Nos meus dois posts anteriores informei com humildade a que actividades dediquei a ponte e o feriado do 25 de Abril, num dia passeando na cidade com o nariz no ar, com a tranquila certeza de não topar com manifestações, porque já não há, e no outro carregando cestos de compostagem.
O meu verdadeiro 25 de Abril, porém, foi a 26, um dia memorável. O BPI, uma instituição daninha, trespassou-se para Espanha. E do novo gestor, Pablo Forero, que não conheço, posso dizer o que o palhaço Tiririca dizia de si mesmo, pedindo o voto: pior não fica!
O dia não foi perfeito: Fernando Ulrich, um ser pertencente à multímoda espécie humana, sobre cujas qualidades me pronunciei inúmeras vezes (aqui e aqui, por exemplo) recebeu uma indemnização de 465,5 mil euros, em vez das 100 chibatadas que mais adequadamente coroariam a obra que deixou em herança, para não falar do risco de continuar a poluir as instalações da sede com a sua presença remunerada; Santos Silva, uma conhecida rolha do regime, que pelo menos uma vez já honrei com a atenção que não merece, também junta uma prebenda às que já tem, ficando como presidente honorário e a presidir a uma nova comissão dedicada à responsabilidade social. Seria desejável que, em troca do estipêndio que decerto irá receber, e que o artigo, por pudor, omite, fizesse um voto de silêncio. Mas não, é de presumir que se venha a aliviar junto da comunicação social dos lugares-comuns que o tema da responsabilidade social haverá de inspirar naquela calculista cabeça - as rolhas, como é sabido, não afundam.
E falta ainda Lobo Xavier, um histórico do CDS que vai vice-presidir a não sei quê e que, da Quadratura do Circulo, um programa que por inércia continuo a ver, não cessa de gabar as virtudes da geringonça, os méritos de Costa, a habilidade política de Costa e a bondade dos novos caminhos que imprimiu ao país em geral, e à banca em Portugal. Sim, percebo.
Pode de tudo isto inferir-se que detesto esta gente? Claro que não, que ideia: eu, Ulrich, odeio, Santos desprezo e para Xavier guardo a secreta admiração que sempre tive por videirinhos.
Houve um tempo em que dos banqueiros se esperava que falassem pouco e que, quando obrigados a falar por dever de circunstância, se refugiassem em generalidades inócuas: em boca fechada nem entra mosca nem sai asneira. Esta útil limitação à liberdade de expressão, que afectava outras categorias de cidadãos cujas palavras pudessem ter efeitos intranquilizadores ou perversos, como militares e magistrados, era compensada, oficial ou oficiosamente, com benefícios a que não tinham acesso as restantes categorias de cidadãos. Os que não gozassem de qualquer favor do Estado, esses sim, podiam dizer o que lhes passasse pela cabeça: de motoristas de táxi, por exemplo, podia-se razoavelmente esperar opiniões definitivas sobre o Papado, o orçamento para o próximo ano, o despovoamento do interior, o lugar exacto do CR7 no ranking dos melhores marcadores, e a verdadeira natureza dos políticos.
Já estes últimos exprimiam-se num dialecto de poderosos efeitos sedativos, a famosa língua de pau, que consistia em serem absolutamente previsíveis, não se comprometerem com coisa alguma excepto falsidades consensuais, utilizarem bordões de linguagem como quem não sabe andar senão de canadianas e afectarem conhecimentos enciclopédicos, em particular sobre matérias nas quais nem sequer alcançavam a extensão da própria ignorância.
Bons tempos, que a única classe que mantém o respeito pelas tradições é, precisamente, a dos políticos: Jerónimo ou o edil Costa, ainda antes de usarem da palavra, já causaram o eco dela, o primeiro porque repete incansavelmente a letra de uma ladaínha, e o segundo porque trauteia a música de outra.
Os militares, agora, pedem audiências ao Presidente da Republica, que lhas concede, para ameaçarem com levantamento de rancho, após o que confessam aos jornalistas ávidos de declarações o seu amor pátrio e a rejeição da austeridade; e os magistrados ameaçam com greves se o Poder lhes cortar mais nos rendimentos, por essa via pérfida pondo em causa a independência do Poder Judicial e a serenidade das digestões.
Fernando Ulrich é decididamente moderno, não há cá contenções: semana sim, semana não, alivia-se de opiniões como se ainda escrevesse nos jornais. Por que razão imagina que o gestor de um banco que o Estado ajudou com empréstimos, para lhe evitar a falência ou a absorção por outro, tem alguma clarividência especial, é um mistério. Felizmente, a maior parte do que diz é sensata, embora sejam banalidades; mas a menor parte tende com preocupante frequência a ser asneira - desgraçadamente.
Vejamos as duas frases seguintes, no último ataque de incontinência verbal:
"Só fala de reforma do Estado quem nunca reformou coisa nenhuma. No banco, as reformas demoram anos a fazer e há uma equipa que está junta há 30 anos."
"O ajustamento não foi só feito a partir da contração da procura interna. Não se podia continuar indefinidamente a comprar casas e a construir estradas. Nada disto se vai voltar a repetir. Não é preciso, nem é financiável".
Vou traduzir:
Levamos muitos anos a fazer reformas que se poderiam realizar em poucos porque, bem vê, um banco não é uma PME, é mais assim a modos que uma repartição. E:
Não se podia continuar a comprar casas, nem a construir estradas, porque não nos é mais possível continuar a financiar, como fizemos estúpida e cegamente, aquelas actividades. A gente, quando se habitua durante trinta anos a sinecuras, perde o contacto com a realidade.
Cala-te, Ulrich.
Se os milhares de empresas que têm caído como tordos tivessem acesso a financiamento das instâncias europeias garantido pelo Estado (quer dizer, por nós), para reforço do seu capital; se tivessem um fornecedor incansável de matéria-prima (o BCE) para revenda a cliente certo e seguro (nós - a compra de dívida pública pelos bancos não é outra coisa); se a falência não fosse possível por a comunidade achar isso uma grande desgraça, evitável a todo o transe; e se comercializassem um bem que, por representar todos os bens, tem uma procura só limitada pela capacidade dos clientes para pagarem:
Haveria tantas falências?
Não, não haveria, a lógica não é uma batata. Mas os administradores, gerentes, sócios dessas empresas, pertencentes a uma casta privilegiada, andariam por aí de peito estufado, a produzir opiniões pesporrentas, dislates sortidos, e insolências várias, esfregando no focinho da turba miserável a sua suficiência de falidos inimputáveis?
Claro que não andariam. Porque não são bancários.
"O presidente do BPI defendeu que essa é uma pergunta que deve ser feita às grandes empresas, aquelas que, segundo o próprio, têm capacidade para 'absorver pessoas' e de as 'utilizar de forma útil'. Para Fernando Ulrich, 'com voluntarismo', é possível criar emprego no País."
Um paisano lê isto e fica pasmado: Como?! O Presidente do BPI nunca foi consultado "por nenhum responsável" sobre a forma de criar empregos? Como é possível?
Realmente as associações empresariais, os sindicatos, os governos que temos tido, e o actual não é nisto diferente, são completamente refractários ao aproveitamento de muito contributo positivo do que de melhor temos por aí em gestão, criação de valor, espírito empresarial e assim. É verdade que Ulrich nunca se deu à maçada de concorrer a nenhuma eleição, para aplicar directamente as suas luzes, mas também nunca quis. Nem seria aliás necessário: em os eleitos fazendo o que Ulrich diz, o céu despejava sobre esta atribulada terra assinaláveis benefícios, ao menos em matéria de emprego.
É certo que Ulrich, se o contribuinte não lhe tivesse posto a mão por baixo via troika, estaria possivelmente a perorar num jornal, sem o prestígio que lhe dá o ser um dispensador de empréstimos e criador de emprego, e com a pecha de ter levado um banco à falência ou à integração noutro mais sólido, o que não é exactamente a melhor das recomendações. Mas isso são detalhes, o mérito objectivo das sugestões de Ulrich fala por si. Só no BPI, imagine-se, admitia aí uns 500 desempregados, desde que (supõe-se) comprassem um fato e aprendessem a digitar um teclado, levar papéis de um lado para o outro e dizer inanidades.
E isto só no BPI. Porque se se acrescentasse a SONAE, a Portugal Telecom, a EDP e a Jerónimo Martins, ai!, a taxa de desemprego vinha por aí abaixo. E com grandes benefícios para o consumidor, que uma só funcionária duma caixa no Continente a pegar no cartão, passá-lo na máquina, e fazer deslizar os produtos, é realmente pouco: três seria a conta que Deus fez.
Bom, a coisa está-se a compôr, afinal há soluções. Agora, o que é preciso é falar com os outros leviatãs do empresariado e tratar da logística. Com sorte, a taxa de desemprego ainda pode baixar em mais de 1%.
Algumas dúvidas porém me assaltam: se somos nós que continuamos a pagar aos desempregados, o que é que ganhamos com a manobra? Se estas empresas não estão a admitir pessoal, porque hão-de os desempregados que já não são mas que continuam a ser acreditar que terão lugar daqui a dois anos? E se a ideia é boa, porque não para as PMEs, já que são elas, e não as grandes, as responsáveis pela maior parte do emprego?
Ulrich, Ulrich, és um grande ratão. Vou-te dizer em Francês, que eu não gosto de expressões popularuchas: pour nous, tu viens en petite voiture.
Ponhamos de lado o Lehman Brothers, as dezenas de pequenos bancos deixados falir, as condenações americanas nos casos de polícia, a crise do sub-prime e o que ela desencadeou. Tudo chegou cá, e ajudou a fazer os estragos que ainda não reparámos.
Mas os nossos bancos, se não andaram embrulhados na organização de pacotes de lixo imobiliário e de futuros, nem por isso deixaram alegremente de embarcar no crédito à habitação e ao consumo, além do financiamento da dívida pública, dos concessionários das PPPs e quanto delírio desenvolvimentista nos trouxe onde estamos. E ainda que os incentivos do Estado e da taxa de juro associada ao Euro recomendassem a prática, no caso da habitação e do consumo; e que o poder de coerção do Estado, nos restantes, desse garantias de alguma segurança:
Não era difícil perceber que tarde ou cedo emprestar dinheiro aos empregados das empresas para comprarem apartamentos e plasmas, ao mesmo tempo que o crédito era negado a quem lhes pagava os ordenados, não podia acabar bem; e só muita desatenção, tráfico de influências e ignorância da História, justificavam as compras de dívida pública, tanto da nossa como, pasme-se, a de outros, inclusive gregos.
Cabe perguntar então como é possível que tanta gente de fato às riscas, bom corte de cabelo e economês emproado, assessorada por tanto académico albardado de diplomas, pôde ser tão inacreditavelmente estúpida.
Haverá decerto muitas explicações. A principal, para mim, é que todo o banqueiro sabe, entre nós, que não pagará o pato: entre garantias e avales do Estado, favores de intermediação com o BCE, extorsões várias com a bênção do Banco de Portugal, e abundância da procura, sempre o prémiozinho à gestão será confortável. E com a certeza de que o pavor do risco sistémico levará a que de uma forma ou outra o Estado ponha a mão por baixo, fica completo o quadro da irresponsabilidade que recomenda o comportamento aventureiro, privilegiando o curto-prazo.
Numa PME, as regras são simples: Falhas? Então tens bandeiras pretas à porta, os trabalhadores a chamarem-te ladrão, os sindicalistas a darem entrevistas e os intelectuais da gestão e da economia confirmados no seu desprezo dos empresários de vão-de-escada.
No banco tens, na pior das hipóteses, um pára-quedas dourado. Podes ser cooptado para um conselho de administração, ir fazer consultadoria, ser requestado para entrevistas, fundar empresas, ou simplesmente gozar a vida.
Se, para não dar o triste pio, aceitares apoio público, nem precisas de estar grato: basta que te queixes do preço, substancialmente inferior ao que cobras à inesgotável clientela. E podes, com segurança e pesporrência, vir para a praça pública abundar em considerações sobre sacrifícios, inevitabilidades e medidas.
Não há o risco de falta de aplausos: os banqueiros costumam falar apenas onde o aplauso esteja garantido. E não há o risco de pessoas como eu estarem na plateia - as pessoas como eu não vão ouvir discursos de banqueiros, a menos que lhes convenha fingir que ignoram que farinha é aquela.
Mas, pelos vistos, há o risco de, por acaso, estar na plateia quem, porventura não pensando o que eu penso, nem por isso tenha paciência para aturar vaidosos, inconscientes e arrogantes. E não hesite em dizê-lo.
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