Mesmo sem resolver todos os problemas, e muitos deles não têm mesmo solução, Portugal seria um país automaticamente melhor se as pessoas que, como o Nicolau que, se houvesse vergonha, seria a vergonha do jornalismo económico português depois de ter divulgado um burlão como economista de craveira mundial, se entregam a escalpelizar obsessivamente o médico, a troika, o tratamento, o programa de assistência financeira da troika, e o sofrimento do doente durante o tratamento, a crise económica e social que ocorreu ao longo do programa, muito mais violenta na sua fase inicial, e ignorar a doença, a falência das finanças e da economia do país e a consequente total dependência de credores, o comportamento de risco que a provocou, o despesismo eleitoralista socialista até esgotar o dinheiro e o crédito, e a parte do sofrimento que resulta da doença e não do tratamento, que é todo, porque sem doença nem sequer haveria tratamento, crescessem um bocadinho mais do que ele e passassem a olhar para o mundo como adultos, e não como pequenos Nicolaus que pensam que os comportamentos de risco não provocam doenças e as doenças são todas curáveis e podem ser curadas com tratamentos inócuos e agradáveis. Com gotinhas de remédio num torrão de açucar em vez de injecções, exposição a venenos ou radiações, ou amputações.
É que, se crescessem, deixariam de dar ouvidos aos pequenos Nicolaus da política cuja visão se pode resumir a bater o pé a Bruxelas para virar a página, ou seja, ignorar ou interpretar de modo inteligente os tratados de modo a fazer deficits superiores aos limites determinados por eles distribuindo dinheiro pelos eleitores e, como consequência directa, aumentar as necessidades de dívida e a dependência de credores, extorquir às gerações futuras a liberdade de levarem uma vida decente e despreocupada sem serem forçadas a pagar as dívidas que a geração actual lhes está a deixar para pagar, e serão elas, e não os credores ou os parceiros europeus, a pagar, e regressar aos comportamentos de risco que provocaram a doença, e a provocarão de novo.
Vamos lá crescer em inteligência, que em altura parece que temos crescido, e uns poucos centímetros já farão uma grande diferença?
O Relatório está aqui. Mas não o vou ler: tem 76 páginas e o palavreado é o de um paper de economia, uma coisa intensamente fastidiosa. Não faz mal: na minha lista de favoritos, os blogues com economistas são mais de uma dúzia; e como os blogueiros que não são economistas falam com frequência de assuntos económicos, e a minha lista tem uma divisão equânime esquerda/direita, acabarei por saber mais do Relatório do que se o tivesse lido. Ademais, era o que faltava se para me pronunciar sobre qualquer assunto tivesse que o estudar - do que ouço e leio dos especialistas felicito-me com frequência pela minha abençoada ignorância: os porcos, quando estão com o focinho enfiado na gamela, não veem nada do que rodeia o curral; e é facílimo tresler quando se estudam ciências que se declinam em esquerda e direita.
Acresce que haverá gente que vê detalhes dos quais nunca me aperceberia. Por exemplo, a coisa chegou hoje ao espaço público e já houve quem topasse que o Ministro Relvas não esteve para maçadas. Um pormenor irrelevante, decerto; mas outros hão-de aparecer.
Gostaria de pensar que a parte reformista da Esquerda se vai convencer de que o Estado dos direitos económicos e sociais de valor crescente acabou; e que, a bem ou a mal, o nível de despesa pública terá que baixar, dado que a carga fiscal pode ainda subir no papel mas a receita não.
Gostaria de pensar que a parte da Direita que tem uma receita ideológica pronto-a-vestir percebesse que a espiral recessiva não é uma possibilidade apenas teórica; e que, mesmo que o fosse, há um limite para o sofrimento sem esperança, pelo menos se não quisermos que a Democracia vá pelo ralo.
Precisamos de crescimento. Tão ou mais importante do que a discussão em torno dos cortes é a descoberta da pedra filosofal do crescimento.
Esta receita não dá - foi testada no consulado do autor, quando a Europa ainda acreditava que mini-Planos Marshall haveriam de pôr os países relativamente atrasados a crescer muito mais do que os outros, e deu como resultado a obesidade do Estado, um himalaia de desperdício, um karakorum de corrupção e um crescimento abaixo da ambição e da necessidade. De toda a maneira, quando se pedem esmolas pode-se talvez sobreviver; mas não se pode enriquecer - e esmolas seria do que a agora UE estaria disposta, na melhor das hipóteses, a abrir mão.
O investimento público, mesmo para quem acredite, contra toda a evidência, que pode ser a solução, está-nos vedado por falta de crédito.
A descoberta de petróleo, gás ou de metais preciosos é improvável; e o mar, essa grande riqueza, continuará teimosamente a ser refractário ao papel que empresários de proclamações lhe destinam.
Vou gostar da discussão. Ou talvez não: não é impossível que se veja mais do mesmo.
Este colunista diz que "research suggests fiscal consolidation plans should be more like $5 to $1 spending cuts over tax hikes, not $1 to $1". Diz mais, muito mais, mas são americanices, Deus nos livre de agora nos termos que inteirar das trapalhadas deles e do que vai e não vai fazer o Presidente que acabaram de reeleger. Mesmo que, infelizmente, nos conviesse uma economia americana sólida - a constipação deles tem uma tendência excessivamente marcada para chegar a estes lados sob a forma de pneumonia.
Mas é curioso: Um conhecido preopinante de economia da nossa praça acha, num post que é um autêntico brinco, que "a ideia de que os cortes na despesa são menos penalizadores para a economia do que os aumentos de impostos não tem qualquer sustentação empírica", baseado na tese de "uma insuspeita equipa de investigadores do FMI".
As teses do FMI não costumam estar envoltas em odor de santidade para os lados do PS. Possivelmente com algum conhecimento de causa, dado que aquele partido tem uma relação muito chegada com o organismo em questão, que está de visita pela terceira vez em trinta e poucos anos. Mas esta tese, so to speak, comes in handy - se me perdoam o Francês.
Depois, o Americano não é de modas - é que nem põe a hipótese, que tem sido seguida entre nós, de privilegiar o aumento de impostos - meio por meio já lhe parece um exagero. Mas como não indica fontes, ficamos aqui dilacerados numa dúvida excruciante: Quem tem razão - Galamba que fala de "falta de sustentação empírica" ou Pethoukakis que fala do que a investigação sugere?
Por mim, ligo pouco ao que dizem os entendidos, sobretudo quando dizem o contrário uns dos outros. Mas sei o que pensaria um empresário ou uma dona de casa. Claro que um país não é uma empresa nem uma domus. Mas quand même, se me perdoam o Alemão.
Camilo Lourenço, em crónica publicada no Jornal de Negócios, pergunta: "Porquê tanto pessimismo?". Aparentemente, esta foi a pergunta que lhe fizeram dois jornalistas estrangeiros que lhe telefonaram na semana passada. Estavam estes senhores muito espantados porque o Financial Times elogiava as exportações portuguesas, a Moody's teria dito que havia "razões para optimismo", e nós não tínhamos ligado nenhuma. Queriam também saber o que estava por trás do "bom comportamento das exportações e da paz social". E Camilo Lourenço partilha com eles desta perplexidade, entre outras razões porque "nem os elogios da insuspeita Moody's, que ainda há pouco tempo nos atirou para o "lixo", mexem conosco", concluindo que o caso "não tem sido suficientemente analisado" pelos nossos jornalistas. E que, a continuar assim, aos portugueses que pretendam "fugir à depressão" só lhes resta consultar a imprensa estrangeira.
Concordo com Camilo Lourenço. Se quiserem fugir à depressão, os portugueses têm muita imprensa estrangeira para consultar. Até estou convencida que têm alguma imprensa local para se entreterem, se quiserem de facto fugir à depressão. Revistas de moda, por exemplo. São hilariantes. Ou o Auto-Motor (eu gosto do Auto-Motor). Mas se os portugueses, em vez de fugir, quiserem combater a depressão, só conheço duas maneiras: resolver os seus problemas ou consultar um especialista no sentido de tomarem a medicação apropriada. Muitas vezes uma delas não dispensa a outra.
Mas eu, como não sou do ramo, vou fugir à psicologia e tentar explicar ao dr. Camilo Lourenço porque é que os portugueses têm razões de sobra para não estarem optimistas.
Pessoalmente, considero que a Moody's está longe de ser insuspeita. Não conheço a Moody's senão dos bitaites que tem largado, de há uns anos a esta parte, qual pitonisa embriagada. E os primeiros de que me dei conta datam de 2008. Classificavam de "Triple A" as empresas americanas que vieram a falir, no dia seguinte, funcionando como causa próxima de toda esta marmelada em que estamos enfiados até às narinas. Daí em diante, encarei com igual suspeição toda a conversa respeitante às agências de rating, desde o que diziam as próprias ao que se dizia delas. E tal como uma previsão, lida (por exemplo) na gordura que libertam as alheiras durante o processo de fritura, ou obtida com a certeza que dá Saturno quando se encontra na casa de não sei quem, às vezes acerta: Portugal, quando a Moody's classificou o país de "lixo", não me inspirava confiança para emprestar à República um único euro.
Mas há mais especialistas e mais oráculos. O Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou o relatório da última visita a Portugal, no âmbito da quarta missão de avaliação do programa económico, com a União Europeia e o Banco Central Europeu. Está muito alegre, este relatório. E quem leia os títulos até fica convencido que o pior já ficou para trás. Aconselho toda a classe jornalística a ficar por aqui, e não se dar ao trabalho de ler nem mais uma linha; talvez começassem a servir para alguma coisa, e eu não me governo a alimentar um blog com jornalistas competentes.
Logo no final do primeiro parágrafo, cujo título diz "The program remains on track amidst continued challenges" (a palavra "challenges" seduziu-me de imediato), pode-se ler:
"The authorities are implementing the reform policies broadly as planned end external adjustment is proceeding faster than expected".
Ou seja, eles estão convencidos que, de uma maneira geral, as reformas em Portugal estão a ser executadas a uma velocidade muito razoável. Do meu ponto de vista, se eles estivessem convencidos que as reformas em Portugal estão a ser executadas já estariam enganados. Pelo que a questão da velocidade se torna perfeitamente decorativa. Mas continuemos.
O segundo parágrafo chama-se "Growth in 2012 may hold up better than expected" (eu avisei: os títulos são todos bestiais). Diz, a certa altura:
"However, with domestic demand weak and pressures on firms to reduce high indebtedness, unemployment has increased sharply as part of the adjustment process, and could peak at close to 16 percent in 2013. Continued tensions in the euro area represent a risk clouding the external outlook".
Traduzindo: grosso modo, eles detectam que a procura interna está fraca, e que as empresas portuguesas sofrem pressões para que reduzam os altos níveis de endividamento, o que tem levado à subida brusca do desemprego. E que esta subida pode situar-se num valor máximo aproximado de 16% em 2013. Concluem este parágrafo observando que as tensões na zona euro representam um risco a enevoar a perspectiva do exterior. Duvido do valor de 16%, que considero optimista. Mas no restante quer-me parecer que têm razão.
O título do terceiro parágrafo é "The ambitious 2012 fiscal deficit target remains within reach". Pois sim, "talvez" ainda esteja ao nosso alcance. Mas depois diz:
"Reforms of state-owned enterprises and public-private partnerships are on track. Efforts to strengthen public financial management, bolster tax compliance, and streamline public administration are continuing at good pace".
Aqui parei de ler. Ao FMI, à UE e ao BCE parece-lhes que as reformas no sector público do Estado e nas PPPs vão sobre rodas. Devem ter visto documentos de outro país, porque aos portugueses o que são apresentadas são notícias de barbaridades com o Tribunal de Contas, empresas públicas irreformáveis, e moscambilhas com os contratos das PPPs. E do pouco que se apurou, percebeu-se que dos efeitos mais brutais destes contratos sobre o contribuinte ainda não se lhes sentiu mais do que o cheiro.
De resto, dr. Camilo Lourenço, não precisamos consultar mais relatórios, previsões, horóscopos ou borras de café. A Justiça foi reformada, ou encontra-se em vias de uma alteração histórica que vai garantir aos investidores que um processo em Portugal não demora mais do que, vá lá, um ano a ser decidido e executado? Não. A burocracia, designadamente no que toca aos licenciamentos, foi desimbecilizada? Não. O sistema fiscal garante hoje que as empresas podem não só sobreviver, mas também competir? Ou sequer perceber, com a antecipação razoável, quanto é que o Estado vai subtrair à sua facturação? Também não. A Banca está em condições de assegurar o crédito necessário para as empresas se financiarem? Não está. E a reforma das autarquias, vai de vento em poupa? Não falo de juntar meia dúzia de Freguesias, como é evidente. Pergunto se há notícia de se fundirem Câmaras Municipais. Ouviu falar de alguma que se prepare para desaparecer? Não, ainda não é desta.
Então, dr. Camilo Lourenço, da próxima vez que lhe telefonarem do estrangeiro a perguntar porque é que os portugueses estão pessimistas, não se estenda por muitos detalhes. Não vale a pena, e a única economia que vai alavancar é a das empresas operadoras de telecomunicações. Responda-lhes apenas: "Porque sabem do que a casa gasta" (em inglês, "bicóz dei nao avuó di ráuze çependz"). Eles vão perceber.
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