Tirando os comunistas e os bloquistas (e mesmo assim sem conseguirem esconder que a senhora Le Pen lhes dá calafrios) quase toda a gente em Portugal se felicitou pelo resultado das presidenciais francesas.
Costa, que já tinha ganho as eleições gregas quando ainda não havia perdido as portuguesas, ganhou também estas. O homem está condenado a ganhar tudo e o seu oposto, pela razão de que, ao contrário dos políticos vulgares, que são oportunistas na medida das suas necessidades tácticas, preservando todavia um núcleo de valores distintivos, Costa não tem outro valor que não seja a sua sobrevivência. Donde, a sua táctica é o oportunismo, com um grande sucesso, reconhecível pela descrição, pacífica na comunicação social e no comentariado, de homem de grande habilidade política. Deixemos porém estes assuntos putrefactos para responder a uma questão que me afligiu por espaço de quase meia hora - a mim e outros espíritos sãos e inquisitivos: se fôssemos franceses votávamos como?
Marine Le Pen, no seu programa, diz, a abrir, isto: Retrouver notre liberté et la maîtrise de notre destin en restituant au peuple français sa souveraineté (monétaire, législative, territoriale, économique). Pour cela, une négociation sera engagée avec nos partenaires européens suivie d’un référendum sur notre appartenance à l’Union européenne. L’objectif est de parvenir à un projet européen respectueux de l’indépendance de la France, des souverainetés nationales et qui serve les intérêts des peuples.
Nos pontos sob a epígrafe ÉRADIQUER LE TERRORISME ET BRISER LES RÉSEAUX FONDAMENTALISTES ISLAMISTES (29 e seguintes) enumera algumas medidas de combate ao islamismo, que subscrevo quase integralmente. Sucede que:
A boa da Marine quer dinamitar o projecto europeu, e eu também. Infelizmente, porém, conjugando esta entrada de rompante com as outras 143, percebe-se que não quer liberdade de circulação de pessoas, nem capitais, nem mercadorias, nem trabalho. E eu quero estas coisas todas, desde que aplicáveis apenas aos cidadãos da UE, e com as derrogações que cada Estado entenda dever fazer; assim como, sendo aceitáveis mecanismos supranacionais para dirimir conflitos no âmbito dos tratados ou jurisdicionais no âmbito dos Direitos Humanos, já não o serão órgãos legislativos supranacionais ̶ de mais a mais integrados por funcionários apátridas que ninguém conhece, ninguém elegeu e que não respondem portanto senão perante outros burocratas igualmente cobertos de privilégios e igualmente especializados na moscambilha carreirista.
O que ela quer é que a França assuma o estatuto de superpotência que julga lhe pertence por direito histórico, por ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e a bomba atómica. E por isso defende a saída da OTAN, a construção de um novo porta-aviões (que decerto impressionaria imenso os naturais do Senegal e os da Reunião) e o reforço da dotação orçamental das forças armadas e dos seus efectivos.
Defende também um elevado grau de autarcia económica e um impressionante rearranjo dos serviços e funções do Estado, em nome de generosos benefícios para o trabalhador francês, e em particular o funcionário ou o aposentado, sem todavia dedicar quase nenhuma linha à diminuição da despesa ou da dívida pública (que anda nuns estonteantes 100% do PIB).
Isto, mais um ou outro ponto rebarbativo, como a restauração da prisão perpétua, que seria um retrocesso civilizacional, ou o reforço dos poderes das polícias, desnecessário fora do âmbito do combate ao terrorismo e que é apenas um tique caro a uma certa direita bastante selvagem, chega para, em balanço, dizer: Marine Le Pen - não.
E Macron? O homem foi ministro de um governo de Valls, sob o patético Hollande, e distinguiu-se por querer reformar. A sua carreira como inspector de finanças e bancário internacional, em princípio, não o recomendava para reformador, menos ainda se acumuladas com a sua condição de vice-presidente do PS local: um pot-pourri de contra-indicações que faria supor que nos dois aninhos que esteve no governo teria tempo para operar uma razoável série de asneiras. Mas não: diz-se que foi amigo das empresas e que apenas deu à sola em Agosto do ano passado para preparar a sua candidatura à presidência.
Vejamos o seu programa. Começa com uma frase inspiradora (RETROUVER NOTRE ESPRIT DE CONQUÊTE POUR BÂTIR UNE FRANCE NOUVELLE) que não significa absolutamente nada e dirige-se aos franceses e às francesas, naquela formulação perifrástica irritante em uso por políticos patetas a fingir que são modernos. Continua com uma impressionante série de banalidades, ao abrigo dos vários "estaleiros" (lamento mas a palavra é dele) sob os quais se propõe infundir na sociedade francesa a confiança que lhe falta.
Diz que "há mais de 30 anos que não conseguimos resolver o problema do desemprego de massa nem o da integração. Transformações radicais novas abalam as nossas vidas e as nossas certezas. A revolução numérica muda as nossas maneiras de produzir, consumir e viver em conjunto. As mudanças climáticas obrigam-nos a repensar a nossa organização e os nossos modos de vida. A nova ordem mundial etc. etc."
Tretas, isto parece um discurso de Marcelo. E basta lembrar que a única forma que ocorre pela qual as mudanças climáticas terão tido influência na vida dos franceses haverá de ter sido algum aumento da temperatura média que tenha prejudicado a maturação dos queijos.
Primeiro estaleiro, o da educação e cultura: "Quero repor a transmissão de saberes fundamentais, da nossa cultura e dos nossos valores no coração do projecto da nossa escola e das nossas universidades". Não está mal.
E como não está mal fui procurar as medidas onde estes nobres objectivos estariam vertidos e, ó surpresa, o arranjo das medidas não é o mesmo da introdução. De tal modo que o que encontrei sobre este assunto, perdida numa floresta de intenções, foi uma página sob o título "Les mêmes chances pour tous nos enfants", onde se lista uma quantidade de medidas impressionante, umas razoáveis, outras nem por isso, e outras simplesmente tolas, como esta: "Nous créerons un 'Pass Culture'. Il permettra à chaque Français de 18 ans d’effectuer 500 euros de dépenses culturelles (cinéma, théâtre, livres...)". Onde é que o bancário Macron vai buscar dinheiro para isto o programa não diz, como não diz de onde vem o pognon para construir 80.000 alojamentos para jovens.
Tentar comentar o programa ocuparia uma dúzia de posts porque as iniciativas são às centenas, quase sempre implicando encargos novos que não estão quantificados, e intervencionismos sortidos. Mas não é possível deixar de notar que em quase todas as páginas há promessas de despesa nova, incluindo uma intitulada "Bem viver do seu trabalho e inventar (sublinhado meu) novas protecções".
Os programas eleitorais não são para cumprir, já se sabe. Mas a demasia inculca a ideia que este tipo é um aldrabão, e os franceses que o elegeram uns pombos. E como este enarca bancário e socialista, com fama de liberal, é o chouchou dos europeístas, importa ver o que, sobre a União Europeia, diz ele.
QUER um orçamento para a zona euro votado por um parlamento e executado por UM ministro da economia.
QUER que se lute contra os arranjos fiscais entre Estados e empresas multinacionais, como entre a Apple e a Irlanda.
QUER reservar o acesso aos mercados públicos europeus às empresas que tenham pelo menos metade da sua produção na Europa.
QUER propor à Alemanha uma Europa da defesa associando países voluntários, criando um fundo europeu de defesa que financiará equipamentos militares comuns e um Quartel-General permanente.
QUER uma Europa que proteja as indústrias estratégicas (francesas, entenda-se).
QUER um mecanismo de controle dos investimentos estrangeiros na Europa a fim de preservar os "nossos" (deles) sectores estratégicos.
QUER que, na discussão do Brexit, seja defendida a "integridade" do mercado único europeu, que haja um mercado único do "numérico" e um fundo de capital de risco que permitirá financiar o desenvolvimento de start-ups europeias, e que seja fixado um preço "plancher" do carbono nos países da União.
E também quer dar a palavra ao povo, propondo convenções cidadãs em toda a Europa para voltar a dar um sentido ao projecto europeu.
Costa quer por certo a quase totalidade destas coisas. E, no que não queira, venderá o seu apoio por alguns milhões, na boa tradição portuguesa desde 1986.
Isto é Macron. E é claro que, se fosse francês, não votaria em semelhante demagogo, até porque o homem presume de imaginar para a França um papel de liderança na UE, que nunca poderá ter, e que os mais de 25% que se abstiveram, mais os 33% (33% de 75%, entenda-se) que votaram Le Pen, lhe compram os delírios.
Então, se fosse francês votaria em quem, na segunda volta? Não votava, claro. Porque Marine iria fazer implodir a Europa, tal como a conhecemos, substituindo-a pelo caos. E Macron, como este ingénuo aqui, acredita que a geringonça europeia tem conserto pelo expediente de lhe aprofundar os erros.
Sai uma irrelevância colorida dita de direita para entrar uma irrelevância cinzenta dita de esquerda. Um não fez o que prometeu; o outro não fará o que promete. A "Europa" ganhou - ganha sempre, porque a democracia falou, foi tudo muito civilizado e a mudança foi tão positiva como o teria sido a manutenção. Os mercados ficarão amanhã optimistas, e daqui a uns dias pessimistas, ou pessimistas desde já.
Com Sarcozy, Merkel seria mais "rigorosa"; com Hollande será mais "sensível".
A rotativa do BCE, como o próprio nome indica, roda; os Franceses têm os olhos do Mundo postos neles, entre hoje e amanhã, o que é natural para quem dele se julga o centro; as instâncias europeias hoje remoem, depois deglutem, e em seguida hão-de digerir.
Em resumo, mais uma vitória - até à derrota final da Europa do Euro, da dívida e da falta de crescimento.
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