Em 13 de Maio último escrevi um texto sentido em homenagem à minha tia Fernanda.
Não sabia, e só soube há pouco, que ela tinha feito um testamento em que deixava ao irmão com quem vivia os bens móveis e dinheiro em banco, bem como o usufruto da casa de que era proprietária.
O testamento não dizia mais nada e portanto a casa ficava para os dois irmãos sobrevivos e uma rechimbada de sobrinhos (creio que 13 ou 14, incluindo-me a mim e aos meus cinco irmãos).
Dois dos meus manos renunciaram à herança e entre telefonemas e e-mails deles e de um dos dois tios, descobri com espanto que teria de pagar um montante indeterminado ao Fisco pelo privilégio, que confirmei no Portal das Finanças, de ser herdeiro. No mesmo Portal, diz-se ominosamente que sou “cabeça de casal”, mas pelo menos um irmão, e um dos tios, também são assim considerados, pelo que ou a classificação é um expediente para responder por dívidas de outros ou o Fisco ainda não ouviu falar de igualdade entre os sexos – duvido inclusive que até mesmo o meu cão me considere cabeça de coisa alguma.
Também quis renunciar à herança ꟷ uma vivenda com um pouco de terreno em Freamunde ꟷ mas fui informado de que em tal caso ela se transmitiria automaticamente para as minhas duas filhas, que igualmente teriam que pagar, a menos que também renunciassem. E como uma das filhas é deficiente profunda mas não está interditada, teria de a interditar primeiro – uma via dolorosa de papelada susceptível de me pôr, se os tivesse, os cabelos em pé.
O tio que não ficou com o usufruto ligou-me hoje e diz o seguinte: Que ficou encarregado de recolher de mim e de cada um dos meus irmãos 334,27€ para pagar à Fazenda a título, parece, de imposto de selo; que lá lhe disseram que tem de pagar tudo, e que portanto se algum dos sobrinhos não pagar, paga ele, por ser cabeça de casal; que protestou perguntando a que propósito, e por nomeação de quem, passou a ser cobrador do Fisco, mas lhe foi respondido que “era a lei”.
Já fiz a transferência. É possível, mas não certo, que a informação do funcionário não seja completamente correcta, mas infirmar o que diz, ou aliás o que diga qualquer outro funcionário, não paga o esforço nem ajuda o concidadão – o funcionário é inimputável e se tem o hábito, por ignorância ou estupidez, de infernizar a vida a toda a gente, fá-lo-á tranquilamente até à reforma.
Parece que não há imposto sucessório – acabou. Mas é claro, pelo que se vê, que não acabou, apenas mudou de nome. E como desejo sinceramente que o meu tio que lá continua a viver o faça por muitos e bons anos, e não tenho portanto intenção de o assassinar, o imposto incide sobre um bem do qual só terei uma ínfima parte daqui a muito tempo, e que só servirá para alguma coisa se puder ser vendido.
Qual é portanto a taxa do imposto? Ninguém sabe, foi calculado sobre um valor que o próprio Fisco estima, mas que eu estimo em zero porque, senão, não me ocorria renunciar.
Mas já me foram prevenindo: é melhor nem perguntar sobre o IMI. Eu acho que só o usufrutuário é que paga, pela lógica, mas a lógica não tem nada a ver com isto.
O que tem a ver com isto é o socialismo. Os meus concidadãos, que alegremente o escolhem desde há quarenta anos, já começam a ver, pelo SNS que abre brechas todos os dias, que acaba quando acaba o dinheiro dos outros. E os filhos deles, que vão herdar as casas que os pais penosamente pagaram e penosamente mantêm, descobrirão a seu tempo que quando acaba o dinheiro dos outros o Estado vem buscar o deles.
Fui hoje à terra do meu avô paterno, para o enterro de uma filha dele. Morte devida há muito, que uma doença debilitante e dolorosa tinha transformado a vida num calvário, todavia suportado com um estoicismo, suspeito, alimentado a fé.
Era uma tia que tomou conta de mim num tempo que não lembro, por ser muito novinho. E contou-me, já muito doente e acamada, que o bebé, desde que lhe enchessem adequadamente o bandulho e estivesse seco, queria era dormir, embalado pela camioneta em que se fazia o traslado de uma aldeia para outra, cujas passageiras miravam com encanto o sossego do anjinho, espantadas, parece, com as longas pestanas que eram o enlevo dela.
Isto me disse de mão dada comigo, a voz já fraca, imensamente contente pela minha rara visita.
Não sei o que foi feito das pestanas e receio que o sono nem sempre seja tão descansado como, a acreditar na história, já foi.
Tivesse eu a mesma fé, e a mesma tranquila generosidade que a levou a servir os outros toda a vida – o marido, a filha, o irmão, meu Pai, que assistiu nos últimos meses de vida, e estaria certo de que do lado de lá encontraria as palavras certas para lhe agradecer, se do lado de lá ainda é preciso falar.
E daí talvez não, a não ser com uma licença especial. Que se no Além houver a justiça que neste falha, não estaríamos decerto no mesmo lugar.
Adeus, tia Fernanda.
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