Quinta-feira, 30 de Maio de 2019

Feios, porcos e maus - ao menos que se lhes exijam responsabilidades

2018-05-03 Feios porcos e maus, veneno de ratos.jp

A história conta-se em poucas palavras. Aos 22 anos V. filmou-se, ou deixou-se filmar, a ter relações sexuais. Depois casou e empregou-se, seguiu a vida. Aos 27 o filme apareceu nas redes sociais, talvez colocado pelo co-protagonista? e foi descoberto e começou a ser circulado pelos colegas da empresa, que cuidavam de apontar "é aquela ali". Ela assustou-se mas o mundo continuou a andar à roda (eu sou heliocentrista e tenho a convicção por razões da ciência da Mecânica que a Terra anda à roda num movimento de rotação sobre o eixo e não é o resto do universo que todos os dias anda à roda dela), até a cunhada, que também trabalhava na empresa, o ter visto e o ter ido mostrar ao irmão, o marido de V.. E V., com vergonha, suicidou-se.

Vamos não discutir se o facto de ainda haver gente com vergonha em pleno século XXI é uma excentricidade, porque a pior das pessoas com vergonha é melhor do que a melhor das que não a têm.

Que papel tiveram na morte dela o autor da publicação original do filme nas redes sociais e todos os que, por maldade ou galhofa, o fizeram divulgar até ele chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: mataram-na sem a bala ter saído da arma que todos lhe apontaram para a matar.

O que merecem?

[Aqui abro um parêntesis para opinar sobre justiça.

Não há ninguém mais exigente do que eu de rigor na prova para considerar legítimo condenar um criminoso. Lamento muito dizê-lo mas, apesar de estar convicto e sem a mais pequena sombra de dúvida que o ex-primeiro ministro socialista José Sócrates é um criminoso e de desejar a sua punição tanto quanto qualquer outra pessoa que considere a corrupção merecedora de condenação, necessito de informação muito mais sólida do que consegui ver publicada em todas as notícias  publicadas pela comunicação social sobre o processo ao longo dos anos para me convencer que há provas suficientemente sólidas para o condenar. E sem provas prefiro que ele seja solto a que seja condenado para satisfazer o alarido da multidão e limpar uma imagem que a justiça acumulou ao longo de décadas, talvez com alguma justiça, de ser tolerante com os poderosos. E tenho até noção que há crimes quase impossíveis de provar com solidez, nomeadamente os que são cometidos em privado e que só são testemunhados pela vítima e o criminoso, como grande parte dos crimes sexuais e de violência doméstica, e que esta posição de princípio de algum modo pode dificultar ou mesmo impedir a aplicação de justiça nalguns desses crimes, mas é o meu princípio e não é daqueles que estou disponível para substituir se tiverem outros melhores. É pior punir um inocente do que deixar partir um criminoso, e não é apenas por ser injusto para o injustamente punido, é mesmo por, sinalizando que inocentes podem ser punidos em vez deles, a justiça incentivar os criminosos.

Já relativamente à graduação das penas sou mais medievo. O princípio "olho por olho, dente por dente" não é injusto, é justo. Não é justo cortar a mão a um ladrão, mas não é injusto cortá-la a quem cortou a mão a outro. Sou muito céptico relativamente à pena de morte mas não é por não considerar que determinado tipo de criminosos não a merece, mas pelo risco do erro judicial que qualquer cedência no princípio da exigência da prova torna possível. De resto, qualquer pena é irreperável. A de morte por motivos óbvios (eu também não acredito na ressurreição), mas qualquer dia encarcerado numa cela à espera de ser ouvido por um juiz ou qualquer dia de prisão preventiva à espera do julgamento e de uma possível condenação são irrecuperáveis como dias em liberdade, às vítimas ninguém os tira.]

Merecem, portanto, um processo justo em que se apure com todo o rigor se fizeram alguma coisa que tenha contribuido efectivamente para a morte de V., como partilhar o filme nas redes sociais, mostrá-lo aos colegas e amigos, deixá-la perceber que faziam do filme motivo de galhofa, fazê-lo chegar aonde, ao ter chegado, a induziu ao suicídio. Uns por dolo, outros por negligência, todos por cretinice. A gentleman never tells, e estes cretinos não passaram de filhos da puta.

E, se fizeram, merecem ser responsabilizados pela morte dela e, na impossibilidade de fazer justiça recorrendo a uma bomba de neutrões que os levasse todos para lhe fazerem companhia, como mereciam, é da mais elementar justiça serem condenados a penas de prisão, é ainda mais justo se foram internados na ala dos sodomitas, e realmente justo seria internarem-nos lá, filmarem-nos a serem sodomizados e publicarem os filmes nas redes sociais. Olho por olho, dente por dente. Mas levá-los a julgamento por terem partilhado o filme em vez de os deixar sair sem um arranhão depois de a terem matado de vergonha já não será muito mau, e está ao alcance da justiça e do enquadramento legal que lhe determina as competências.

Esta situação [divulgação de um filme privado que os participantes quereriam manter privado] tem alguma coisa em comum com com uma praga que nos últimos anos entrou a pés juntos no debate público, a divulgação de notícias falsas nas redes sociais para incutir opiniões e, em determinados casos, encorajar à acção quem as toma por verdadeiras. Que é o facto de quem o faz, ou quem defende que quem o faz não deva ser penalizado por fazê-lo, não estar a fazer mais do que dispôr da sua liberdade de expressão do modo que bem entende, divulgando mentiras ou o filme pornográfico da colega de trabalho, e a liberdade de expressão dever ser inalienável.

A liberdade de expressão é, se me perguntarem a minha opinião, inalienável.

Posto isto, que a divulgação de informações íntimas pode provocar danos graves às vítimas da devassa ficou mais do que provado no suicídio de V., e não seria sequer preciso um fim tão trágico para haver danos, qualquer pedido de divórcio, crise conjugal, arrufo ou até um não te convido para a minha festa em querendo ela ir à festa dele poderiam ser danos originados pela brincadeira, mesmo que fosse apenas parva e não mal intencionada.

A divulgação de notícias falsas também tem, e a de notícias que insinuam comportamentos tão censuráveis ou perigosos de grupos de cidadãos que pode encorajar outros a reagir contra eles, eventualmente de modo agressivo, pode ter consequências tão trágicas como, ou muito mais trágicas do que, o suicídio de V..

Tem havido atentados terroristas cometidos por gente, normalmente com pouca capacidade de discernimento e alguma predisposição para a violência, e há sempre gente assim em todo o lado, que foi radicalizada nas redes sociais através de notícias falsas que lhes incutiram a convicção que enfrentam ameaças graves, às vezes a convicção que estão no meio de uma guerra de civilizações de que os mais apáticos ou distraídos não se conseguem aperceber mas que eles e quem os informa sabem que está em curso, e que é vital reagir com determinação e urgência a essas ameaças para salvar alguém, eventualmente salvar a civilização.

Não sei o que é que os clérigos das mesquitas onde são radicalizados os novos terroristas islâmicos, os da vaga anterior eram filhos de família oriundos das teocracias do petróleo que viajavam em primeira classe ou de jacto privado, lhes dizem, que histórias lhes contam, como conseguem convencê-los que as pessoas que lhes propõem ou eles se predispõem a matar indiscriminadamente são uma ameaça que merece ser debelada, nem estou muito interessado em saber, mas certamente terão capacidade de os convencer com factos que elas merecem o destino que tiverem. Até porque não frequento mesquitas.

Não sei de que se convenciam uns aos outros os terroristas de extrema-esquerda de há umas décadas atrás, mas também passaria certamente por pintar as vítimas como a tal nível desumanas que era melhor eliminá-las do que não o fazer, mesmo que fossem bebés de colo que um dia poderiam crescer para se tornarem fascistas ou capitalistas. Até porque não frequentava círculos de activismo da extrema-esquerda nessas décadas.

Mas sei de alguns casos recentes de radicalização de terroristas a partir de pessoas normais através de notícias falsas devidamente enquadradas por interpretações sugeridas que os levam à conclusão que só mesmo a passagem à acção directa pode salvar alguém ou o mundo das ameaças que os convencem que são graves e iminentes. Até porque frequento as redes sociais e vejo circular notícias como as que os radicalizam. E até tenho deixado por aqui e por aqui algumas reflexões e preocupações sobre o fenómeno da disseminação de notícias falsas.

Alguns casos de radicalização chegam a ser cómicos, pelo menos para quem se consegue abstrair da tragédia em que podem terminar. Como o do pacato pai de família que a frequência de redes sociais da alt-right convenceu que a cave da pizzeria Comet Ping Pong em Washington era usada para encarcerar crianças por uma rede de pedofilia gerida por Hillary Clinton, o género de "história que os mainstream media escondem pelo que não vale a pena tentar confirmá-la nas notícias", e decidiu libertá-las, viajando 6 horas até Washington e entrando na pizzeria a disparar uma arma automática, para os entendidos uma AR-15, para os leigos uma espécie de G-3, felizmente sem ter atingido ninguém. Depois de se render pacificamente explicou que se tinha rendido por ter verificado que afinal não havia lá crianças presas. Exceptuando a descomunal falta de bom-senso requerida para alguém acreditar que era possível a secretária de Estado do governo americano dirigir uma rede de pedofilia e a facilidade assustadora de se deixar sugestionar ao extremo de criar uma convicção tão sólida sobre a autenticidade da situação imaginária que só a acção directa a poderia resolver, o autor do atentado podia até ser um pai de família decente que agiu na melhor das intenções acreditando estar a salvar crianças de um inferno. Mas transformou-se num terrorista, e podia ter feito inúmeras vítimas. E acabou condenado numa daquelas penas que nos EUA são para fazer doer. Deu cabo da vida dele, e da da família.

E que papel tiveram no atentado cometido por um cidadão que até nem tinha perfil de criminoso o autor da publicação original da notícia falsa nas redes sociais e todos os que a fizeram circular sustentada por argumentos que a faziam parecer sólida e à prova de dúvidas até ela chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: cometeram-no sem as balas terem saído da arma que todos apontaram para o cometer.

E que legitimidade tinham eles para inventar e divulgar uma notícia falsa que fazia acreditar a quem a tomasse por verdadeira que no local do atentado havia vítimas que era necessário libertar? Toda. Todos, exercendo a sua liberdade de expressão, tinham legitimidade para divulgar a notícia falsa, acreditando nela ou não.

E como lidar então com as consequências que podem eventualmente resultar do acolhimento como credível de uma notícia falsa que os autores devem ter a liberdade de divulgar sem colocar em causa a liberdade de expressão? Responsabilizando-os pelas consequências.

Como o tribunal espanhol vai avaliar que papel e que responsabilidade tiveram os colegas de trabalho de V. na sua morte, e que punição criminal eventualmente poderá ser apropriada para os confrontar com essa responsabilidade, quem coloca no exercício da sua liberdade de expressão notícias falsas a circular também deve ser responsabilizável se elas eventualmente tiverem consequências más.

Liberdade e responsabilidade são dois conceitos sem os quais não queremos ser forçados a viver, mas que só têm sentido quando usados em conjunto. Um sem o outro é caminho certo para o disparate.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 10:29
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Segunda-feira, 5 de Novembro de 2018

Clonagem do boato

2018-11-05 O boato é a arma da reacção.jpg

O Blasfémias, um dos melhores blogues portugueses, abriu uma secção Alt-Right com uma linguagem panfletária e uma relação aberta com os factos que não é habitual nos outros participantes do blogue.

Um dos artigos publicados recentemente a propósito das eleições brasileiras continha a frase "...Endeusaram Haddad, um bandido com mais de 100 processos judiciais activos por corrupção e branqueamento de capitais..." que me suscitou, mais pela quantidade do que pela qualidade, alguma curiosidade. Curiosidade neste contexto significa duvidar da veracidade de alguma coisa que pareça boa demais para ser verdade ao seu público alvo, entenda-se, e provavelmente má demais para ser verdade a outros públicos adversos a este.

De modo que encetei um diálogo com a autora do artigo para a questionar sobre a veracidade desta estatística, perguntando-lhe se era capaz de enumerar os mais de 100 processos a que se tinha referido.

Ela simpaticamente disponibilizou-me um link para o resultado de uma pesquisa pelo nome "Fernando Haddad" no Portal de Serviços do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que de facto devolve uma lista de 118 processos.

Mas depois de dar uma vista de olhos pela lista verifiquei que, além de Fernando Haddad, que é o nome completo do candidato às eleições presidenciais do Brasil citado no artigo do blogue, também continha processos relativos a outros nomes como Rui Fernando Haddad, Fernando Nami Haddad, Luiz Fernando Haddad, Fernando Bittencourt Haddad, Antonio Fernando Haddad Marques, Fernando Haddad Garcia, Fernando Azzi Haddad, Fernando Paro Haddad, Jose Fernando Cherubini Haddad, Fernando Haddad Favero, José Fernando Haddad, Jose Fernando Haddad Ferreira, Fernando Antonio Haddad, Fernando Jorge Haddad, Fernando Ferreira Addad, Fernando Luiz Haddad e Fernando Haddad de Lima.

O motivo é simples, e não é preciso ter ensinado Bases de Dados numa universidade no milénio passado para o compreender. A pesquisa por "Fernando Haddad" devolve todos os registos que contêm "Fernando Haddad" no campo pesquisado, e não apenas os que contêm apenas "Fernando Haddad". Neste caso até se dá o caso de ser possível pesquisar no portal os processos que referem apenas Fernando Haddad, assinalando a opção de pesquisa "Pesquisar por nome completo", e o resultado fica limitado a 28 processos.

Chamei à autora a atenção para este facto  e ela prontificou-se a corrigir o erro factual no artigo.

E também me explicou onde é que tinha recolhido a informação sobre os mais de 100 processos do Fernando Haddad e o modo de os enumerar através da pesquisa no portal do tribunal: num vídeo disponível no Youtube.

 

 

Neste vídeo, publicado no dia 12 de Outubro entre as duas voltas da eleição presidencial brasileira em formato de aula, ou webminar, está a começar o Web Summit e temos de aprender esta novilíngua, o autor esclarece os alunos sobre a quantidade e qualidade dos processos judiciais sobre o candidato Fernando Haddad, interroga inclusivamente a sua motivação para concorrer a eleições que lhe poderiam conferir imunidade judicial se as ganhasse, sugere consultas no Google para perceberem melhor a tipificação dos crimes de que ele é indiciado e para recolherem informação em notícias de jornal sobre os casos específicos que originaram os processos, em resumo, ensina-os a fazer activismo nas redes sociais subordinado ao tema "Haddad criminoso".

E mostra detalhadamente o modo de acesso ao portal do tribunal e de lançamento da pesquisa, sem sequer se esquecer de lembrar os alunos de escreverem "Haddad" com dois "dd". No minuto 2:46 diz furtivamente que também podem assinalar a opção "Pesquisar por nome completo", se quiserem, sem se deter a explicar em que medida esta opção altera os resultados, e continua a aula, podendo os alunos mais atentos ter reparado que ele assinalou a opção, e aos mais distraídos ela ter-lhes entrado por um ouvido e saído pelo outro.

A ligeireza do tratamento da questão do nome pode ter sido uma falha pedagógica, se o professor pretendia esclarecer os alunos sobre a sua importância e não foi capaz, ou um caso de pedagogia da falha, se pretendia mesmo que os alunos não se apercebessem do que estava em causa para posteriormente não virem a ter o cuidado de ser rigorosos na aplicação prática dos princípios ensinados, ou seja, que propagassem boatos mesmo sem dar por isso.

A verdade é que houve alunos que não tiveram e, por não terem tido, divulgaram um boato em vez da notícia que pretendiam divulgar. Também o podem ter divulgado tendo a noção que pecava por exagero relativamente à base factual, mas é matéria sobre a qual não vale a pena especular por só cada um deles saber a verdade.

Pelo que desto caso se podem tirar duas conclusões:

  • Há activistas que se dão ao trabalho de preparar materiais pedagógicos para apoiar outros activistas a passar a mesma mensagem com os mesmos argumentos e os mesmos fundamentos, num processo de clonagem do activismo político.
  • Entre esses activistas há-os que são insuficientemente claros na pedagogia a que recorrem e desse modo estimulam a propagação de boatos que reforçam a mensagem que pretendem divulgar e fazer divulgar, transformando este processo num de clonagem do boato.
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publicado por Manuel Vilarinho Pires às 17:29
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Sexta-feira, 26 de Outubro de 2018

A incrível e triste história de Catarina Martins e do seu Patek Philippe desalmado

Desde que comecei a frequentar as redes sociais tenho-me dedicado esforçadamente ao combate aos boatos, porque tenho a convicção absoluta que quem faz política ou passa mensagens à custa de boatos é pura e simplesmente escroque, quaisquer que sejam as ideologias que defende ou lutas políticas que apoia.

No início os boatos enquadravam-se maioritariamente em dois tipos:

  • Boatos a difamar o sistema democrático português, como por exemplo o da cantina da Assembleia da República que serve refeições de luxo a preços económicos, que chegou a dar origem a uma rábula dos "jornalistas" Hernani Carvalho e Júlia Pinheiro no programa da SIC Querida Júlia, ou falsas citações de personalidades respeitadas como o professor Adriano Moreira ou o actor Ruy de Carvalho a acusar os políticos portugueses de indignidades várias, ou uma série de quadros que sugeriam que um deputado ganhava tanto como centenas de professores somados;
  • Boatos a difamar políticos de direita, como por exemplo o falso Cartão de Informador da PIDE do presidente, e nessa altura re-candidato às eleições presidenciais de 2011, Cavaco Silva, que aliás resultou de algum trabalho relativamente profissional pela campanha do candidato Manuel Alegre às mesmas eleições, em que concorreu apoiado pelo PS e pelo BE, que se deu ao trabalho de ir à Torre do Tombo copiar a ficha do presidente na PIDE, ou fotomontagens que juntam o professor Marcello Caetano e o candidato às eleições presidenciais de 2016 Marcelo Rebelo de Sousa com recurso a retratos tirados com décadas de separação entre eles, ou inúmeros sobre a vida pessoal e familiar do então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

Eu combatia-os deixando comentários a desmenti-los onde os via publicados, e os desmentidos eram, com raríssimas excepções, rejeitados pelos autores das publicações como meras defesas sectárias dos malfeitores alvo dos boatos, fossem os deputados que nos roubam, fossem políticos de direita que tiravam dinheiro aos pobres para o entregar aos banqueiros, ou sujeitos ao desafio de provar o desmentido por parte de quem, assimetricamente, não se tinha dado nem estava disposto a dar ao trabalho de provar as insinuações que partilhava. Era um esforço relativamente inglório mas de dimensão exequível, atendendo à frequência com que esses boatos eram partilhados.

Principalmente desde a vitória do presidente Trump nas eleições americanas apareceu um novo tipo de boatos com uma temática e uma frequência e intensidade diferentes: boatos sobre políticos de esquerda, alguns do mais puro delírio, como o que insinuava ao presidente Barak Obama e à secretária de estado e depois candidata a sucessora Hillary Clinton a gestão de uma rede de pedofilia que operava a partir de uma pizzeria em Manhattan, que deu origem a um atentado de um cidadão que, convencido da veracidade, decidiu fazer justiça por suas próprias mãos, boatos sobre refugiados muçulmanos acolhidos na Europa que lhes atribuem desde violações em massa em massa em países como a Alemanha, à instauração do estado de sítio e mesmo de guerra civil em países como a Suécia, à organização de manifestações de refugiados para exigir a instauração da Sharia nestes paises e noutros, ou insinuações que políticos de esquerda promovem iniciativas legislativas delirantes, como legalizar a pedofilia, no âmbito da "ideologia do género". Mas desta vez em volumes impossíveis de identificar e desmentir em proporções significativas. Com a chegada dos alt-media da alt-right o boato nas redes sociais transformou-se de artesanal em industrial e o combate artesanal aos boatos deixou de ter a pouca eficácia que tinha antes.

O combate à base do desmentido individual, com comentários como confirmou essa notícia em sites de jornais?, tem a certeza que a pessoa na fotografia disse mesmo o que a legenda insinua?, tornou-se insuficientemente produtivo para sequer fazer qualquer diferença na torrente de boatos que passaram a aparecer diariamente, até porque os desmentidos continuaram a ser recebidos pelos divulgadores dos boatos com o mesmo tipo de acolhimento que tinham antes com um argumentário adaptado a esta nova circunstância, com a insinuação de estar a fazer o jogo da esquerda, ou do islamismo, ou dos pedófilos, ou o desafio a provar que o boato era mentira.

É, aliás, assunto que tenho discutido frequentemente com amigos igualmente críticos do ambiente de boato permanente em que se têm transformado as redes sociais, na procura de sugestões de metodologias de abordagem do problema mais produtivas, algo infrutífera por não ser fácil estancar a corrente com a intensidade que tem.

A fábrica de boatos vai-se adaptando à actualidade política, essencialmente quando há processos em que participam políticos populistas de direita que são sempre apoiados por ela, e nas últimas semanas dedicou-se ao lançamento de boatos sobre o candidato da esquerda à segunta volta das eleições residenciais brasileiras Fernando Haddad.

E mais um dos que apareceu nesta última vaga mostra uma montagem fotográfica com retratos dos dois candidatos que sugere que Jair Bolsonaro usa um relógio Casio de poucas dezenas de euros, que usa realmente e no Brasil esses modelos até são designados por Casio Bolsonaro, e Fernando Haddad usa um relógio Patek Philippe cronógrafo de calendário perpétuo que custa cerca de cem mil euros. É uma tontice acreditar que Fernando Haddad use um relógio desse valor, mas achei que valia a pena desmenti-lo. E para o desmentir dediquei algum tempo a pesquisar fotografias do candidato em que o relógio fosse minimamente visível, tendo depois ampliado que encontrei com melhor definição até conseguir, pela mancha do logotipo, identificar a marca e o modelo do relógio, um Longines cujo custo ronta os dois mil euros.

2018-10-12 Fernando Haddad Longines.jpg

E qual foi a utilidade do tempo gasto a fazer isto, não menos de uma hora? Nenhuma. A quem disse que o relógio não era um Patek Philippe respondeu com um desafio de provar o desmentido, a quem mostrei que era um Longines respondeu com o desafio de provar que era o mesmo relógio.

De modo que decidi experimentar uma abordagem menos convencional com a esperança de ser mais convincente:

  • Desenvolver um boato dirigido ao público a quem o boato do Patek Philippe do Haddad era dirigido, o internauta de direita que tem esperança que os politicos da esquerda sejam corruptos e, por isso, está mais aberto a acreditar em publicações que "provem" como são corruptos, que exemplifique os mecanismos da construção de insinuações em boatos que o conseguem enganar, mas ao mesmo seja tão incrível que se torne ridículo acreditar nele, de modo a mostrar-lhes com um exemplo como estão expostos a acreditar em boatos.

As características essenciais do boato forjado eram a inverosimilhança extrema e o público alvo.

Sendo o público alvo de direita com propensão para acreditar em boatos sobre políticos de esquerda era essencial que o político vítima do meu boato fosse de esquerda. Se a vítima fosse de direita o público de direita tenderia a pensar que este era um boato inventado pela esquerda para difamar políticos de direita e desse modo vingar as histórias verdadeiras que circulam sobre políticos de esquerda, e apenas reforçar a sua convicção que estes boatos são mesmo reais.

Dentro da esquerda era essencial escolher uma vítima que o público gostasse de acreditar que seja hipócrita e corrupta mesmo sem mostrar grandes indícios que confirmem a parte da corrupção, o que tornaria o boato mais apelativo por lhes oferecer esses indícios. Os bloquistas por, por um lado, serem praticantes permanentes da política de casos em que difamam políticos de direita através de insinuações e da encenação dessas insinuações no palco político e até no parlamento, como fizeram repetidamente ao longo da legislatura anterior com o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e, por outro, assumirem sistematicamente uma posição de superioridade moral sobre os políticos de direita, e até sobre os de esquerda mais próximos do arco da governação, eram o tema ideal para este boato. Daí a escolha da deputada Catarina Martins.

Depois era necessário arranjar uma história incrível, tão incrível que mesmo os que gostassem de acreditar nela acabariam por não acreditar. A condição de bloquista ajudava na inverosimilhança, não por os bloquistas serem necessariamente mais honestos que outros políticos de esquerda do arco da governação, mas porque não ocupam posições executivas em que tenham acesso a grandes desvios de fundos que possibilitam o enriquecimento de políticos desonestos. A inverosimilhança foi então baseada em mostrar um bem de valor completamente fora do alcance da vítima do boato. No caso de Catarina Martins, um relógio de luxo com o preço de mais de 20 milhões de euros. Atendendo a que cerca de 20 milhões de euros é o que se estima que um primeiro-ministro alegadamente corrupto alegadamente conseguiu desviar em proveito pessoal ao longo de duas legislaturas em que governou um país, fica completamente fora do alcance de alguém que na política nunca teve qualquer função executiva, mesmo que fosse alguém extraordinariamente corrupto. Uma impossibilidade. Para ajudar a inverosimilhança ainda deixei um erro no comentário ao escrever que é um relógio marca Worldtimer, que não é a marca nem o modelo do relógio mas a firma do comerciante que publicou o anúncio de venda online. Escolhi o relógio para o boato com base no preço, era o mais caro do site, e o anúncio é mesmo real.

2018-10-12 Catarina Martins Patek do Facebook.jpg_

Quando publiquei a imagem sem o aviso no dia 12 de Outubro de manhã percebi que começou a ser partilhada por pessoas que conheço e estimo, e que a inverosimilhança lhes passava ao lado. De modo que lhes deixei comentários a avisar que era uma imagem falsa nas partilhas que elas tinham feito, e acrescentei o comentário de aviso na imagem original talvez uma hora depois de a publicar sem aviso. Deste modo, o comentário completo com o aviso passou para todas as partilhas da imagem, mesmo as que tinham sido feitas antes de o completar.

  • "[Esta notícia é, obviamente, FALSA, e destina-se a chamar a atenção para a facilidade de enganar pessoas insinuando, através de comentários ou símbolos gráficos como setas, associações entre imagens que pura e simplesmente não existem. Espero que contribua para todos serem mais atentos e críticos quando têm a tentação de acreditar em algo em que gostariam de acreditar, e para deixarem de ser tão crédulos nos boatos que circulam todos os dias nas redes sociais para os enganar.]
    Diz que defende os pobres e usa um relógio Worldtimer de milhões de euros.
    #NãoNosCalamos"

Três dias depois fui avisado por um amigo que a imagem estava partilhada no site de combate ideológico Direita Política como se fosse autêntica acompanhada de um texto assinado por Regina Cunha. Não dei autorização a ninguém para utilizar a imagem, nem me foi pedida, nem sei se é habitual esta deferência ética, nem conheço a autora, nem nas redes sociais, nem faço ideia sobre se a sua identidade é verdadeira ou falsa. O estilo literário, de que me permito transcrever o primeiro parágrafo, é relativamente comum naquela área de combate ideológico e já me cruzei nas redes sociais com quem pratica estilos semelhantes, até na colocação criativa das vírgulas. Mas não faço ideia de quem se trate.

  • "O que mais me enoja, me dá asco, repulsa é a falsa superioridade moral com que a Esquerda se exibe, perante o eleitorado e os meios de comunicação social. Gente repulsiva, verdadeiros estercos humanos a tentarem passar a imagem, de que partilham valores e conceitos éticos".

Deixei lá de imediato um comentário a avisar que a imagem era falsa e a explicar a intenção de a ter criado.

  • "Esta montagem fotográfica é falsa e foi montada exactamente para denunciar a disseminação de notícias falsas na internet em que há pessoas que acreditam, por mais inverosímeis e incríveis que sejam. O relógio que a senhora tem no pulso não tem nada a ver com o relógio do anúncio, e é preciso ser completamente destituído de bom senso para acreditar que ela alguma vez teria capacidade para comprar um relógio do preço do do anúncio".

Apesar do aviso a imagem não foi removida do site, e só dei pela sua remoção na véspera da publicação do artigo do jornalista Paulo Pena no Diário de Notícias no dia 20 de Outubro sobre esta publicação do boato, percebi ao ler a notícia que o dono do site a substituiu depois de ser contactado pelo jornalista.

Desta história tirei algumas conclusões, umas menos boas do que outras.

A pior, ter-me apercebido que um boato, por mais incrível e mesmo impossível que seja, encontra sempre quem acredite nele. O que faz desta luta contra a disseminação de boatos tão importante como sempre a considerei. A disposição do público para acreditar em boatos que lhe confirmem as opiniões que já tem é assustadora.

A melhor, que a denúncia do boato, e das correntes de boatos que o inspiraram, ultrapassou em muito o alcance limitado da minha rede social, onde poderia esperar avisar umas boas dezenas de pessoas que tenho noção que lêem regularmente o que publico, no limite umas poucas centenas, para se tornar nacional graças à sua publicação não-autorizada no site Direita Política onde coloquei o desmentido que ainda lá está, sem grande esperança de os frequentadores o levarem a sério, mas essencialmente graças ao artigo do jornalista Paulo Pena no Diário de Notícias que deu origem a notícias em quase todos os jornais de maior circulação, para além de sites de combate ideológico como o esquerda.net.

O meu aviso chegou muito mais longe do que sonhava, e espero que tenha contribuído para alertar alguns milhares de pessoas para desenvolverem algum sentido crítico quando, perante uma notícia em que gostariam de acreditar, ponderam sobre a sua veracidade.

Finalmente, hoje fui contactado telefonicamente pelo jornalista Paulo Pena, que não faço ideia onde descobriu o meu número de telefone fixo que ninguém usa para me contactar mas os jornalistas terão as suas artes de descobrir estas coisas, que simpaticamente me explicou que tinha tomado conhecimento que tinha sido eu o autor do boneco do relógia da Catarina Martins e me pediu para trocar impressões com ele e lhe contar a história e autorização para publicar o esclarecimento, que eu, também simpaticamente, acedi a contar e autorizar. Sendo a primeira vez que algum jornalista me contactou para me pedir declarações sobre qualquer assunto tenho toda a confiança que o que for publicado será fiel à nossa longa conversa, e disponibilizo-lhe este artigo para o ajudar a garanti-lo.

O facto de já esta semana ter voltado a ver notícias sobre relógios de políticos brasileiros indicia-me que este combate pela verdade contra a mentira pode ser uma causa perdida. Mas é a minha.

 

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 01:16
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