O José Meireles Graça vem à Gulbenkian.
Vem assistir ao quinto concerto de piano do Sergei Prokofiev tocado pela Orquestra Gulbenkian conduzida pelo maestro Lionel Bringuier a acompanhar a pianista Yuja Wang, que nunca vi tocar, mas tenho por preceito que só se arrisca a tocar uma peça tão complicada como um concerto do Prokofiev a acompanhar uma grande orquestra como a da Gulbenkian um grande pianista. Os mais dados à validação empírica das hipóteses podem ir avaliando os dotes da pianista a executar, não o quinto, mas o terceiro concerto do Prokofiev, e mais abaixo explico porque decidi mostrá-la neste, neste iutiube.
O José avisa as pessoas menos habituadas à música erudita que Prokofiev é compositor de música que, entre o estranho e o inesperado, às vezes diabólico, e é ver este concerto para o comprovar, pode mesmo assustar as audiências mais predispostas à música clássica clássica do que à música clássica contemporânea, em música clássica o que se fez nos últimos cem anos é considerado contemporâneo. A mim ele caiu-me no goto, é mesmo o segundo compositor do século XX de que gosto mais, o que eu gosto mais, e de longe, é também, para seu imenso infortúnio, e nossa fortuna se o infortúnio dele contribuiu para a obra monumental que nos legou, conterrâneo e, pior do que isso, contemporâneo, do Estaline, outro russo, o Dmitri Shostakovich. O terceiro, e confio-vos este segredo na esperança de não lhe darem publicidade e não me exporem publicamente como apreciador de banais musicais americanos que pode destruir a minha reputação como intelectual de esquerda, é outro russo de alma, porque filho de imigrantes recém-chegados de São Petersburgo, mesmo que já americano de nascimento, o George Gershwin, nascido Jacob Gershowitz. Se eu digo a quem está disposto a ouvir-me que, da Rússia, nem bom vento, nem bom bardeamento, na música penso exactamente o contrário da escola russa. Prokofiev primeiro estranha-se, depois entranha-se. Para os que, mesmo assim, ainda continuam cépticos relativamente à capacidade dele como compositor de música clássica clássica, só posso recomendar a audição da primeira sinfonia, baptizada justamente de Clássica, uma miniatura encantadora composta com a tenra idade de vinte e cinco anos que podia muito bem ter sido composta pelo Mozart cento e cinquenta anos antes. E onde os mais atentos identificarão excertos que foram reutilizados nas suas obras posteriores mais conhecidas, incluindo bailados como o Romeu & Julieta.
Tudo junto, tanto do lado da solista, como do da orquestra, como do da composição e do compositor, o José arrisca-se a assistir a um concerto memorável. Apesar da modéstia de se diminuir por ter escolhido Prokofiev, está de parabéns pela escolha.
O José reparou, mesmo tendo recorrido ao saite de bilheteira da Gulbenkian para comprar os seus bilhetes onlaine, que há pequenas falhas encantadoras no funcionamento da instituição que fazem dela, apesar da sua história e do papel que tem tido ao longo de tantas décadas na divulgação da cultura erudita em Portugal, entre outras causas igualmente meritórias, tudo junto fazendo da fundação uma espécie de taluda do Euromilhões que nos calhou a nós sem sequer termos gasto dinheiro a comprar uma cautela, ainda um bocadinho mais portuguesa. Quase como se fosse uma instituição, não de direito privado, mas público. Falhas como ter dois belíssimos lugares indicados no saite como disponíveis, mas que depois o saite impede de se reservarem. Aliás, o motivo mais provável para eles ainda estarem disponíveis, e continuarem a estar, como poderia muito bem concluir o senhor de La Palice.
De facto, a Fundação Calouste Gulbenkian é o avesso do capitalismo de estado, esse terrível sistema que substituiu todos os socialismos que foram generosamente implementados ao longo da história e, por tê-los substituído, os impediu de proporcionarem aos seus povos os benefícios prometidos que lhes proporcionaria o socialismo genuíno, razão pela qual todos os socialistas que se prezem dizem, a quem lhes aponta que todos os socialismos resultaram em miséria e ditadura, para não falar de cleptocracia, que não eram socialismos, porque tinham sido pervertidos e transformados em capitalismos de estado. Mas o próximo socialismo é que vai finalmente ser o bom, avisam eles, e alguns patetas ainda acreditam nesta lengalenga, de modo que tem todo o sentido que o digam. Em vez de capitalismo de estado, a Gulbenkian chega a parecer um estatismo com capitais privados.
Talvez isso se deva ao facto de muitos dos gestores trazerem de funções governativas que desempenharam anteriormente uma preciosa experiência em gestão pública? Talvez. Um dos aspectos que o revela é a imensa quantidade de borlistas que frequentam os concertos musicais, de bilhetes no entanto nada baratos para quem tem que pagar do seu bolso para os adquirir. Concerto após concerto, ano após ano, até nos concertos de Música de Câmara, tradicionalmente com salas quase vazias mesmo quando actuam intérpretes dos melhores do mundo, e dou como exemplo os extintos Trio Beaux-Arts e Quarteto Borodine, lá estão eles, sempre nos mesmos lugares espalhados pelas filas da frente, ao lado de espectadores que, se forem relativamente assíduos, e o suficiente para os toparem, e tiverem comprado assinaturas, facilmente gastaram mais de mil euros por temporada para um casal. E se forem ainda mais assíduos pode ter sido um bom bocado mais. É carote para quem paga. E há coisa mais pública do que transferir dinheiro dos que pagam, e muito, para os que vivem à borla, mesmo que sejam mais remediados que os primeiros? Não há.
Mas não é a carestia da vida para os frequentadores da Gulbenkian nem o fenómeno das borlas que me trazem aqui hoje, mas as regras de etiqueta.
Há uma série delas, de que não faz parte evitar desembrulhar rebuçados durante a execução das peças com o consequente ruído persistente e insinuante do papel de celofane a desdobrar-se aparentemente sem fim, mas que na sua maioria estão associadas ao respeito pelas condições que permitam aos outros espectadores assistir ao espectáculo sem serem distraídos ou perturbados, e têm a ver com o cuidado em não produzir ruídos que os incomodem, quer deixando ligados telemóveis que podem tocar a meio de uma obra, quer conversando com os vizinhos, o que, mesmo sem ultrapassar o nível de volume do sussurro, se torna extraordinariamente invasivo quando se está a prestar atenção à música. Todas estas regras de etiqueta, mesmo a dos rebuçados que devia haver mas não há, têm sentido, sendo talvez um exagero a irritação que as tosses provocam, não por não perturbarem a audição da música pelos outros espectadores, mas por ser humanamente impossível evitá-las pela mera força da força de vontade quando elas chegam, o que faz dos tossidores mais vítimas merecedoras de compreensão e simpatia dos vizinhos do que carrascos que merecem a expulsão do paraíso.
Mas há uma regra de etiqueta que, não me lixem, não tem nada a ver com o respeito pela atenção dos outros espectadores ao espectáculo, mas apenas serve para separar os que conhecem as regras da etiqueta dos que não as conhecem: a regra do aplauso. Quando se deve aplaudir?
A regra nem é complicada. Deve-se aplaudir quando uma peça termina, mas não nos intervalos entre partes, ou andamentos, ou movimentos da peça. Na ópera não é nada assim, mas nos concertos ou recitais de música erudita é.
O problema é que a regra, sendo simples, não é nada intuitiva. Quem não é frequentador habitual de salas de concerto e se deixa levar pelo entusiasmo justificado pelo agrado com uma actuação cai facilmante no ímpeto de a aplaudir quando a música termina. É um gesto de agradecimento aos executantes, de reconhecimento do seu mérito, até de carinho. É mesmo um gesto generoso. Só que, quando a música que termina é um andamento da peça, mas não o último andamento, e acontece, o espectador que aplaude é duplamente fuzilado, pelos olhares de reprovação dos que conseguem localizar na sala o incauto, e por shiu vindos de toda a sala, que chegam a ser mais barulhentos do que o aplauso que censuram e o ridicularizam impiedosamente. Taliban autênticos a impôr a virtude e a escorraçar o pecado. Muitos sedeados no sector dos borlistas, aliás, que isto anda tudo ligado. É talvez assim que pensam que devem retribuir à sociedade o que a sociedade lhes dá, assistir à borla aos concertos da Gulbenkian.
Alguns autores justificam esta regra com a necessidade de não quebrar a concentração dos executantes quando acabam um andamento e se preparam para iniciar o seguinte. Como eu não sou executante, não estou em condições de confirmar nem contradizer esta explicação. Mas a linguagem corporal habitual de muitos dos membros das orquestras no intervalos entre andamentos sugeram que talvez não estejam assim tão concentrados como a explicação admite. Adiante.
É que, terminada esta breve introdução, chego finalmente à história que tenho para contar.
Em 2005 o pianista russo Alexander Toradze, um dos melhores intérpretes de Prokofiev do mundo, executou um terceiro concerto memorável com a Orquestra Gulbenkian, e é por aqui que esta história decorre da outra e que esta determinou a peça anteriormente mostrada.
O Alexander Toradze é um grande pianista russo, como muitos instrumentistas russos que cresceram no tempo da URSS, e antes, e depois, num país onde no ensino da música se cultivavam obsessivamente o rigor e o trabalho, que os russos preferiam instrumentistas de excelência a instrumentistas felizes, e é professor de piano na universidade de Indiana, South Bend, onde mantém um agrupamento formado por ele e pelos alunos, o Toradze Piano Studio, vocacionado para oferecer recitais temáticos, habitualmente a obra completa para piano de um compositor.
Nesse fim de semana ele permaneceu na Gulbenkian para tocar com os seus discípulos do Toradze Piano Studio a integral de sonatas para piano do Prokofiev numa maratona que ocupou a tarde inteira do domingo. Quando uma das pianistas-discípulas completou um andamento de uma das sonatas ouviu-se irromper um aplauso na sala. E o batalhão de taliban de serviço na Gulbenkian fuzilou de imediato o intruso no silêncio entre andamentos com o tradicional shiu colectivo. Fosse ela um certo pianista português, que os há assim, ter-se-ia certamente levantado e retirado em fúria pela perturbação à concentração originada pela falta de etiqueta do espectador. Mas ela não pareceu ficar nada perturbada, e até sorriu. Acontece que o recital era à média luz, e percebeu-se rapidamente que o incauto, o intruso, o ignorante que não merecia estar naquele local de culto, estava numa das primeiras filas do lado direito da sala, e até se conseguiu identificá-lo: era o pianista Alexandre Toradze. E os taliban meteram o rabinho entre as pernas e calaram-se muito caladinhos e envergonhdos por estarem a mandar calar um dos melhores pianistas, pelo menos de Prokofiev, o que não é nada pouco, do mundo. Não consta que tenham aprendido com a gaffe.
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