Sabemos que um arrumador de carros é modernamente, na realidade, um técnico de parqueamento automóvel; um agente técnico de engenharia foi há muito promovido a engenheiro técnico, e logo depois a engenheiro tout court, enquanto as especialidades se multiplicaram a tal ponto que o cidadão prevenido não ficaria excessivamente surpreendido se uma qualquer universidade lançasse os cursos de Engenharia Em Candeeiros Articulados, de Direito de Família no ramo Casamentos com Potencial para Acabar Mal, ou de História dos Carros de Combate dos Hititas; o grau de licenciatura, para cuja obtenção eram necessários normalmente cinco anos, contenta-se agora com três; e a antiga licenciatura transmutou-se em mestrado.
O doutoramento, por sua vez, corre graves riscos de vir a ser outorgado em concurso, em alternativa ao automóvel de marca Audi com que as autoridades aliciam os cidadãos para servirem de fiscais da Fazenda.
Fica toda a gente contente: as universidades vendem o diplomazinho; os moços, armados do papel, vão para o call-center, a caixa do supermercado, a emigração e a manifestação, frustrados e cheios de auto-compaixão, mas com grande amor-próprio; os pais, que esportularam as propinas, estadias, borracheiras nas praxes e queimas das fitas, rebentam de orgulho; os liberais confiam que o mercado, no meio de tanto licenciado, fará escolhas inteligentes; a esquerda em geral louva a democratização do “conhecimento”, que mede pela quantidade de graus que as escolas, e os professores, são induzidos a atribuir; e o Estado lava as mãos.
Para um país cuja doutorice foi tão justamente verberada, pode dizer-se que se deram passos de gigante: um destes dias, com a vulgarização do trato, importada da América, o título de deferência passará a ser "Senhor" ou "minha Senhora".
Seja. Mas em relação a profissões liberais clássicas, gente prudente e reaccionária, como eu, conta com as Ordens. Eu sei: são emanações corporativas e os obstáculos que colocam à entrada no exercício da profissão, em nome da qualidade da formação, destinam-se a proteger os que estão. E de deontologia não falemos, que quem circula nos associativismos de todo o tipo distingue-se com frequência pela especialidade nas artes da moscambilha e do tráfico de influências. Mas se o Estado não garante nada; se o mercado funciona mal, porque nem sempre é possível conhecer o historial do licenciado que temos diante de nós: vamo-nos agarrar a quem, para ver o selo de garantia?
E quanto a profissões que foram promovidas a liberais à boleia de licenciaturas, que originaram Ordens, como a de enfermeiro?
Eu julgava que um enfermeiro enfermeirava e, em casos mais complicados, seguia as ordens do médico. Se tem Ordem, segue ordens como? A Ordem não tardará, se o não fez ainda, em pôr-se em bicos de pés e reivindicar autonomia para o enfermeiro: ai o médico quer que lhe ponha sinapismos? Ele não sabe nada, vou-lhe mas é lancetar esta merda.
E não é que vamos ter enfermeiros de família?
Estou por tudo. E como a Justiça evidentemente não funciona, é urgente a criação da Ordem dos Oficiais de Diligências - se é que ainda não existe.
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