Marcelo deu um violento raspanete ao Governo, há dias, e o que se chama a direita reconciliou-se com ele.
Eu também: pareceu-me que o calculismo de Costa e as suas declarações desastradas, o cinismo das duas seitas que lhe sustentam o consulado, o modo controlo de danos da comunicação social a ruir à medida que as horas passavam, os erros de casting evidentes da ministra Urbano e das personagens que povoavam o aparelho da protecção civil, tudo fazia um contraste demasiado evidente com o colapso do Estado, o número de mortes sem precedentes, e o imenso desespero dessa gente mal lavada e pobreta, nas suas casas de blocos de cimento rematados aqui e além com azulejos de mau gosto que o fogo consumiu. A mesma gente que Marcelo não hesitava em abraçar por entre lágrimas e que ficava, e fica, genuinamente grata pela atenção presidencial, que interpretava como sinal da solidariedade que a comunidade lhe devia, e que o Governo não cessou de trair.
Perguntado por um amigo que sabe que tenho por Marcelo uma consideração, digamos assim, muito moderada, sobre o que pensava da forma como se conduziu, disse-lhe aprovadoramente que Marcelo agiu como um rei popular.
Foi de facto assim. Costa percebeu a mensagem e fez o que sabe fazer: despiu a pele de bonomia ou arrogância que lhe é natural, consoante as situações, e vestiu a de contrito e comovido cidadão com que se apresentou no Parlamento.
Isso, é claro, não chegava. E há dias lá vieram as medidas do Governo que garantirão o dispêndio de incontáveis milhões, que não se resolverá satisfatoriamente o problema, e que teremos novas grandes desgraças daqui a uma dúzia de anos (v.g, a série de posts que Henrique Pereira dos Santos não cessa de dedicar a este assunto, por exemplo este).
Deixemos Costa, as suas moscambilhas, a sua patética corte, e o séquito de comentadores que não lhe vê nas proclamações a vacuidade que lá está, mas vê o sentido de Estado e a clarividência na gestão da economia que lá não estão, que eu quero é falar de Marcelo.
Esteve bem, já disse. Mas Marcelo não tem, nem sobre a vida rural nem sobre coisa alguma da res publica, nenhuma ideia que preste. Importa portanto saber por que razão acertou e se isso representa alguma mudança grávida de consequências positivas.
Convirá talvez lembrar que aquando dos incêndios de Pedrogão a primeira reacção do nosso monarca foi dizer que "o que se fez foi o máximo que podia ser feito". Isto quando era patente, e há muito, para quem lesse quem valesse a pena ser lido, que as únicas coisas realmente feitas eram um rosário de asneiras. Marcelo, que não é um homem bem informado senão de rodilhices que tenham que ver com tácticas políticas, e mesmo essas apenas de curto ou médio prazo, é todavia um grande farejador - a isso deve a carreira, o sucesso e taxas de aprovação sem precedentes.
Não compro o sentimentalismo dos abraços, das selfies, e todo o folclore enjoativo associado aos afectos. Nem acho que esse seja um fundamento sólido para qualquer mudança que valha a pena, e menos ainda para quaisquer reformas, que para serem úteis desagradarão a muitos, senão à maioria.
Mas suponho que à força de andar no meio do povo miúdo, e de ver de perto o espectáculo indecoroso de um país desconhecido abandonado à sua sorte, Marcelo, que é um intuitivo, percebeu que dar cobertura ao Governo era a negação de uma interpretação correcta do sentimento popular. E ele está lá para isso, para interpretar o sentimento popular, e, não sabendo mais nada, isso sabe fazer bem.
Então, pode a direita contar com ele? Marcelo mudou? Sim e não: não, se Costa recuperar, como creio fará, a credibilidade seriamente beliscada; sim, se os danos tiverem sido permanentes.
Para já, a chuva dos milhões, de mais a mais com a imprudente garantia de que não contarão para o défice (um tipo de música que, caindo em ouvidos socialistas, é um passe-vite quase certo para o deboche), abafará a revolta e comprará votos transviados; a corrupção, como de costume, abocanhará o seu quinhão; e as reformas desenhadas, mais a área ardida que não arderá de novo senão quando a legislatura for outra, e outras as restantes circunstâncias: tudo garantirá que a geringonça tem pela frente mais do mesmo, até onde a vista alcança.
Quer dizer que o novo Marcelo que a paisagem física destruída revelou só renascerá quando a economia der de si, ou quando por qualquer outra razão a paisagem política mostrar labaredas e fumo.
Até lá conviria persuadirmo-nos de que vivemos numa monarquia electiva: o rei está acima dos partidos; ou abaixo; ou ao lado; em suma, onde estiverem os populares que lhe chorem no ombro, desde que em quantidade suficiente.
Há dias um senhor respeitável e já de certa idade, professor universitário, pronunciava-se na SicN sobre os incêndios e referiu-se em termos elogiosos, como praticamente toda a gente que é gente, ao relatório da comissão técnica independente, ressalvando porém que as alterações climáticas nele não figuram (aposto singelo contra dobrado que o mesmo senhor, há meia dúzia de anos, não diria "alterações climáticas" mas "aquecimento global"). Vai daí, fomos servidos com o cenário de horror que nos aguarda no futuro se não o ouvirmos, e aos colegas dele, sobre o risco enorme de não seguirmos a receita que prescrevem, e que invariavelmente consiste em despender mais recursos públicos para alimentar estudos e organismos, impor mudanças de comportamentos e adoptar as tecnologias que aconselham. O que aliás vem sendo feito, ainda que não ao ritmo desejável, que fica sempre aquém do que estimam imperativo para salvarmos o planeta.
José Gomes Ferreira, conhecido como jornalista de assuntos económicos, tem uma tese: há ignições a mais, inexplicáveis, e é preciso apurar quem ganha com os fogos. Quem compra a baixo preço as madeiras ardidas, os proprietários dos meios aéreos (na verdade são aeronaves mas a comunicação social utiliza esta expressão porque é ignorante) que ganham com os fogos, e sobretudo quem adquire propriedades ardidas para emparcelamento. Sem esta investigação, nada feito: não perceberemos nada. Mas a ele, José Gomes, não lhe fazem o ninho atrás da orelha: isto tudo é um caso de polícia.
Não falta gente a reclamar alterações ao Código Penal, agravando a moldura do crime de fogo posto, havendo até petições a circular com esse propósito. E não custa imaginar que se um partido político se lembrasse de propor na Assembleia sérios endurecimentos, incluindo a obrigação de o juiz impor a prisão preventiva em todos os casos, o eleitorado, e a comunicação social, rebolariam de gozo e os potenciais incendiários, tolhidos de medo, dedicar-se-iam a outras malfeitorias menos lesivas do ambiente.
Miguel Sousa Tavares espuma de raiva contra os eucaliptos. Se em Portugal nunca aquela árvore maléfica tivesse adquirido a importância económica que levou a que não sei já quem a tivesse descrito como o nosso petróleo verde, teríamos soutos de carvalhos seculares e castanheiros, fartos renques de vidoeiros, tudo entremeado de gordas searas ondulando ao vento, e largas sombras de tílias sob as quais, ao mesmo tempo que aspirávamos os aromas do loureiro, do alecrim e do tomilho, podíamos ler enlevados as recomendações do arq.º Ribeiro Teles para um país imaginário e perfeito, as Éclogas de Virgílio e as obras completas de Sophia, para chorar mansamente de comoção.
De adeptos de mudanças estruturais há um ror, embora não digam todos exactamente o mesmo. Todos porém concorrem num ponto: o proprietário florestal não limpa, não planta o que deve, não vigia, atreve-se inclusive a ser anónimo, é demasiado pequeno a norte do país, e demasiado grande a sul, pelo que há que lhe impor obrigações a golpe de proibições, licenças, multas e - é aqui que nascem as diferenças de abordagem - confisco.
Confisco para o Estado, que quando em veste de proprietário faz o que fez no pinhal de Leiria, o qual ardeu em mais de dois terços, mas apenas possivelmente por falta de meios, dada a excessiva timidez na cobrança de impostos.
Não compro nada disto. Mas aquando dos incêndios de Pedrógão escrevi um post onde referia um Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, de 2005, cujos autores estão, ao menos pela sua maior parte, ainda vivos, e que decerto teriam o maior gosto em actualizá-lo, eventualmente acrescentando outros nomes entretanto surgidos de especialistas na área.
Não é que as decisões finais não tenham que ser políticas; não é que as teses sejam todas pacíficas; não é que passando à prática não se venham a revelar necessários acertos, revisões, correcções de pontos de vista.
É que o combate aos incêndios florestais é uma coisa; e a reforma da floresta outra. Para o primeiro o relatório referido a início diz o que convém; e para a segunda o Plano vale mil vezes os palpites que acima, sem preocupações de ser exaustivo, listei.
Sobre a história dos fogos de domingo passado direi apenas o seguinte: A popularidade de Costa não parece beliscada de um modo que não possa ser corrigido por um novo aumento das pensões, a três Euros por cabeça, uns milhares de admissões na função pública, umas benesses a funcionários e mais umas cedências a comunistas; as cabeças de personagens inenarráveis que já rolaram, e as que virão a rolar, serão substituídas por outras nulidades da coudelaria do PS; Marcelo apareceu, por contraste, como um estadista; e os mortos não, nem os que perderam haveres e modo de vida, mas uma parte dos vivos sim, todos os que apoiam este governo deplorável, têm o que merecem.
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