Quando na última remodelação do governo António Costa, e por causa da promoção a ministra da secretária de Estado e filha do ministro José Vieira da Silva, Mariana Vieira da Silva, se tornou evidente que a endogamia que é a marca do primeiro-ministro desde sempre só tem tendência para se agravar com a ascensão a posições com mais poder e a aproximação do fim da legislatura, o presidente Marcelo correu a branqueá-la, afirmando que a nomeação de pessoas das mesmas famílias no seio do governo se devia a razões de mérito.
Não foi a primeira vez, nem será a última, que se terá precipitado ao colocar a mão por baixo do primeiro-ministro amparando-o em trapalhadas, asneiras ou sacanices puras e duras sem antecipar que esse apoio lhe poderia vir a trazer a ele custos políticos. Mas a falta de vergonha e descaramento dos socialistas do costismo, talvez encorajados pelo branqueamento normalmente assegurado pelo mais alto magistrado da nação, transformaram em poucos dias o que pode ter parecido uma excentricidade, um sintoma de uma constipação passageira, num bacanal de nomeações de irmãos, filhos, mulheres e amigos uns dos outros, uma pandemia com todas as condições para se tornar mortífera.
Não para ele.
Quando se apercebeu que o branqueamento da endogamia no governo socialista António Costa lhe podia custar caro a ele, o presidente Macelo fez exactamente aquilo que se pode, com um já bom grau de confiança, esperar dele como nulidade política mais do que comprovada: salvar o coiro. Acobardou-se e escondeu-se por trás da sombra do presidente Cavaco, explicando que "...se limitou a aceitar a designação feita pelo Presidente Cavaco Silva, que foi a de nomear quatro membros do Governo com relações familiares, todos com assento no Conselho de Ministros ... partindo do princípio de que o Presidente Cavaco Silva, ao nomear aqueles governantes, tinha ponderado a qualidade das carreiras e o mérito para o exercício das funções".
Escolheu mal o alvo. Ao contrário dele, o presidente Cavaco Silva não cresceu a fazer travessuras à avó nem partidas ao dono do jornal que lhe deu emprego desde jovem, cresceu, como explica nas suas memórias, e debaixo da responsabilidade de ser o primeiro da família em cuja educação os pais investiram as poupanças em vez de as investirem na compra de propriedades agrícolas como era hábito no mundo onde cresceu, a passar as férias grandes a trabalhar no campo no único ano em que chumbou. Ao contrário dele, que foi moldado em porcelana, foi esculpido na pedra. E não se costuma ficar, e não se ficou.
E respondeu, respeitando a fórmula tradicional "entendo que não devo fazer qualquer comentário porque já foi dito tudo ou quase tudo e eu não acrescentaria nada de novo", para disparar comentários letais a tudo o que já tinha sido dito como "...Nos últimos dias aprendi bastante sobre as relações familiares entre membros do Governo e confesso que era bastante ignorante em relação a quase tudo aquilo que foi revelado..." e "... não me recordo de ter conhecimento completo - já foi há muitos anos - entre relações familiares dentro do Governo, mas, por aquilo que li, não há comparação possível em relação ao Governo a que dei posse em 2015. E, segundo li também na comunicação social, parece que não há comparação em nenhum outro país democrático desenvolvido", e ainda que o presidente da república, nomeando embora os membros do governo, não pode interferir nas escolhas do primeiro-ministro para não correr o risco de vir a ser responsabilizado por qualquer coisa que corra mal na governação a pretexto de não ter deixado o primeiro-ministro escolher livremente os seus ministros. E aproveitou para esclarecer que, "por curiosidade fui verificar a composição dos meus três governos durante os dez anos em que fui primeiro-ministro e não detectei lá nenhuma ligação familiar". Poderia ter acrescentado que entre todas as pessoas que fizeram parte desses três governos, entre ministros e ajudantes de ministro, houve uma única que tratava por "tu", a colega de trabalho no Banco de Portugal e comadre Manuela Ferreira Leite. Não teve governos de família e amigos.
Traduzindo, esclareceu que quando indigitou o primeiro-ministro tinha esgotado todas as possibilidades legais de o evitar sem abrir uma crise política insustentável, que não fugiu a deixar claro na altura que não estava de acordo com a fórmula governativa montada pelo primeiro-ministro com o objectivo único de se salvar de uma morte política certa por ter perdido as eleições depois de prometer ao partido que as ganharia por muitos, que a escolha dos membros do governo é da responsabilidade do primeiro-ministro, e que ao dar-lhes posse não tinha feito, nem podia fazer, qualquer juízo de valor sobre a sua competência. E que no momento da tomada de posse não tinha qualquer informação factual que lhe permitisse antecipar o bacanal em que se transformou nos últimos meses, e descaradamente a partir da última remodelação, o jogo de nomeações de familiares e amigos e familiares de amigos como chefes de gabinete ou assessores para os gabinetes governamentais.
E escavacou o biombo atrás do qual se tinha escondido o presidente Marcelo, no argumento da nomeação porque não tinha legitimidade para intervir nas escolhas do primeiro-ministro, e no do mérito porque não lhes tinha avaliado mérito para lhes dar posse.
Pode ter dado ao presidente Marcelo uma lição útil, a de, nas troca-tintas e chico-espertices que vive a fazer e de que vive politicamente, se meter com quem tenha a estatura dele e evitar os de estatura maior. Que brinque com figurinhas de porcelana mas evite as estátuas de pedra, que se caem em cima das figurinhas as deixam em cacos.
É duvidoso que o presidente Marcelo tenha apreendido a lição.
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