 

Mas foi, e está. A sociedade portuguesa actual, no score eleitoral absurdo de comunistas e radicais de esquerda, na promiscuidade do Poder com o grande capitalismo, na esmagadora camisa de forças regulatória, fiscal e interventiva que atrapalha o pequeno, e na opressiva opinião publicada ou televisionada, ainda é tributária dos primeiros anos do regime e do papel que então coube ao PS de partido-charneira.

 

É certo que o mesmo PS que arrastou sempre os pés para rever a Constituição, aceitando a cada nova revisão o que rejeitou na anterior, evoluiu recentemente para o respeito das contas públicas equilibradas. Uma cambalhota que contradiz o passado, as promessas eleitorais, e as profissões de fé no efeito multiplicador da despesa pública. Com isso roubou o principal capital político do PSD tradicional, reduzindo-se agora a destrinça a questões adjectivas de diferenças de carácter e de propaganda (Costa mente com facilidade e naturalidade, e conta com uma comunicação social atenta, veneradora e obrigada), rigor de contas (boa parte do alegado sucesso de Centeno assenta no empurrar de problemas para o próximo governo, quando não vindouros mais longínquos), grau de nepotismo (a colonização do aparelho de Estado por familiares e amigos atingiu com o PS níveis sem precedentes) e pouco mais.

 

É certo que o PSD de Rio não é o mesmo de Passos Coelho. E não é decerto um acaso o ódio virulento e persistente que a esquerda em peso dedica a Passos, e se manifesta sempre que este emerge do silencioso exílio a que com dignidade se remeteu. Passos, aliás, abundou nos idos de 2011 em declarações de índole liberal, defendeu a certo ponto, para geral escândalo, a revisão da Constituição, e deu provas como governante de não se impressionar com bonzos do capitalismo caseiro. É certo que nada ou quase fez pela reforma do Estado, mas não sabemos se no apertado colete de forças da troica havia espaço, tempo e imaginação para reformar fosse o que fosse, donde se lhe deu o benefício da dúvida. Além do que a reforma do Estado tropeça sempre nas imensas clientelas a ofender, numa opinião publicada hostil, e numa opinião pública formatada na dependência do Estado.

 

Passos, porém, e o PSD de Passos e Morgado, não são candidatos nestas eleições nem, presumivelmente, nas próximas – Rio sim. E, admitindo que as sondagens têm um mínimo de credibilidade (que um máximo não têm, estou certo), compreende-se que o eleitorado, que é conservador, não vá correr atrás de um socialista novo quando tem um velho à mão, que já deu provas (mais retóricas do que reais, mas a retórica conta) de se preocupar com os pobres. Razões por que, se eu fosse laranjinha, orientava desta vez o meu voto para um valor menos duvidoso, já que melhor do mesmo não chega – é preciso outra coisa.

 

Na outra coisa há agora a Iniciativa Liberal, que a comunicação social tem com zelo ignorado, como não ignorava o Bloco nos seus primórdios. Sucede porém que a IL, se arrebanha parte do que melhor há à direita, tem a liberdade de não se preocupar com a exequibilidade do seu programa porque realisticamente sabe que não chega a poder executá-lo. Portanto, o seu natural objectivo é difundir as boas ideias lá no terreno onde elas podem medrar, isto é, com certeza o CDS e em parte o PSD. As eleições são instrumentais para este mais do que legítimo propósito.

 

Na Iniciativa Liberal não está ninguém que conheça e de quem verdadeiramente não goste, e conheço muitos, e moram muitas ideias que subscrevo. E no CDS não apenas há gente por quem não morro de amores, como há ideias, e algumas práticas, no passado e no presente, que de liberal têm nada, e de fradesco ou social-democrata muito.

 

Resta todavia que a boa direita sempre morou no CDS, ou num PSD que agora está em banho-maria. E o país, que já perdeu muito por não lhe ter dado mais força, não tem nada a ganhar em enfraquecê-lo. A Iniciativa Liberal atrai, mas é como a amante nova, jovem, álacre e um pouco destravada – trocá-la pela legítima não é exactamente a melhor coisa que um conservador pode fazer.

 

Razões por que, no domingo, voto CDS.

 

PS: Não falo da Europa para não dar a impressão que levo a sério a ficção das eleições europeias. Estas eleições são uma sondagem em ponto grande. A mim basta-me para escolher.

publicado por José Meireles Graça às 23:50
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Quarta-feira, 28 de Maio de 2014

Nem "obrigado" me disseram

 

 

Começa por estragar a noite anterior. No meu caso foi grave porque estava a meio de um trabalho importante (para o meu orçamento), e a perspectiva de acordar às 6 da manhã opera com umas horas de antecedência. Com o alvará de nomeação num envelope e o raciocínio numa papa morna, apresentei-me às 7, como devia, no antigo liceu D. Filipa de Lencastre.

 

Na sala que me competia já se encontravam os outros membros da mesa e o primeiro problema apareceu logo a seguir. Tratava-se de amarrar duas esferográficas às respectivas cabines de voto, e o bocadinho de cordel que nos fora fornecido era claramente insuficiente. A minha primeira missão foi dirigir-me “aos serviços” para pedinchar mais uns centímetros. A missão falhou: não havia mais cordel. Foram essas esferográficas amarradas com habilidade (confesso), e a imagem áspera da miséria do país, aos farrapos que sobraram das eleições anteriores e que algum espírito prudente tinha tido a cautela de conservar pendurados do buraco. A geringonça não ficou com um aspecto resistente, mas calculei que aguentasse, sem sobressaltos, mais este exercício democrático. Nesse ponto tive razão.

 

Contados e recontados os boletins, integrei uma equipa de 3 elementos para forrar a parede exterior da sala com bonitos papelinhos, decorados com os nomes dos candidatos das 16 listas concorrentes. É preciso informar o eleitor, para que este não vote ao engano. Uma a uma, cada folha foi presa à parede de azulejos com tirinhas bem medidas de fita-cola, cortada com os dentes até ao primeiro vómito e, desse momento em diante, com uma tesourinha de canivete que eu trazia no bolso. Abençoada inclinação para os expedientes de rua que, não me fazendo notável pelo requinte das maneiras, já várias vezes me livraram de aflições.

 

Afixámos as listas, um boletim em tamanho industrial, e uma quantidade insuspeita de editais obrigatórios – todos eles essenciais ao bom sucesso do acto eleitoral. Os últimos já foram colados à pressa, em parte por culpa do tempo gasto a receber e encaixar duas informações: a primeira era que o bar da escola estava fechado, e assim iria permanecer todo o dia; a segunda era que os nossos honorários (ou lá como se diz isto em linguagem burocrática) tinham sido cortados para cerca de 2 terços do valor habitual. Cada um de nós iria receber apenas 50 euros. Graças a Deus as casas de banho mantiveram-se abertas; há certas realidades que actuam como diuréticos (não desfazendo).

 

Nisto eram 8 horas, ouviu-se uma sineta, e a mesa foi declarada aberta. Cada membro sentado, muito direitinho, na sua cadeira de pau, à excepção do presidente - cuja função é exercida de pé, no centro do friso, espreitando por cima da urna. Foi muito estimulante porquanto várias moscas entraram na sala e entretiveram-se a esvoaçar as suas vidas na nossa interessada presença. Nos raros intervalos de tédio que este espectáculo consentia, os escrutinadores aproveitaram para contar, um por um, os nomes inscritos nos cadernos eleitorais. É outra cerimónia prevista no protocolo, não fosse suceder que o total divergisse do número registado na papelada oficial e, ao final do dia, arranjássemos um sarilho.

 

Pelas 11 da manhã já tínhamos atendido para cima de alguns 20 eleitores. O secretário da mesa descobriu, no andar de cima, uma máquina automática que fornecia café a troco de umas moedas. Revezámo-nos naquele percurso melancólico, por largos corredores revestidos do mais sumptuoso mármore cor-de-rosa (acabamento polido), onde o som dos nossos passos ecoava sem acanhamento. Quando regressei, uma alma compassiva tinha deixado na sala uma garrafa de água (para cada membro) e uma caixa de biscoitos (para todos). Sem a ter visto, agradeci-lhe do fundo do coração.

 

Uma eleitora elegante chegou, votou, e saiu da cabine com um ar satisfeito agitando na mão o boletim aberto. Cada um olhou para onde pôde e o presidente, com a cabeça de lado e os dedos à frente dos olhos, informou a eleitora que ela tinha de dobrar o papelinho em quatro. Uma velhinha entrou apoiada em canadianas. Outro eleitor chegou enfiado numa roupa preta, numas botas de combate, num blusão militar, e num corpo franzino. De crânio rapado e barbas compridas, cumprimentou e despediu-se com voz aflautada. Corrigidos uns desvios, a velhinha acertou na cabine. Veio um casal com 3 crianças. Votou primeiro um, depois o outro, as crianças fizeram momices. Um gordo, muito gordo, de t-shirt e cabelo farfalhudo, mostrou uma fotografia magra, de gravata e cabelo farfalhudo. A velhinha já vinha a meio caminho de regresso. Outra eleitora apareceu adornada com jóias pesadas e botas modernas. Rodou tão ligeira em direcção à cabine que não parou a tempo: deu mais um quarto de volta, e saiu apontada a uma estante. Num pulinho, alterou a rota, votou, e avançou disparada com o boletim aberto. Os membros da mesa voltaram a olhar para onde conseguiram. O presidente voltou a cabeça de lado e escondeu a cara com os dedos, até a eleitora dominar a trajectória, segurar o movimento, e dobrar o boletim. A velhinha chegou junto da urna, pendurada nas canadianas. Entregou o voto muito dobradinho.

 

Fizeram-se apostas quanto ao número de votantes, o número de biscoitos, e o número de moscas. O dia avançava nesta azáfama. De vez em quando, os membros da mesa trocavam de lugar. Ou seja: deixavam uma cadeira de pau e sentavam-se noutra cadeira de pau. Houve quem, com os lombares a guinchar e o pescoço encortiçado, se levantasse para rodar os braços e acabasse estendido no soalho, por breves momentos, a rezar de alívio. Ia jurar que não fiz tal coisa, mas foi exactamente assim que vi entrar o delegado do PCP, do meu ponto de vista, virado de pernas para o ar. Trazia umas calças de bombazina, e um casaco de bombazina, cabelo branco e barbas brancas, expressão exausta e um saco de plástico. Deixou-se ficar, perdido ou discreto, encostado a uma parede. Virei uma cadeira, das que estavam empilhadas, e tive dificuldade em convencer o senhor a sentar-se. Puxou de uma sanduíche, ofereceu amavelmente, e comeu. Entreteve-se o resto da tarde com uma biografia de Lenine, numa encadernação velhíssima, de folhas muito amareladas. A dada altura, agarrou no telemóvel e telefonou ao pai. Desconfiei que não tivesse ouvido bem, mas confirmei com o meu colega e com um segundo telefonema, já depois de fechada a urna, quando informou o pai (nessa altura, ouviu-se claramente) que se encontrariam “lá”. E especificou: “no Vitória”.

 

A contagem dos votos não se resume, longe disso, à contagem dos votos. Desde que a sineta toca, às 7 da tarde, para avisar que acabou, é preciso encadear toda uma nova série de tarefas cuidadosas. Desde logo, são dados mais uns minutos para que as pessoas que já tenham entrado no edifício tenham tempo de chegar à respectiva secção – e votar. Só depois disso podemos (e devemos) fechar as portas. A uns dói a cabeça, a outros as costas, os joelhos, o estômago (de fome) ou outras porções do organismo. Pessoalmente, não me posso queixar: doía-me tudo. O que vale é que entre apostas, gentilezas, comentários, e ajudas, a verdade é que temos uma incumbência para levar até ao fim e durante aquele período de dever e de serviço, de humor e responsabilidade, de gosto e de suplício, nasce uma espécie de ligação cúmplice que torna a coisa suportável, quando não prazenteira. Depende bastante das pessoas que o acaso se encarrega de juntar.

 

Foi preciso contar os boletins que sobraram, e os nomes “abatidos” nos cadernos eleitorais. Abrir a urna, contar os votos, distribuir em montinhos, e contar outra vez. Confirmar, pelo menos duas vezes, se não há boletins no grupo errado. Se houver, temos de rever tudo outra vez. Chegada esta hora, o nosso desembaraço intelectual é comparável ao de uma amêijoa. Voltamos ao princípio, trocamos as tarefas, acertamos tudo até não haver dúvidas. Apontamos os resultados num quadro. A seguir, há muito impresso para preencher, actas, duplicados, novos editais para afixar, pacotes para embalar em papel pardo, cordel, rubricas e lacre. No fim, são 10 da noite. Passaram 15 horas.

 

Em modo mecânico, meto-me no carro e chego a casa para comer e assistir dormente, na televisão, aos resultados, aos palpites, e aos discursos dos chefes. Sem excepção, agradecem aos candidatos, aos partidos, aos directores de campanha e às juventudes partidárias, aos eleitores, a quem votou e a quem se absteve, aos portugueses e a Portugal. Nem um único se lembrou dos membros das mesas de voto. Nem “obrigado” me disseram.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 02:22
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Segunda-feira, 26 de Maio de 2014

Balbúrdia no Oeste

Tirando dos factos as lições que eles encerram, pode-se imaginar um caminho; caso contrário, não. Quais são então os factos, as lições e o caminho?

 

A abstenção é o maior partido, com 2/3 dos votos (um tanto menos, se nos lembrarmos dos emigrantes e da tradicional desactualização dos cadernos);

 

O PCP foi o partido tradicional que mais cresceu;

 

O Bloco mirrou;

 

O PS só poderá vir a formar um governo minoritário com apoio parlamentar do CDS e do PSD (ou do PSD, possivelmente com abstenção do outro); ou um governo maioritário com o PSD, para abandonar de vez qualquer esperança de reforma do Estado e de saneamento das contas públicas, quer seja liderado pelo patético Seguro quer pelo visionário Costa, uma espécie de Zorrinho do Plano Tecnológico e tretas modernaças sortidas, mas com mais subtileza, habilidade e estatura.

 

Marinho e Pinto é um balão. Pode encher mais e subir mais, mas começa a esvaziar logo que se perceba que tem combustível apenas para subir, como sucedeu ao PRD e ao partido dos reformados (do saudoso Prof. Sérgio) antes dele, bem como ao próprio BE, este último também por ser um sucedâneo urbano e parvinho do PCP.

 

A miríade de partidos restantes que abrilhanta as eleições vale o mesmo que os foguetes das festas populares, com a diferença de não poder originar incêndios.

 

Estes os factos. Agora as lições:

 

Os abstencionistas, em proporções impossíveis de calcular, disseram três coisas: i) A Europa é uma mama, o Parlamento Europeu uma abstracção, e os candidatos uns treteiros à procura de tachos dourados; ii) Ninguém prometeu convincentemente que a mama murcha ia inflar, logo alimentar com votos partidos fervorosamente europeístas foi chão que deu uvas; iii) O governo do dia deu austeridade, emigração e reformas de paleio e tinha que ser castigado por isso. Mas como só os comunistas ofereceram uma alternativa às políticas seguidas, mas despertam anticorpos num universo eleitoral cuja esmagadora maioria não é constituída por mujiques, operários raivosos e intelectuais subsídio-marxistas - não havia partidos nos quais votar.

 

Temos então que os comunistas não contam, porque a diferença deles não pode ser engolida; o PS não conta, porque, mesmo que ganhe, não pode fazer maioria com o PCP (está mais distante dele do que qualquer dos outros partidos) e a que poderia fazer com o PSD apenas prolonga o marasmo; a coligação dita de direita não conta porque o eleitorado desconfia que, com ela, terá pelo menos mais uma década penosa, e portanto não lhe dará a maioria absoluta.

 

Estão as condições reunidas para um novo partido, ou um velho renovado. Não para fazer um arranjo diferente das mesmas velhas coisas, mas para pegar no problema de um outro ângulo, que inclua abandonar o Euro e, se for necessário, a UE. E isso não em nome de uma autarcia cubana, como quer o PCP, ou de um PS dirigista, intervencionista e despesista, como quer, mesmo que diga não querer, o Prof. Ferreira do Amaral (a quem tiro, com respeito, o meu chapéu), mas em nome da reforma do Estado por fazer, do crescimento económico sem paternalismo nem dirigismos e da independência na medida do que as circunstâncias permitirem - mas não mais do que isso.

 

Vai suceder? Claro que não. O mais provável é, com a aterrorizada conivência da Europa, o governo pôr em banho-maria até mesmo o módico de reformas que tem querido fazer, alargar um furo ao cinto da austeridade, e trombetear optimismo. E não é impossível que o BCE e a nova Comissão Europeia sejam compreensivos, na exacta medida em que a Alemanha e satélites deixem.

 

Deixarão? Suponho que sim, moderadamente. Chegará? Suponho que não, e assim o que o futuro nos reserva é balbúrdia.

 

De qualquer forma, ele, o futuro, sucederá apenas de uma maneira, e há inúmeras de o prever. Donde, a probabilidade de errar é grande. Conto com isso.

publicado por José Meireles Graça às 23:49
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Terça-feira, 6 de Maio de 2014

Praia à tarde

Desde há 40 anos que o país se dividiu em duas grandes famílias políticas: a dos que acham que se deve expropriar os ricos e, com o produto do esbulho nas mãos do Estado, pôr este a administrar a riqueza, o investimento, a colectividade e a felicidade geral que fatalmente resultariam de um tal programa; e a dos que entendem que o Estado sim senhor, mas sem liquidar completamente a iniciativa privada, por se verificar que, lamentavelmente, onde ela não existe, as pessoas são iguais na pobreza.

 

Do lado dos comunistas, os que o são e os que julgam que não lhes fazem o jogo, o programa manteve-se e mantém-se inalterado, apenas variando semanticamente a propaganda que serve o propósito: dantes tratava-se de construir a sociedade socialista, a ditadura do proletariado e o resto da tralha revolucionária, e agora trata-se de aperfeiçoar o capitalismo, a tal ponto que este, quando estiver quase à beira da perfeição, deixe de o ser, como na história do burro do escocês - é este o programa da CGTP para o mundo do trabalho, e o do PCP para o mundo em geral.

 

Não fosse o PS, desde que Soares foi à Estação de Santa Apolónia esperar a raposa branca (que logo ali deu, em cima de um carro de combate, um inestimável contributo para a iconografia da Revolução dos Cravos), viver permanentemente apavorado que o PCP o ache fascista, e talvez não se tivesse levado tanto tempo a fechar o manicómio em autogestão, a rever uma Constituição que nunca cessou de ser, como ainda hoje é, obsoleta, e a corrigir algumas das burrices legislativas que tolheram o desenvolvimento normal do país; e tivesse a Constituição sido aprovada com o voto contra do PPD, talvez não se tivessem enraizado tão profundamente na comunicação social, e na opinião pública, ideias de esquerda que só a dura realidade tem vindo, lentamente, a sapar.

 

Foi assim. E neste pano de fundo se encaixou a grande conquista do Centrão, que foi a adesão à CEE, primeiro, e a evolução para a UE, depois.

 

É hoje um segredo de Polichinelo que parte dos nossos problemas nasceu com a UE e o Euro - não porque sem a nossa adesão à moeda única houvesse qualquer garantia de a gestão da coisa pública ser mais prudente ou sensata, mas porque por trás da cortina do Euro o país pôde obter crédito, e portanto contrair dívida, a um nível que sem ele não teria sido atingido - bateríamos na parede mais cedo, em suma.

 

Mas a anulação do erro da adesão não só, na opinião quase universal de quem faz a opinião, criaria mais problemas do que os que resolveria, como não há o mais leve indício de qualquer quebra significativa no apoio da opinião pública à ideia da construção europeia. Sem os entusiasmos do tempo do ami Mitterrand, decerto, e da Europa connosco, antes talvez à boleia resignada da ideia de que, governados por outros, pode ser que nos safemos.

 

Infelizmente, há a perspectiva, que as sondagens timidamente apontam, de virmos a ser governados pelo Sr. Seguro. A personagem, em si, não justifica que sobre ela se diga muita coisa, por manifesta falta de superfície - todos os dias alguém contrasta o que ele diz hoje com o que disse ontem, para salientar o desnorte, mas isso é o menos: Passos não fez exactamente o que disse que ia fazer, tanto no que toca à reforma do Estado como ao aumento de impostos, e o eleitorado já interiorizou a ideia de que tem que fazer, em relação às promessas dos políticos com probabilidade de chegarem ao Poder, um grande desconto.

 

O mais é que, não fazendo ninguém, nem o próprio, ideia do que um governo Seguro fará, a pressão para que regressemos ao tempo dos desígnios e das visões será demasiado grande: todo o prócer do PS com alguma da categoria que o titubeante Seguro não tem - o edil Costa e o tribuno Assis, por exemplo - tem, se perguntado, ideias firmes sobre apostas: na educação, na ciência, nas novas tecnologias, no mar, na recuperação do património edificado e em tudo o mais que os conforte na ideia de que são estadistas e que têm solução para o nosso problema. E como para colher os frutos deste empreendedorismo estatal há interessados e beneficiários, que berram como cachorros desmamados, mas não os há para defender uma ideia de interesse público que não tenha directamente nada que ver com o seu interesse pessoal, sobra que, se Passos ganhar, resta uma dúvida:

 

Terá força e vontade para fazer, ainda que tarde e mal, a reforma do Estado que não pôde ou não soube fazer cedo? E, se Seguro ganhar, resta outra:

 

A Europa e o mercado emprestam?

 

Porque, se a reforma, com Passos, não for feita, condenamo-nos a crescimentos medíocres até que a Europa caia sob o peso das suas contradições (como dantes se dizia do capitalismo); e, se Seguro durar o bastante para que o deixem pôr em prática (e no Diário da República) os disparates que povoam a cabeça da sua entourage, condenamo-nos a um novo resgate.

 

A próxima mega-sondagem, a 25 de Maio, será sobre esta escolha, ainda que não devamos atribuir a uma sondagem a mesma importância de umas eleições verdadeiras. Porque quem vai ao certo para o Parlamento Europeu não tem, fora o significado político nacional, qualquer importância.

 

Não irei à praia. Mas aconselharia, se o meu conselho tivesse qualquer peso, que os meus concidadãos só fossem de tarde - votando de manhã.

publicado por José Meireles Graça às 21:32
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Terça-feira, 11 de Março de 2014

Está dura, a vitela

Em 25 de Maio próximo realizar-se-á uma mega-sondagem, sob pretexto das eleições para o Parlamento Europeu, para saber como votaria o eleitorado se as eleições legislativas tivessem lugar naquela data.

 

Nas sondagens vulgares consultam-se aí uns três ou quatro mil marmelos, pelo telefone, e o resultado da coisa tem uma margem de erro de três vírgula qualquer coisa. Já se forem quatro milhões de votantes a margem de erro é tradicionalmente muito maior, a julgar pelas análises dos resultados, pelo que aquelas eleições nem como sondagem valem grande coisa. De toda a maneira, ninguém sabe para que serve exactamente o Parlamento Europeu, e, no que toca a assuntos europeus, todos, eleitores e candidatos, estão de acordo em que do que se faz mister é de solidariedade, isto é, transferir impostos de europeus ricos para europeus pobres.

 

Os europeus ricos, porém, já tomaram as suas precauções. E assim a sondagem de 25 de Maio destinar-se-á a saber: i) Quantos eleitores acham que o PCP faria reviver as alegrias do PREC, e quantos não querem aquelas alegrias mas se deleitam em dar um grande susto a este governo de gatunos; ii) Quantos ainda acham que Sócrates tinha muito que o recomendasse, e quantos entendem que os socialistas têm mais experiência, e competência, para aldrabar as contas, de modo a endrominar os totós das Europas; e iii) Quantos acham que este Governo nunca reformou, nem reformará pelo seu pé, o Estado, mas esperam que a reforma venha sob a forma de diktat, como vieram os cortes, e quantos entendem que, nas circunstâncias, não era possível fazer muito melhor.

 

Estarei, contrariado, no terceiro grupo, para evitar males maiores. E não desdenho de participar às vezes, para fazer número, do circuito da carne assada. Estranha forma de coerência a minha: a lista é encabeçada por um federalista, uma condição que tenho que me esforçar para não detestar, para candidatura a um órgão que acho não devia existir, ao serviço de uma engenharia de países que já só resulta ainda porque uma burocracia especializada a aprofunda todos os dias e ninguém sabe como lhe pôr fim.

 

As tranches de vitela serão duras, como de costume - em jantares partidários a qualidade do menu não é o que atrai militantes. Tanto melhor, sempre terei as mãos ocupadas com os talheres se alguém, nos discursos, se lembrar de lembrar a excelsa utilidade da assembleia para a qual nos propomos remeter alguns ilustres. 

publicado por José Meireles Graça às 12:57
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