De Julho a Setembro, no hemisfério Norte, corre o tempo de quem gosta de sol e água. Quem, como eu, prefere sombra e vinho, passa mal, porque não escapa à fatalidade das praias, das estâncias de férias, das viagens, das comidas inabituais e dos ajuntamentos da gente que, furiosamente, se diverte - ou assim parece. Nem que, por radicalismo, teimássemos em ficar em casa, o flagelo deixaria de cair sobre nós: ou vivemos num sítio turístico e este fica inçado de gente de shorts e alpercatas, entupindo as ruas e os restaurantes, e urgindo-nos a cada momento a dar à sola; ou não vivemos e subitamente os melhores estabelecimentos fecham, os amigos desaparecem e as caras conhecidas somem - porque está tudo de férias, man, e as férias são um direito.
Suspeito que somos muitos, as marias-vão-com-as-outras que, no regresso, dão consigo a sorverem com gosto o café do costume no sítio do costume, retomam a rotina de trabalho que a necessidade lhes impõe e que imaginam detestar, dando por momentos o devido valor à aurea mediocritas que é a vida de tantos.
Por mim, escapa-me o propósito de as pessoas se esparramarem durante horas ao sol, untadas, por medo que tal prática lhes aumente o risco de cancros na pele, de unguentos pegajosos, e refractários à fatalidade de que o bronze penosamente adquirido não sobreviverá dois meses; e suspeito que os banhos de mar, excepto para quem tenha camadas adiposas possivelmente deletérias para a saúde, são uma contrariedade, por as águas estarem uma frialdade, e já não haver sequer a desculpa, na qual Ramalho, Eça, os ingleses, e tanto médico ignorante e presunçoso, acreditaram, de os banhos gelados fazerem bem à saúde.
Salvo numa pequena porção do Algarve, e num ou noutro lugar mais distante ainda, e onde só se chega ou aturdido pela viagem de automóvel ou mortificado pela tortura dos vagões de gado que são os aviões modernos, completos com um processamento que, excepto pelos procedimentos de segurança, por causa do risco de atentados, se diria reservado a ovinos:
O mar é frio.
O mar é frio, a areia introduz-se, insidiosamente se a costa for a do Sul e descaradamente se for a do Oeste e a nortada soprar, onde não deve, o café é caro e mau, o serviço rasca e o toldo miserável ao preço, por metro quadrado, de um flat em Manhattan - realmente o sortilégio da praia é um mistério.
Há outros destinos. Pode-se por exemplo ir, como eu fui, à Dinamarca, por uns dias, e visitar Kolding ou a capital - mas sob um calor de ananases, que naquela maré fresco, fresco, estava no Porto. Isto, hoje em dia, não é só nas instituições que não se pode confiar, o clima, desde que os cientistas se meteram a interpretá-lo, prega-nos partidas soezes.
A verdade é que, por todo o lado, o turista polui tudo - a autenticidade dos modos de vida, as ementas dos restaurantes, as lojas de recuerdos dos museus, os bairros typical, até mesmo as praias. E isto decorre dessa estranha transumância moderna que, sobretudo em Julho e Agosto, faz com que hordas de vikings desertem do Norte para o Sul da Europa, à procura do sol, da água e da boa cozinha, enquanto no Sul se foge do interior para a costa e daqui para ali porque, realmente, a felicidade está, duas ou três semanas por ano, longe do nosso habitat - procura que, por excessiva, anula a possibilidade de a encontrar.
Hoje o regresso. Creio que o sorriso discreto que se via nas caras agora passageiramente morenas dos que fazem a viagem de volta não é de expectativa - é de alívio.
Estive voluntariamente sem notícias durante oito dias - os ventos da maresia não são incompatíveis com os da patetice mas, em férias, costumo poupar-me aos segundos.
De regresso, passo distraidamente os olhos numa e noutra publicação e tropeço, salvo seja, numa quantidade de baldes de água gelada que pessoas de representação, e outras nem tanto, despejam pela cabeça abaixo, com o meritório propósito de chamar a atenção para uma doença assustadora. Se a prática garantisse abundantes doações para a investigação científica da esclerose lateral amiotrófica, seria o caso de dizer que Deus escreve direito por linhas tortas. Mas as modas e as causas pop têm isto que as define: são efémeras. A doença não.
Quando era pequeno e ingénuo acreditei piamente que o lobo mau comeu efectivamente a avozinha e este trágico passo não me afligiu sobremaneira, mesmo antes de saber que, perto do fim da história, a avó era extraída, de perfeita saúde, do ventre da fera. Já crescidinho e cínico, toda a trama se me afigurou pouco plausível, excepto se em sentido figurado, caso em que o lobo mau se revelava um grande benemérito, amigo afinal das avós com vidas sexuais pouco satisfatórias. Pois o Capuchinho Vermelho, o Pinóquio, A Lebre e a Tartaruga, A Gata Borralheira, todas as outras histórias que povoaram os sonhos de gerações sucessivas de milhões de crianças, estão sob exame, não vão causar traumas duradoiros aos pobres querubins: "People must not blindly accept that classic moral stories are educationally beneficial simply because of their long history of use. Empirical studies are needed to ascertain their true educational value”, diz o autor. E eu, com a mesma desconfiança que, na Branca de Neve, me leva hoje a suspeitar de qual seria o verdadeiro papel dos sete anões no relacionamento com a princesa, fico a pensar que este maganão quer é fundos para further studies.
Finalmente, uma associação que se apresenta como de defesa dos consumidores vem dizer que há quadrilhas de ladrões que assaltam periodicamente cidadãos indefesos e distraídos e recomenda não os rigores do Código Penal mas sim que as vítimas possam pedir aos assaltantes, gratuitamente, que estes os informem se planeiam malfeitorias. É óbvio para qualquer pessoa de senso, mas não para a DECO, que se os bancos não querem, por qualquer razão, a conta de um cliente, não têm mais do que notificá-lo de que a vão encerrar, marcando um prazo para levantamento do saldo disponível, se o houver. E o Banco de Portugal o que tem a fazer não é regulamentar a trafulhice - é proibi-la.
Sabe bem regressar a casa e à normalidade.
(*)
O nome não é muito inspirador - Café Correia - mas merece a visita: tem lulas, peixes, mariscos e pratos de carne para quem, mesmo de férias e perto do mar, não dispensa o massacre dos seres sencientes e indefesos com os quais partilhamos a parte sólida do planeta.
Da parte marinha (da terrestre ignoro, para já) o cozinheiro sabe superiormente o que faz, que declina em guisados, massas e múltiplos arrozes - que quase sempre são, infelizmente, para um mínimo de duas pessoas.
Fica para lá do Sol-posto, em Vila do Bispo, caminho de Sagres, quase a chegar ao fim da terra e do turismo.
Na travessia de Lagos, o viajante pode, à guisa de aperitivo, ir comendo com os olhos as arrojadas esculturas que enriquecem as rotundas, das quais existem quase tantas como cruzamentos; e, nos 25 km que ainda faltam, o princípio da rotunda como elemento disciplinador do trânsito e símbolo das conquistas do Poder Local atinge o seu esplendor, dado que, em se tendo uma boa preparação atlética, quase se poderia cobrir a distância saltando de umas para outras.
No fim da refeição, o cozinheiro vem inquirir pelas mesas da opinião dos comensais. E, face aos cumprimentos, murmura: "Lá calhou!".
É como as esculturas e as rotundas e o Poder Local: foi o que nos calhou.
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* Explicação oficial:
"Monumento Diálogo, Liberdade e Democracia
Da autoria de Vera Gonçalves, foi inaugurado em 1999, no âmbito das comemorações do 25 de Abril. O conjunto dos elementos Terra, Homem, Diálogo, e Luz, representados por um círculo de cadeiras luminosas, sobre uma calote esférica feita de pequenas pedras azuis, constituem um monumento ao diálogo, aos 25 anos de vida democrática em Portugal, e aos 25 anos do 25 de Abril. Situado na Avenida da República."
A Comidinha foi ontem. Tomorrow (hoje) another day, another boy - como diziam as adolescentes inglesas, no tempo da Velha Senhora, aos Tugas engatatões, de férias na Meca do Algarve.
E hoje foi um tasco, bancos corridos, papel a servir de toalha, talheres a segurar enquanto trocam os pratos, ai que típico, a decoração onde sobressaem as pinturezas do dono, que não têm nem a desculpa de serem naïf; a ementa também sempre a mesma, puída pelo uso: um vinho reles, de garrafão - diz que o povo gosta; uma canja de conquilhas, com areia; polvo assado, saboroso mas duro, nada de galeguices; depois o pernil, diz quem provou que estava bom; uma sopa de feijão feita com o osso do presunto, com o correspondente arrière-goût de ranço. À sobremesa uns biscoitos bem feitos e uns bolinhos de figo, fortes e decentes, com acompanhamento de um horrível bagaço, a fingir de medronho, e um vinho abafado que o devia ter sido de vez, à nascença.
35€ por cabeça é o preço da receita. Parece que a farmácia tem muitos clientes. Este diz - até nunca, Vila Lisa ou lá o que é.
Só se lá vai de GPS.
O percurso que a máquina escolhe é labiríntico e saudosista: passa-se por uma Avenida da Filarmónica 1º de Maio, entra-se numa zona de inspiração arquitectónica cabo-verdiana, os moços encostados às esquinas parecem ter roubado os telemóveis.
É então que se chega à Praça do Poder Local. Estranhamente, não há vestígios de bandeiras vermelhas, talvez só nos dias de festa. Há, porém, um jardim com palmeiras muito altas, que fazem um rumorejar lá em cima - Lagos é muito perto de África.
O dono é, ao primeiro embate, antipático. Conhecendo-o melhor, percebe-se que sabe o que é comer bem, e confiando-lhe a escolha do vinho não só acerta como não mete a unha.
A lista é imensa e pode dar ataques de ansiedade tanto a cidadãos prevenidos que têm a mania que são gastrónomos como a vulgares glutões, por via das hesitações.
Nas mesas, demasiado juntas num espaço exíguo, alguns estrangeiros e famílias de, parece-me, turistas habitués.
É como eu: em estando por aqui, não dispenso a visita. E se aqueles senhores de barbas cuidadas e aspecto meio intelectual forem comunistas - que Deus os abençoe.
Agora que as minhas férias estão a acabar, suspeito que estou em numerosa companhia quando o digo com um acanhado suspiro de alívio. Que milhões de cidadãos se estendam na areia debaixo de um sol inclemente, a frigir durante horas para terem sensações de queimadura apesar de borrados com unguentos pegajosos, desafia o entendimento; e que para isso façam longas viagens de automóvel no meio de um movimento infernal, parando em áreas de serviço onde ele é reles e os preços anormais; ou, pior, que se sujeitem a ser tratados como gado em aeroportos para chegar a um destino onde se come lixo exótico nos intervalos do estorricanço - só se explica como um ecuménico delírio colectivo.
Há, é claro, outras férias: ir ver monumentos célebres, países distantes, museus famosos. A prova de que tais destinos não se recomendam é que estão inçados de turistas. E eles tiram, furiosamente, fotografias. E como todo o lugar que vale a pena está abundante e superiormente documentado, o papel das fotografias é o de um certificado: estive lá, vi isto e aquilo, ai que bom que foi. Toma lá visitante, que nas noites de Inverno vou-te atazanar a paciência com o álbum e, pior, o filme das últimas férias em Bali.
Mesmo o cidadão pacato que tome as suas disposições para se pôr ao abrigo das contrariedades, fugindo do circuito normal, indo para sítios onde os turistas não enxameiam, tomando precauções quanto às instalações e passadio no destino, descobre que outros tiveram a mesma ideia; e o restaurante justamente conhecido pela sua qualidade tem, mesmo que a mantenha, o que não é certo, mesas esgotadas a horas decentes; além do que a minoria dos maduros a querer férias civilizadas é demasiado numerosa, por causa da concentração nos três meses de Verão.
Os trabalhadores conquistaram o direito a férias. Óptimo. Falta ainda que conquistem o direito a ter férias quando os outros trabalham. Como isso se fará, ignoro; que já não faço pouco em saber o que não convém.
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