Terça-feira, 22 de Novembro de 2016
Num excelente ensaio escrito há alguns meses, Vítor Bento explica por que razão o Brexit era inevitável e porque, se não tivesse tido lugar como resultado de um referendo, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Nas suas palavras: "Não se pense que a decisão de deixar a UE foi, como tem sido dado a entender, um acidente do processo democrático ou o resultado de um conflito de gerações ou de níveis educacionais. Longe disso. Os factores mais imediatamente influentes naquela deliberação podem ter sido circunstanciais, como a crise dos refugiados e o receio de invasões migratórias, e podem ter-se manifestado nos referidos epifenómenos geracionais ou de educação escolar, mas o resultado seria inevitável, mais cedo ou mais tarde".
O escopo do ensaio não é porém explicar o Brexit; ocupa-se dele para, sobretudo, avaliar as consequências para a União Europeia e a União Económica e Monetária. E como tanto uma como outra, a primeira mais no plano estritamente político, e a segunda mais no plano estritamente económico, estão com a saúde abalada, ambas com ou sem Brexit, Bento aproveita para fazer a história da construção comunitária, identificar os problemas da União e da Zona Euro e sugerir os caminhos que se devem trilhar para os resolver.
Sobre a União, Vítor Bento estima que "fica [assim] mais dependente de terceiros – EUA e, até certo ponto, o próprio RU – para a sua própria defesa e dos seus membros, contradizendo, e desvalorizando, a relevância estratégica que o projecto de integração pretende assegurar". E rejeita aparentemente o fortalecimento da capacidade militar, que seria necessária para a UE "mitigar aquela dependência e preservar a sua relevância estratégica" porque "isso dificilmente será conseguido sem fortalecer a da Alemanha, o que não deixaria de gerar intranquilidade à sua volta".
Esta é de facto uma boa razão. Mas mesmo que a Alemanha não fosse inevitavelmente, num exército europeu continental integrado, o elemento preponderante, a ideia de que fosse possível neste momento histórico, e em qualquer outro futuro que a imaginação alcance, fazer um exército europeu credível e eficaz, com o que isso significaria de amálgama de histórias, identidades e recursos, sem que em algum momento o edifício abrisse brechas, é simplesmente – sem ofensa para o ensaísta – lunática. Para defesa daquilo que genericamente se pode designar como valores do Ocidente existe já um exército – é o da NATO, por muito que um dos seus membros, a Turquia, tenha as suas credenciais democráticas, por estes dias, erodidas. Que a nova administração americana pareça querer exigir que os países europeus contribuam mais equitativamente para aquela organização, e que esta não possa defender pontos de vista substancialmente diferentes dos que os EUA tenham é decerto uma grande maçada. Que a nós portugueses não nos deveria incomodar excessivamente, tendo em vista a longa prática de depender militarmente, para a nossa sobrevivência como Nação, do superpoder do dia.
So much para o exército europeu, que de todo o modo nunca passou de um delírio de europeístas fanáticos, com perdão da redundância.
Resta o problema do Euro, que "dificilmente pode ser apresentado como uma história de sucesso, sobretudo para os participantes menos ricos e que viram aumentar o fosso económico que os separa dos mais ricos". Bento acha, como Wolfgang Munchau, que a solução mais abrangente poderá passar por “uma eurozona mais integrada e uma UE menos integrada”. "O que, em última instância, poderia ser suficiente para reverter o próprio Brexit", comenta, com uma dose apreciável, provavelmente inconsciente, de wishful thinking.
Concretizando: "Terá que haver uma qualquer forma de união fiscal – seja através de um orçamento 'federal', seja através de um sistema institucionalizado de transferências fiscais –, assim como terá que ser implementado o pilar em falta da união bancária – a garantia comum de depósitos – e que implicará uma outra forma, pelo menos implícita, de 'mutualização' de recursos. Ora, estes passos não serão dados sem serem acompanhados de uma qualquer forma de 'federalização' do poder de decisão sobre o uso dos recursos 'mutualizáveis'. E não será possível prosseguir por muito mais tempo o desalinhamento de preferências sociais que tem marcado o funcionamento da zona euro e que muito contribuiu para a crise de que ainda se não conseguiu sair totalmente".
Traduzindo, que neste passo Bento cede à tentação de não ser claro, decerto por imaginar que para dizer coisas desagradáveis é preciso embrulhá-las num paleio ininteligível: Entre nós, há que deitar fora o PCP, o BE e o PS, no que toca a política económica e financeira, ficando o Governo, e sobretudo o Parlamento, amputados de competências legislativas naquelas áreas; e, por exemplo na Alemanha, há que forçar a despesa e o consumo, o que quase explicitamente se diz no final do ensaio.
Por mim, não vejo com bons olhos a eliminação do regime democrático em troca da gestão racional da finança e da economia, mesmo que o preço seja um quarto resgate, e até um quinto, porque acredito nas virtudes pedagógicas do falhanço: erradicar a preponderância das ideias de esquerda entre nós pode fazer-se com o sangue, suor e lágrimas das consequências delas, não se pode fazer com decisões acertadas de estrangeiros. Ainda que o fossem, as decisões, o que com o actual BCE, e países como a França e a Itália, ou a tresloucada Espanha do Podemos, é menos do que certo.
Já os meus concidadãos decerto aceitam tudo, desde que não sejam contribuintes líquidos e possam conservar o galo de Barcelos, o Fado e a nacionalidade do passaporte de Ronaldo. Mas imaginar que Franceses, Italianos e tutti quanti são como nós, que este programa não dará origem a novos exits e que, por exemplo, as denunciadas aldrabices francesas do défice, de conluio com a Comissão, tiveram lá fora o mesmo descaso que mereceram cá dentro, releva de cegueira.
A mesma cegueira que levou à criação do Euro. E que, agora que são muitas as vozes dos que a patrocinaram a dizer que a arquitectura não era a indicada e que bem avisaram (baixinho, tão baixinho que ninguém ouviu), leva a que uma pessoa superior como Vítor Bento não queira ver que a União Europeia é um cadáver adiado porque a doença que o consome não é falta de integração - é o excesso.
Terça-feira, 6 de Setembro de 2016
Qual das seguintes profecias é da autoria do Nobel da Economia Joseph Stiglitz?
As duas.
Se quiserem saber a opinião real de um Nobel da Economia sobre economia, não lha perguntem, vejam onde é que ele guarda o seu dinheiro. Se ele transferir os seus investimentos pessoais para Portugal e sugerir a saída de Portugal do euro, é porque acredita mesmo naquilo que diz. Se sugerir a saída de Portugal do euro mas mantiver os seus investimentos em praças financeiras sólidas e em moeda forte, é apenas mais um aldrabão a sugerir a cobaias palermas, e se em Portugal não há falta delas? o mergulho no abismo.
Quinta-feira, 5 de Maio de 2016
Ao contrário de Portugal, cujo governo persiste em ignorar teimosamente as sugestões construtivas do Bloco de Esquerda e aumentou o salário mínimo em apenas 5%, deixando inquietas as pessoas que "sentem que a sua experiência, a sua competência, a sua responsabilidade é completamente desconsiderada", o governo da Venezuela acabou de aumentar o salário mínimo em 30%.
Não é só por má vontade. É também porque o governo português, apesar de socialista, está agarradinho pelas grilhetas do euro. Ao contrário, o governo socialista venezuelano pode imprimir, enquanto tiver dinheiro para papel e tinta, notas de bolívar.
Também é verdade que a inflação na Venezuela anda pelos 700%. O que significa que, para comprar o que um bolívar conseguia comprar há um ano, agora são necesssários oito. Como os venezuelanos foram aumentados 30%, agora ganham 1,30 bolívares por cada bolívar que ganhavam há um ano. Recebem mais, a vantagem de serem aumentados por um governo socialista bolivariano. Mas o que recebem vale seis vezes menos do que valia o que recebiam há um ano, ou seja, quem tinha dinheiro para comprar um quilo de carne há um ano, agora tem dinheiro para comprar um quilo de arroz. O que não chega sequer a ser um problema, porque já não há carne nem arroz nas lojas. Enfim, tudo junto resulta naquilo que os assessores do Podemos ensinaram, a troco de modestíssimos honorários, o governo venezuelano a designar pela "Suprema Felicidad Socialista".
Como chegar então ao ambicionado patamar da suprema felicidade socialista em Portugal? Uma solução prometedora seria marimbarmo-nos para o pagamento da dívida, lançar a bomba atómica e deixar o banqueiro alemão com as pernas a tremer. Mas as palavras terão sido fortes, com uma imagética excessiva, e o próprio proponente hoje em dia esmoreceu o ímpeto reformista da cruzada. A melhor alternativa parece ser sairmos do euro e retomarmos a impressão de escudos, com que podemos pagar salários cada vez mais elevados, até deixarmos de ter dinheiro para imprimir mais dinheiro.
É verdade que, sem o euro e a senhora Merkel (a senhora Merkel é doutorada em Química quântica, mas nem por isso deixa de ser senhora) e o senhor Schäuble a tomarem conta dele, governos de demagogos irresponsáveis poderão devolver livremente os rendimentos aos portugueses aumentando os salários para cima de uns trinta por cento à custa de desvalorizar a moeda para um oitavo do valor que tinha. Mas o que é isso comparado com a suprema felicidade socialista de voltar a ter aumentos, contratos colectivos de trabalho, e lojas vazias, mas com a felicidade de poder atribuir a responsabilidade de estarem vazias aos especuladores e inimigos da revolução?
Terça-feira, 6 de Janeiro de 2015
O homem é marxista e cómico: nunca teve nada a ver com o marxismo soviético, credo!, as suas inclinações são mais para a tradição marxista francesa, diz sem se rir. O autor do artigo não achou útil esclarecer de que forma se distinguem os marxistas russos dos franceses, para além do hábito deplorável que têm os primeiros de se beijarem uns aos outros com hálito de vodca.
Tal como o seu confrade português, frei Anacleto Louçã, com o qual partilha, além das ideias lunáticas, boas credenciais académicas e o amor das toilettes casual, defende a manutenção no Euro em conjunto com medidas económicas que a tornam impossível:
"Milios enumera as prioridades do partido, uma por uma. Envidaria esforços concertados para ajudar os mais duramente afectados pela crise - eletricidade gratuita para os gregos aos quais o fornecimento foi cortado, cupões de alimentos distribuídos em escolas, serviços de saúde para aqueles que deles necessitam, rendas de casa garantidas para os sem-abrigo, a restauração do salário mínimo ao nível pré-crise de 750€ por mês e uma moratória sobre o pagamento, acima de 30% do rendimento disponível, da dívida aos bancos privados. Ele argumenta que os cerca de 13 mil milhões de Euros de custo de tais medidas poderiam ser na maior parte cobertos por uma redistribuição das receitas do Estado e repressão da evasão fiscal." *
Isto, é claro, para além do perdão de dívida de mais de 50%, a extensão dos prazos e outras formas engenhosas de pagar sem dor, ao mesmo tempo que, sob a lúcida direcção de Alexis Tsipra, a economia começará milagrosamente a crescer.
Ou seja, o homem quer aumentar a despesa pública, não pagar o que deve, exilar os ricos e sufocar a iniciativa privada. E declara que “we will not deal with this on a bilateral level with Germany but in a much wider context".
Por outras palavras, quer uma aliança com os outros caloteiros e acha que há esquerdistas, nos eleitorados e nos partidos no poder no espaço europeu, em quantidade suficiente, conjugada com o medo da deflacção e da implosão do Euro, para uma parte do seu programa ser acomodada pela burocracia europeia de forma que a barca da União prossiga.
Poker, portanto: da sua mão, que é fraca, diz Milios: "Greece, in its weakness, is actually very strong.”
Não estou absolutamente certo que uma versão muito edulcorada do programa não possa efectivamente passar; mas estou seguro de que, se o Syriza ganhar as eleições, e mesmo que lhe estendam a mão, ou faz o que promete e dá com os burros na água, pelo que o eleitorado o atira às urtigas; ou não faz e o eleitorado dá-lhe o mesmo destino. O que se vai passar a seguir é anybody's guess.
Quer dizer que o Syriza não tem futuro; e a Grécia, dentro do Euro, também não, a menos que se entenda que, enquanto o desemprego e a dívida pública crescem (26% um e 177% do PIB a outra, and counting), se podem ir experimentando receitas até dar no bingo.
Entre nós, isto, que devia ser evidente, serve para um combate basicamente desonesto, porque feito de reservas mentais: o PS deseja que os tresloucados ganhem para que apanhemos a boleia do laxismo europeu a haver e Costa possa ter recursos para pôr a austeridade de molho e fazer tranquilamente as suas apostas no crescimento - as mesmas do socratismo, mudando o nome dos actores e dos programas, e abandonando uma ou outra caída em descrédito, como o TGV; e a direita, toda ela, deseja que o Syriza perca, menos porque é uma associação de demagogos e esquerdistas - essas seriam as boas razões - mas mais porque se deseja que o eleitorado português, suspeito de incapaz de fazer escolhas correctas, receba uma lição: estão a ver, estão a ver como a União é o caminho? Com o Syriza havia riscos para o Euro e os Gregos, sensatamente, recuaram - temos que ser bons alunos e fazer muito, muito o que a Alemanha diz.
Eu desejo que o Syriza ganhe porque isso poderia ser o princípio do fim do nó górdio em que a União Europeia se transformou. E se com essa vitória o PS reforçar nas sondagens as suas probabilidades de ganhar as eleições, há tempo mais que suficiente para esses ganhos serem revertidos - os socialistas de todos os bordos, gregos ou portugueses, e quanto mais radicais pior, não costumam precisar de muito tempo para traírem as suas promessas ou escaqueirarem tudo.
*Tradução minha
Sábado, 13 de Setembro de 2014
Leio Rui Ramos com prazer e proveito, como se diz. E embora este texto não se me aplique (eu era eurófobo há vinte anos e sou eurófobo agora), nem por isso, desta vez, deixo de manifestar uma completa discordância. Por partes:
"Dúvidas políticas: é o euro o remate de um mercado único, ou o começo de um Estado europeu com ambições de ultrapassar as nações históricas?"
O Euro foi apresentado - melhor, trombeteado - como sendo mais um passo no aprofundamento da "construção europeia" e os inimigos e desconfiados do edifício, então relativamente raros e agora bem mais numerosos, eram, e são hoje ainda mais veementemente, tachados de "inimigos da Europa". E como se tornou relativamente pacífico que a moeda única requer regras orçamentais iguais, e não falta quem entenda que a fiscalidade, ela própria, também não deve permitir grandes assimetrias dentro do espaço comum, ficamos em condições de responder:
A perfeição do mercado único talvez requeira uma moeda comum, uma política orçamental comum e uma política fiscal comum, mas o preço dessa perfeição é a subtracção aos parlamentos e aos governos de competências nessas áreas, que serão transferidas (como, em boa parte, no nosso caso, já estão) para estrangeiros - eleitorados estrangeiros, governos estrangeiros e burocracias estrangeiras. Os representantes de Portugal terão, é claro, uma palavra a dizer, na medida do peso dos nossos 10 milhões de habitantes e do nosso PIB - duas gotas de água no turvo lago da UE. Portanto, o Euro é, sim, um remate, o qual implica necessariamente "ultrapassar as nações históricas".
"Dúvidas económicas: estarão os regimes europeus suficientemente sintonizados para poder partilhar uma mesma moeda?"
A pergunta, nos termos em que está formulada, carece de sentido. Porque, por exemplo, o volte-face de Hollande, apesar de tudo dirigente de uma grande nação, demonstrou que a lógica integracionista se sobrepõe a promessas eleitorais, convicções políticas e estados de alma dos eleitorados. Claro que, para quem tenha os meus pontos de vista, Hollande não podia cumprir as promessas eleitorais sem causar danos severos à economia francesa e, portanto, ao Euro. Mas por que razão se tem de supor que a visão económica hoje dominante na UE e no BCE não pode ser alterada e amanhã não se encontrará a Alemanha confrontada com uma maioria (de eleitorados e de países) que entenda que a política económica de rigor nas contas é intolerável e que portanto os boches e satélites o que têm a fazer é submeter-se? Ora, se e quando isso suceda, não custa apostar dobrado contra singelo que preferirão sair - têm boas e sólidas razões históricas para não quererem conviver com inflação e moeda fraca. Donde, a pergunta indicada deveria ser: estarão os povos europeus suficientemente sintonizados para poder partilhar uma mesma moeda?
"Em quinze anos de euro, tivemos uma assistência internacional (2011). Mas nos dez anos de democracia antes da adesão à CEE, tivemos duas (1978 e 1983), além de uma das inflações mais virulentas da Europa ocidental".
Há três diferenças entre a falência de 2011 e as outras: i) nos idos de setenta e princípios de 80 a memória da Revolução e o seu cortejo de desvarios estava ainda fresca. Os Portugueses viviam a política com intensidade e acreditavam nos poderes demiúrgicos do Decreto-Lei para lhes melhorar a vida - os partidos de Poder estavam consideravelmente mais à esquerda do que hoje estão. Em 2011, havia um pano de fundo de crise internacional com a qual o governo socratiano lidou numa fuga para a frente despesista, aliás só tornada possível, justamente, por trás da cortina de credibilidade do Euro; ii) O endividamento, privado e público, atingiu níveis sem precedentes em 2011, e, três anos mais tarde, não só a dívida pública ainda não parou de crescer como as consequências - em desemprego, em emigração, em temor do futuro - não são comparáveis às crises anteriores; iii) Das crises anteriores saiu-se com relativa facilidade; da actual basta uma subida considerável dos juros da dívida para novamente o País, que se reergue penosamente, afundar.
"Hoje e aqui, o euro tem um significado: mesmo com todas as dúvidas, representa neste momento a opção – o que, note-se, não é a mesma coisa que a possibilidade — de desenvolver Portugal através da capacidade dos seus empresários e trabalhadores para competirem nos mercados internacionais, com tudo o que isso implica de maior abertura e flexibilidade do regime económico".
Sou há mais de 30 anos empresário, um desses que não fornece o Estado, não tem o telefone de ministros, não pertence às soi-disant associações representativas da espécie, não faz o circuito dos workshops, cocktails, encontros, missões comerciais e dinamizações sortidas, nem tem um indevido respeito pela gigantesca nuvem de opinantes que sabem perfeitamente como se devem dirigir as empresas que nunca fundaram. E, para competir nos mercados externos, que são os que sempre elegi, não vejo qualquer vantagem no Euro que os seus inconvenientes não anulem, nem para mim nem para os meus trabalhadores. De flexibilidade estamos conversados, que as instâncias europeias são ainda mais metediças, reguladoras e sufocantes que as nacionais, hoje aliás, crescentemente, meras agências de burocracias internacionais anónimas, inimputáveis, e inacreditavelmente estúpidas.
"O euro deu-nos esta coisa extraordinária na nossa história recente: uma moeda estável em democracia. E isso é fundamental para um regime democrático, porque não existem verdadeiramente direitos e garantias onde um governo, através das impressoras da casa da moeda, pode enganar e espoliar os cidadãos, confiando na “ilusão monetária” para se esquivar a debates. Não sabemos se o euro vai acabar. Mas se por acaso acabar, e dada a nossa história monetária, deixará certamente saudades".
Recomendar-lhe-ia, meu caro Rui Ramos, se tivesse autoridade para lhe recomendar alguma coisa, que tivesse mais fé nas pessoas: os cidadãos podem ser enganados, e são, muitas vezes. Mas não só, enquanto houver regime democrático, não há qualquer falta de debates, como os governos não põem as rotativas a trabalhar às escondidas - é bem às claras, com défices e despesismos à vista de todos
Já tivemos, ao mesmo tempo, moeda sólida, boas contas e crescimento robusto. É verdade que não foi em democracia. Mas não desisto de pensar que não é impossível ter algo de parecido por escolha livre, com as adaptações que as muito diferentes circunstâncias impõem. E, é claro, se tivesse de escolher ditadores preferia os nossos. De resto, uma boa definição de ditadura é arrogarmo-nos o direito de impedir os cidadãos de fazerem escolhas que, na nossa opinião, os prejudicam.
Quarta-feira, 20 de Novembro de 2013
Houve um tempo em que uns maduros faziam artigos sábios recomendando a saída do Euro. Excepto pelo detalhe dos sábios, fui um desses. E, como os mais, tenho estado calado. O meu silêncio não precisa de ser interpretado; o dos outros sim.
Ocorrem-me cinco razões:
i) Os povos dos países aflitos não querem sair. Pode a economia cair ou não arrancar, o desemprego atingir a exosfera, uma ou outra vez chegar à opinião pública uma lei ridícula, metediça ou simplesmente idiota do Governo Europeu, uma ou outra declaração contraditória do FMI, ou do BCE, ou da OCDE, ou daqueles organismos com siglas estranhas que soam como fé-ré-fé-fé-trás-pum - nada, o povo é sereno, e a ideia de sair mais adamastoriana que a tranquila desgraça do ficar;
ii) Na 23ª hora as instâncias credoras competentes sempre dão, e deram, um jeito. Elas sabem disso, os governos sabem disso, e os eleitorados sabem disso. Houve um tempo em que se julgou que, logo que os bancos alemães expostos tirassem o cavalo da chuva, e o jogo passasse a ser apenas entre os contribuintes, outro galo cantaria. Mas o edifício resistiu, resiste, com bancos e fundos interpostos a fingir que arriscam realmente alguma coisa, e não fosse pela maçada de a Europa não crescer, a Grécia progredir ainda em direcção ao Neolítico, e os outros países consabidos do Sul continuarem nos cuidados intensivos, poder-se-ia dizer que a crise passou;
iii) Nenhuma corrente de opinião importante, nenhum partido político relevante dos países do Euro (o nosso PCP tem realmente muita importância, mas é mais em Loures, um conhecido arrabalde de Lisboa, e no frente-a-frente da Sic-N) defende a saída; e pelo contrário quase todos juram o seu filial amor à ideia da Europa unida, a cujo destino amarraram o seu e o dos seus dirigentes - actuais e históricos.
iv) Tirante alguns economistas anglo-saxónicos, que não são gente da nossa criação, e alguns catedráticos isolados, os magos da economia são quase unânimes: no Euro, na União Europeia, está o futuro; e para os velhos do Restelo fica o cais.
v) À direita do espectro político, percebeu-se que a disciplina que o Norte da Europa quer impôr ao Sul, por causa do Euro, é a mesma disciplina que o Sul deveria querer impôr a si mesmo, em vez da utilização deliberada da moeda própria para financiamento do laxismo, e dos governos intervencionistas e expansionistas com a máquina de fabricar cédulas debaixo do braço. E aquela parte da Direita que é, assumida, implícita ou inconscientemente, mais ou menos nacionalista, mais a outra que não é adepta da economia vudu, resolveram fechar a matraca - por ora.
Os eleitorados compram, no supermercado das ideias políticas, aquelas que lhes agradam, mas elas vêm em pacote: o Euro não se discute porque, de momento, a guerra é outra, e ambos os lados, nesta matéria, defendem o mesmo. Quem não defende não conta porque vem com outra tralha pendurada.
O assunto caminha assim para o tabu. Seja. Eu também nem estou disposto a cantar até que a voz me doa nem me suponho cantautor. Hoje é que me deu pr'ó desabafo; que tanto unanimismo chateia.
Domingo, 15 de Setembro de 2013
Portugal colapsou financeiramente em 1892, 1977 e 1983. Tinha, nas três marés, moeda própria.
Também tinha moeda própria na década de 60, quando crescia a taxas asiáticas sem aumento significativo dos endividamentos - público, privado e externo.
Não tinha moeda própria quando colapsou em 2011, ao termo de uma década na qual praticamente não cresceu.
Se a lógica não for uma batata, é possível dar com os burros na água com e sem moeda própria, ainda que da última vez o tamanho do estouro seja, como proporção do produto, sem precedentes - o Euro foi a cortina, que uma moeda própria nunca poderia ser, por trás da qual sucessivos governos compraram com benesses sempre crescentes o favor do eleitorado e dos grupos de pressão. Ao mesmo tempo, também criou as condições para que uma banca acéfala, financiada por investidores cegos e sob a supervisão de farinha do mesmo saco, emprestasse também aos privados para consumo e compra de casa "própria", encandeados pelo juro baixo e a facilidade de crédito. A comunidade dos economistas e dos fazedores de opinião, quase sem excepções, aplaudiu.
Foi assim. E para garantir que o asneirol não se repita, nada melhor do que cedermos toda a autonomia decisória a um banco central que finge que não é alemão, burocracias europeístas que defendem antes de mais, como todas as burocracias, os seus próprios interesses, e um povo tão generoso que, ao mesmo tempo que irradia um brilho parecido com o ouro, vai altruisticamente cuidando de quem não se sabe cuidar.
Têm alguma autoridade na matéria, os Alemães: nos anos 20, a moeda deles não andou longe de ser cotada ao quilo; e, no século passado, por duas vezes significaram às restantes nações o que pensavam do melhor arranjo europeu.
Terão aprendido a lição. Nós não. Por isso, à falta do padrão-ouro, precisamos de um país-padrão. É o que aqui diz Vítor Cunha. E eu, que tantas vezes digo ámen ao que ele escreve, desta digo que o neokeynesianismo no poder é ainda menos perigoso que a engenharia de pátrias.
Quem viver, verá.
Segunda-feira, 26 de Agosto de 2013
E não pelo derrotismo. No meu (i)modesto cantinho de dimensão não-comparável à de António Borges, discordo da sua esperança quase atávica no futuro do euro e aceito o derrotismo baseado na noção de que a moeda é um reflexo objectivo e não falsificável da nossa cultura e organização social. Como tal, não podemos partilhar a mesma moeda com alemães e restantes países norte europeus muito diferentes. Será eventualmente menos difícil transformar os alemães e núcleo duro do euro, em assistencialistas do sul, que tornar os europeus do sul em povos eficazes, eficientes e económica e politicamente disciplinados, contribuintes de modo positivo para uma moeda única forte.
Dito isto, e desaparecido o homem ficam, se ele as tinha fortes e claras, as suas ideias. Este artigo de 2013 de António Borges deixou-me uma impressão de uma pessoa muito convicta, segura, inteligente e clara. Também demonstra como era um homem fortemente empenhado em nos salvar de nós-próprios e talvez por isso tenha gerado tantas incompreensões por parte de alguns barulhentos que escolhem viver no mundo das sombras e aparências simples. Provavelmente a melhor síntese portuguesa sobre a criação, situação do euro as origens da crise, suas causas e soluções. Ora recordem as ideias de um dos nossos. Ontem ficámos mais pobres porque perdemos uma voz de esperança.
"António Borges: Como ultrapassar a crise
Ao contrário do que por vezes se lê na imprensa, não falta solidariedade na Europa. Hoje, centenas de biliões de euros – na verdade, com o início de funcionamento do ESM, chegaremos a mais de um trilião – estão disponíveis para ajudar os países em dificuldade. Existe também já hoje um mecanismo extremamente poderoso para ajudar a financiar a dívida dos países em dificuldade, graças à disponibilidade do Banco Central Europeu em intervir no mercado de obrigações. Não é necessário mais nada para que os mercados se acalmem, os países possam ganhar tempo, as economias voltem ao equilíbrio.
O único obstáculo a uma saída rápida e segura da crise é que todo este impressionante arsenal está disponível com uma condição: que os países em crise ponham a sua casa em ordem. Não se pode pedir aos países fortes da zona euro – seja a Alemanha, a Finlândia ou a Áustria – que ponham à disposição o dinheiro dos seus contribuintes para que os países em crise continuem a praticar políticas irresponsáveis, se recusem a fazer os ajustamentos que são indispensáveis ou façam tudo o que podem para minar ainda mais a sua credibilidade nos mercados.
Aqueles que continuam a insistir que, quaisquer que sejam os erros e incompetências dos países em dificuldade, qualquer que seja a arrogância e tontaria dos seus governantes, os países mais ricos e fortes têm de continuar a financiar as economias da periferia, serão os verdadeiros coveiros da União Monetária. É que toda a Europa vive em democracia; e os eleitores revoltar-se-ão muito depressa se virem o seu dinheiro, que tanto custa a ganhar, servir apenas para financiar quem não se sabe governar."
O resto, aqui.
Segunda-feira, 29 de Abril de 2013
Temos os que defendem o Euro à outrance (recuar nunca, credo!), dos quais há duas variedades: os que temem que isso faça ruir o projecto europeu, com grandes riscos, imaginam, para a paz na Europa, a qual, aliás, para ter peso no Mundo, tem que "falar a uma só voz"; e os que se abstêm de grandes voos de especulação geoestratégica, mas acham que a sobrevivência dentro do Euro implica disciplina das contas públicas, coisa que a Democracia entre nós nunca deu sinais de garantir.
Uns e outros estão dispostos a alienar o mais remoto resquício de autonomia financeira, os primeiros porque supõem que no colégio europeu a voz portuguesa teria, logo que a deriva autoritária alemã esteja emendada, mais peso do que isolada no Mundo, e que a solidariedade entre países não é uma fantasia; e os segundos porque não veem a utilidade da independência, se for para nos condenar ao tipo de gestão orçamental e económica que nos pôs de joelhos, e à sociedade atrasada e pobre que, creem, é o corolário lógico de uma moeda fraca, que seria por sua vez o corolário lógico da gestão socialista a que estamos condenados.
Há mais factores, claro, desde o pavor do desconhecido (os precedentes que existem - Império Austro Húngaro, Checoslováquia, Argentina, outros ainda, nem são convincentes nem aliciantes) até à imensa burocracia que tem o prestígio e o bem-estar ancorados à "Europa", passando pelos nossos responsáveis que, tendo comprometido o País na aventura, não podem, sem perder a face, dizer hoje o contrário do que sempre disseram.
Depois, há os que defendem a saída do Euro. Fora os comunistas, são uma insignificante, ainda que crescente, minoria, tão pequena que é muito mais provável que o Euro se esboroe, ou dele sejamos convidados a sair, ou dele saiam outros e nós por arrasto, do que algum dos partidos que têm estado no Poder desde há mais de três décadas dê o dito há pouco mais de uma por não-dito.
Estes últimos, ademais, têm a vida consideravelmente dificultada porque se lhes exige que digam, expliquem, quantifiquem, o que se vai passar, e eles, coitados, não sabem, que Deus lhes perdoe. É como dizia há dias um economista, cujo nome não retive, para Ferreira do Amaral, com o dedo em riste: Mas reconheça que o problema conceptual da saída é muito diferente do da entrada! Ferreira concordou, e eu também concordaria: a entrada foi muito feliz, mas a sociedade engravidou de um problema, e agora resolvê-lo é conceptualmente - de facto - muito diferente. Para quem quiser inteirar-se do que nos espera, um bom começo é este livrinho e este estudo. Nem um nem outro responde à dúvida principal, que é esta: economia de horror durante quanto tempo?
Isto julgava eu: Ficar ou sair, eis a questão. E a ela dei há muito a minha resposta, previsivelmente minoritária.
Tropeço agora nesta declaração: "Sou partidário de uma saída provisória da união monetária por parte dos países mais débeis", disse Sinn ao jornal Fankfurter Allgemeine Zeitung.
Ele já havia um partido a defender a saída da Alemanha. Saídas provisórias, sem mais detalhes, parece-me à primeira vista fazer sentido nenhum.
Mas as brechas do edifício alargam-se; e aparecem novas. Talvez venhamos, mais cedo do que julgamos, os que contam com a Alemanha para pôr ordem na casa, e os que não querem ordem a preço e prazo incomportáveis, a ficar sem motivo para desentendimento.
Quarta-feira, 27 de Março de 2013
João Miranda, aqui:
"Saída do euro
De entre os defensores da saída do euro só levo a sério aqueles que se derem ao trabalho de explicar o que acontecerá:
- aos salários reais
- ao preço de bens importados como gasolina, computadores e automóveis
- ao valor real dos depósitos bancários
- às várias dívidas que actualmente estão denominadas em euros
-aos bancos e a outras empresas dependentes da dívida
Dos que não se derem ao trabalho de explicar, concluo que ou não estão a sério quando defendem a saída do euro, ou estão a sério mas não fazem a mínima ideia de quais são as consequências." * Fim de citação.
Muito bem. Mas, poder-se-ia também pedir a explicação inversa:
- Como se justifica à população o nível de empobrecimento, degradação da qualidade de vida e miséria geral e até que ponto, essa está disposta a suportar, uma austeridade sem fim à vista, com o seguro agravamento estrutural das assimetrias na zona euro?
Enfim, para início de conversa a questão de João Miranda é interessante. Faltam contudo cálculos comparativos dos custos das duas decisões: sair ou ficar. Muito gostaria de ver uma previsão de desenvolvimento nacional a 20 anos nos dois cenários. Mas... Os economistas, esses cientistas da subjectividade político económica nem se entendem nem se atrevem a especular sobre o que poderá acontecer nesse prazo. É pena e entretanto, sofremos por uma escolha que não foi nossa, embora a tenhamos permitido e sido coniventes.