O diabo ia chegar em Setembro? Parece que, afinal, não chegou.
O deficit público de 2015, deduzido dos resgates de bancos atingiu 3% do PIB, uma ou duas décimas para baixo ou para cima em função de dar jeito a quem faz as contas que ele ficasse abaixo ou acima dos 3%, e ao governo português em funções dava jeito que ficasse acima, mas só um bocadinho, para conseguir montar a pantomina de salvar Portugal das garras e das sanções de Bruxelas. Este ano o governo orçamentou 2,2%, e Portugal não entra em procedimento de deficit excessivo se for inferior a 3%.
Este ano a execução orçamental está controladíssima, até o comentador Marques Mendes concede, e o governo não apenas reforça a convicção que vai atingir um deficit historicamente baixo como já prepara a demolição no próximo ano do recorde que promete atingir este ano. Até ao final de Agosto, pelas contas da Direcção Geral do Orçamento, o deficit foi inferior em 81 milhões de euros ao de 2015. Se for tudo igual a 2015 no resto do ano, pelo menos o limite de 3% será pacificamente cumprido.
Mas não está a ser tudo igual.
Se até ao final de Agosto de 2016 o deficit foi inferior em 81 milhões de euros ao de 2015, até ao final de Junho tinha sido 971 milhões inferior, o que significa que durante os meses de Julho e Agosto foi 890 milhões de euros, 445 milhões por mês, superior ao de 2015. A manter-se esta tendência nos quatro meses que faltam até ao fim do ano, o deficit no final de 2016 seria 1.700 milhões superior ao de 2015, ou seja, atingiria 3,9% do PIB. Suficiente para desencadear um procedimento de deficit excessivo. A manter-se a tendência destes dois últimos meses.
E há razões para acreditar que esta variação verificada em Julho e Agosto seja mesmo uma tendência?
Há. A partir de Julho reduziu-se o IVA da restauração, e a redução vai manter-se até ao fim do ano. E ocorreu a terceira reposição nos salários da função pública, à qual, a partir de Outubro, ainda vai acrescer a última. Do lado dos salários da função pública o agravamento comparativamente com o segundo trimestre vai ser permanente, para já com uma reposição, e no último trimestre até duplicará com a última reposição. Não é, portanto, uma hipótese absurda que o agravamento se mantenha até ao fim do ano.
E porque é que o deficit até ao final de Agosto de 2016 foi inferior ao de 2015?
Por causa dos calotes do governo aos fornecedores.
Em 2015, até ao fim de Agosto, o governo anterior tinha abatido desde o início do ano 500 milhões de euros na dívida vencida, ou seja, que tinha ultrapassado os prazos contratuais de pagamento aos fornecedores. Pagou mais 500 milhões do que gastou, injectando esse dinheiro na economia, não a título de benefício arbitrário para alguns amiguinhos ou privilegiados, mas de pagamentos mais do que devidos aos seus legítimos credores. Durante este ano, até ao final de Agosto, a dívida vencida já aumentou 200 milhões de euros. O governo pagou aos fornecedores menos 200 milhões do que gastou, subtraindo-os à economia. E ao deficit. Contabilizando a despesa realizada em vez dos pagamentos, ou seja, de acordo com aquilo que se designa por óptica da contabilidade nacional em vez da óptica da contabilidade pública, o deficit acumulado até ao final de Agosto deste ano não seria 81 milhões de euros mais baixo que no ano passado, mas 620 milhões, ou 0,35% do PIB, mais alto.
E o que é que isto tem a ver com a nossa história?
Não estamos a inventar mais um indicador rebuscado só porque ele serve para dizer mal do governo, e nós reconhecemos que tendemos a dizer mal do governo, mesmo que reclamemos que dizemos mal dentro da mais estrita objectividade, porque temos obrigação de desmontar a sua propaganda demagógica e expôr o que ele esconde por trás da demagogia? Tem tudo a ver porque, para efeitos dos compromissos comunitários, nomeadamente o limite de 3% no deficit público, o que conta é a óptica da contabilidade nacional, ou seja, a despesa realizada, e não a paga. Significando que, se no resto do ano correr tudo como em 2015, o deficit contabilizado na óptica da contabilidade nacional será de 3,35% do PIB, e não de 3%. Mais uma vez, suficiente para desencadear um procedimento de deficit excessivo. Já se se mantiver a tendência dos dois últimos meses, com um agravamento mensal da execução orçamental da ordem dos 445 milhões de euros face a 2015, e até abstraindo que o agravamento ainda poderá aumentar no quarto trimestre, o deficit no fim do ano será de 4,25%. Mais de 2 mil milhões de euros para lá do limite dos 3%.
Significa isto que, ou a despesa controladíssima vai passar a ser ser violentamente controlada para cortar 2 mil milhões de euros nos últimos três meses do ano, e controle violento significa que chega ao bolso das pessoas sem conseguir passar despercebido, o que é o diabo, ou para o próximo ano vamos ter de novo a rábula das sanções, não por uma ou duas décimas que podiam ser evitadas com uma carta às instituições europeias e alguns minutos de argumentação, mas por uma ultrapassagem substancial, e sem o pretexto, externo e interno, de imerecer sanções que eram por culpa do governo anterior, mas por responsabilidade própria ineludível, o que é o diabo.
E isto sem Caixas nem caixinhas, nem entrar na discussão estéril sobre se a injecção de dinheiro na Caixa deveria ou não contar para o deficit, que só interessa para efeitos de public relations na luta partidária, assunto que não nos assiste no contexto deste forum por não ser relevante para a sustentabilidade das finanças públicas e da dívida.
Ou, para atalhar razões, o diabo não chegou, ou, se chegou, anda por aí muito discreto e só à vista de quem olha para ele com atenção, porque o diabo está nos detalhes. Mas eu não me fiaria na virgem para o manter afastado para sempre.
Eu bem sei que, quando se mete a matemática ao barulho, as coisas perdem o encanto que podem ter quando são interpretadas à luz da fábula, do conto moral, ou da poesia.
Mas, num país com um PIB anual de 180 mil milhões de euros, um deficit de 2,5% do PIB ascende a 4,5 mil milhões, e um de 3% a 5,4. E a DGO publicou os números da execução orçamental de Julho, e o deficit ia em 4,98 mil milhões de euros. De modo que, para o deficit no fim do ano ficar em 2,5% do PIB, basta o governo conseguir um excedente orçamental de 480 milhões nos últimos 5 meses do ano. E para conseguir ficar abaixo dos 3%, basta não ultrapassar um deficit de 420 milhões nos últimos 5 meses.
Fica bem ao Marcelo manifestar mais uma vez a sua confiança inabalável na capacidade de o governo do António Costa, cuja relação com a matemática só é batida aos pontos pela relação com a verdade, atingir a meta orçamental de 2,5% de deficit, ou no pior dos casos ficar abaixo dos 3%, limite a partir do qual pode haver sanções comunitárias por violação do tratado orçamental. O presidente é inegavelmente um bom cristão, além de católico devoto, e a caridade é uma qualidade sem a qual ninguém é bom cristão.
Mas, depois de deixar acumular 4,98 mil milhões de euros de deficit nos primeiros sete meses do ano, nem no domínio do conto fantástico se pode acreditar que o governo tem capacidade de gestão, política e orçamental, para obter nos últimos cinco meses um excedente de pelo menos 480 milhões ou mesmo um deficit inferior a 420 milhões. Nem no dos milagres, em que nem toda a gente acredita mas o Marcelo tem legitimidade confessional para acreditar.
Posto isto, o que disse exactamente o Marcelo?
É verdade. No final do ano é que se sabe ao certo se as metas para o final do ano foram atingidas.
Também é verdade, pelos mesmo motivos.
Também é verdade. Se os indicadores de aumento da actividade económica se confirmarem, o crescimento poderá ultrapassar os 0,9% actualmente verificados. Se e só se. E, se o crescimento for inferior a 1,4%, é mais realista uma previsão entre 1% e 1,4% do que uma previsão de 1,8%, qualquer que seja o valor real atingido, por efeito puramente aritmético.
Também é verdade. Ou o crescimento do PIB vai acompanhar o dos números do emprego, ou os números do emprego não são verosímeis, o que significa, em linguagem diplomática de presidente, que estão a ser aldrabados, e o crescimento do PIB não os vai acompanhar.
Mais uma verdade. É preciso contenção orçamental, mesmo que se saiba que a reposição dos rendimentos, a redução de horários e a impossibiliadade de deixar aumentar indefinidamente as dívidas aos fornecedores são factores de expansão orçamental comparativamente com o primeiro semestre, e é preciso confirmar a sensação de que a economia pode crescer mais para verificar no fim do ano se ela cresceu mesmo mais. [E vamos deixar para outra ocasião a discussão de o terceiro trimestre poder correr normalmente melhor que os dois primeiros mas, em termos de crescimento, se comparar com o terceiro trimestre anterior, que também correu melhor que os dois primeiros anteriores, pelo que não se podem tirar conclusões do mero facto de ele correr melhor que os outros].
Tudo junto, a confiança inabalável do presidente Marcelo na capacidade de o governo atingir as metas afinal parece não mais do que um enumerar pelo comentador Marcelo de silogismos do modelo "se esta premissa se verificar, e aquela premissa se verificar, então verificar-se-á esta conclusão", sem nenhuma profissão de fé na validade das premissas que determine, por seu lado, fé nas conclusões que delas se extraem.
Ou sou eu que ando com dificuldade de interpretar textos que até me parecem relativamente simples, ou a manifestação de confiança inabalável do presidente na capacidade do governo tem mais de jogo de palavras profano do que de caridade cristã.
Mas a verdade é mesmo que o recurso à matemática, nomeadamente à lógica, tira toda a piada à coisa...
A publicação pela Direcção-Geral do Orçamento da execução orçamental do primeiro semestre de 2016 é uma boa notícia para toda a gente.
Para os que sabem distinguir que políticas públicas são amigas dos agentes económicos e estimulam o investimento, o emprego e o crescimento, e sabem ler os sinais que chegam da economia e são cada vez mais claros, e percebem que isto é um embuste, e até já conhecem alguns dos truques usados no embuste, como o atraso nos pagamentos, nos reembolsos e nas transferências, é boa notícia. Porque se, como eles estão convictos, isto é um embuste que mais tarde ou mais cedo se vai tornar impossível de continuar a dissimular, também sabem que há quem conseguiu e conseguirá de novo consertar as contas, mesmo que à custa de ainda mais sacrifícios para os portugueses e ingratidão com eles do que durante o conserto anterior. E se isto correspondesse à realidade seria ainda melhor notícia, porque apenas teriam que rever as suas noções de políticas públicas amigas da economia sem sacrifícios adicionais para os portugueses que, actualmente, classificam no domínio dos milagres.
Para os que não têm essa noção mas querem acreditar que as políticas do governo são, além de agradáveis porque lhes devolvem rendimentos e obrigam os ricos a pagar a crise em vez deles, as boas, isto é uma notícia esplêndida, que lhes oferece o conforto de confirmar aquilo em que acreditam por ser mais confortável acreditar. E puxa pelas sondagens.
E para os que sabem que isto é um embuste e participam nele também é uma boa notícia, porque lhes dá tempo de o manterem de pé até, eventualmente, conseguirem provocar uma crise política e a antecipação de eleições antes de ele ser desmascarado, e enquanto as sondagens lhes são favoráveis.
Para os portugueses em geral a notícia não é boa nem é má, porque as coisas são como são e não como são noticiadas. Se for um embuste, são eles que o vão pagar, se fosse verdade eles teriam finalmente um alívio da austeridade que lhes foi imposta quando o governo do José Sócrates gastou o dinheiro até se acabar.
Mas pode ser má, se, comulativamente, for um embuste, se o embuste contribuir para reforçar a popularidade do governo nas sondagens, e se o governo conseguir provocar aleições antecipadas enquanto as sondagens lhe são favoráveis antes de o embuste ser desmascarado pela realidade. Nesse caso, o governo poderia conseguir uma reeleição com uma maioria ainda mais sólida que a actual, que lhe permitisse voltar a governar e manter, durante mais uma legislatura, as políticas inimigas da economia, do investimento, do emprego e do crescimento. A primeira condição é mais do que certa, e a segunda também parece estar a ser. Pelo que o melhor que os que acreditam que se trata de um embuste podem fazer pelos portugueses agora não é denunciar o embuste dando a sua palavra e os seus cálculos contra os do governo. É garantir que o governo não tem qualquer oportunidade nem hipótese de se esquivar a assumir as responsabilidades pelos resultados que a governação está a obter, demitindo-se e provocando a antecipação de eleições antes de a realidade vir ao de cima e revelar o seu embuste e a sua incapacidade para formular e implementar políticas que deixem a economia crescer e proporcionar uma vida mais decente aos portugueses, que vivem dela, e não da retórica nem dos números trocados entre o governo e a oposição.
Ora parece que os partidos da oposição deixaram cedo de apostar na queda do governo e no encurtamento da legislatura, e estão cada vez mais apostados em impedir o governo de fugir antes de enfrentar os reais resultados das suas políticas, mesmo que isso custe, e vai custar, um novo mergulho na crise. Se não em unanimismo, que são partidos muito plurais, pelo menos as lideranças. O que também é uma boa notícia.
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