Terça-feira, 24 de Outubro de 2017

Encosta a tua cabecinha ao meu ombro e chora

Marcelo deu um violento raspanete ao Governo, há dias, e o que se chama a direita reconciliou-se com ele.

 

Eu também: pareceu-me que o calculismo de Costa e as suas declarações desastradas, o cinismo das duas seitas que lhe sustentam o consulado, o modo controlo de danos da comunicação social a ruir à medida que as horas passavam, os erros de casting evidentes da ministra Urbano e das personagens que povoavam o aparelho da protecção civil, tudo fazia um contraste demasiado evidente com o colapso do Estado, o número de mortes sem precedentes, e o imenso desespero dessa gente mal lavada e pobreta, nas suas casas de blocos de cimento rematados aqui e além com azulejos de mau gosto que o fogo consumiu. A mesma gente que Marcelo não hesitava em abraçar por entre lágrimas e que ficava, e fica, genuinamente grata pela atenção presidencial, que interpretava como sinal da solidariedade que a comunidade lhe devia, e que o Governo não cessou de trair.

 

Perguntado por um amigo que sabe que tenho por Marcelo uma consideração, digamos assim, muito moderada, sobre o que pensava da forma como se conduziu, disse-lhe aprovadoramente que Marcelo agiu como um rei popular.

 

Foi de facto assim. Costa percebeu a mensagem e fez o que sabe fazer: despiu a pele de bonomia ou arrogância que lhe é natural, consoante as situações, e vestiu a de contrito e comovido cidadão com que se apresentou no Parlamento.

 

Isso, é claro, não chegava. E há dias lá vieram as medidas do Governo que garantirão o dispêndio de incontáveis milhões, que não se resolverá satisfatoriamente o problema, e que teremos novas grandes desgraças daqui a uma dúzia de anos (v.g, a série de posts que Henrique Pereira dos Santos não cessa de dedicar a este assunto, por exemplo este).

 

Deixemos Costa, as suas moscambilhas, a sua patética corte, e o séquito de comentadores que não lhe vê nas proclamações a vacuidade que lá está, mas vê o sentido de Estado e a clarividência na gestão da economia que lá não estão, que eu quero é falar de Marcelo.

 

Esteve bem, já disse. Mas Marcelo não tem, nem sobre a vida rural nem sobre coisa alguma da res publica, nenhuma ideia que preste. Importa portanto saber por que razão acertou e se isso representa alguma mudança grávida de consequências positivas.

 

Convirá talvez lembrar que aquando dos incêndios de Pedrogão a primeira reacção do nosso monarca foi dizer que "o que se fez foi o máximo que podia ser feito". Isto quando era patente, e há muito, para quem lesse quem valesse a pena ser lido, que as únicas coisas realmente feitas eram um rosário de asneiras. Marcelo, que não é um homem bem informado senão de rodilhices que tenham que ver com tácticas políticas, e mesmo essas apenas de curto ou médio prazo, é todavia um grande farejador - a isso deve a carreira, o sucesso e taxas de aprovação sem precedentes.

 

Não compro o sentimentalismo dos abraços, das selfies, e todo o folclore enjoativo associado aos afectos. Nem acho que esse seja um fundamento sólido para qualquer mudança que valha a pena, e menos ainda para quaisquer reformas, que para serem úteis desagradarão a muitos, senão à maioria.

 

Mas suponho que à força de andar no meio do povo miúdo, e de ver de perto o espectáculo indecoroso de um país desconhecido abandonado à sua sorte, Marcelo, que é um intuitivo, percebeu que dar cobertura ao Governo era a negação de uma interpretação correcta do sentimento popular. E ele está para isso, para interpretar o sentimento popular, e, não sabendo mais nada, isso sabe fazer bem.

 

Então, pode a direita contar com ele? Marcelo mudou? Sim e não: não, se Costa recuperar, como creio fará, a credibilidade seriamente beliscada; sim, se os danos tiverem sido permanentes.

 

Para já, a chuva dos milhões, de mais a mais com a imprudente garantia de que não contarão para o défice (um tipo de música que, caindo em ouvidos socialistas, é um passe-vite quase certo para o deboche), abafará a revolta e comprará votos transviados; a corrupção, como de costume, abocanhará o seu quinhão; e as reformas desenhadas, mais a área ardida que não arderá de novo senão quando a legislatura for outra, e outras as restantes circunstâncias: tudo garantirá que a geringonça tem pela frente mais do mesmo, até onde a vista alcança.

 

Quer dizer que o novo Marcelo que a paisagem física destruída revelou só renascerá quando a economia der de si, ou quando por qualquer outra razão a paisagem política mostrar labaredas e fumo.

 

Até lá conviria persuadirmo-nos de que vivemos numa monarquia electiva: o rei está acima dos partidos; ou abaixo; ou ao lado; em suma, onde estiverem os populares que lhe chorem no ombro, desde que em quantidade suficiente.

Tags: ,
publicado por José Meireles Graça às 11:58
link do post | comentar | ver comentários (1)
Quinta-feira, 19 de Outubro de 2017

Tendas com quem não as entende

Há dias um senhor respeitável e já de certa idade, professor universitário, pronunciava-se na SicN sobre os incêndios e referiu-se em termos elogiosos, como praticamente toda a gente que é gente, ao relatório da comissão técnica independente, ressalvando porém que as alterações climáticas nele não figuram (aposto singelo contra dobrado que o mesmo senhor, há meia dúzia de anos, não diria "alterações climáticas" mas "aquecimento global"). Vai daí, fomos servidos com o cenário de horror que nos aguarda no futuro se não o ouvirmos, e aos colegas dele, sobre o risco enorme de não seguirmos a receita que prescrevem, e que invariavelmente consiste em despender mais recursos públicos para alimentar estudos e organismos, impor mudanças de comportamentos e adoptar as tecnologias que aconselham. O que aliás vem sendo feito, ainda que não ao ritmo desejável, que fica sempre aquém do que estimam imperativo para salvarmos o planeta.

 

José Gomes Ferreira, conhecido como jornalista de assuntos económicos, tem uma tese: há ignições a mais, inexplicáveis, e é preciso apurar quem ganha com os fogos. Quem compra a baixo preço as madeiras ardidas, os proprietários dos meios aéreos (na verdade são aeronaves mas a comunicação social utiliza esta expressão porque é ignorante) que ganham com os fogos, e sobretudo quem adquire propriedades ardidas para emparcelamento. Sem esta investigação, nada feito: não perceberemos nada. Mas a ele, José Gomes, não lhe fazem o ninho atrás da orelha: isto tudo é um caso de polícia.

 

Não falta gente a reclamar alterações ao Código Penal, agravando a moldura do crime de fogo posto, havendo até petições a circular com esse propósito. E não custa imaginar que se um partido político se lembrasse de propor na Assembleia sérios endurecimentos, incluindo a obrigação de o juiz impor a prisão preventiva em todos os casos, o eleitorado, e a comunicação social, rebolariam de gozo e os potenciais incendiários, tolhidos de medo, dedicar-se-iam a outras malfeitorias menos lesivas do ambiente.

 

Miguel Sousa Tavares espuma de raiva contra os eucaliptos. Se em Portugal nunca aquela árvore maléfica tivesse adquirido a importância económica que levou a que não sei já quem a tivesse descrito como o nosso petróleo verde, teríamos soutos de carvalhos seculares e castanheiros, fartos renques de vidoeiros, tudo entremeado de gordas searas ondulando ao vento, e largas sombras de tílias sob as quais, ao mesmo tempo que aspirávamos os aromas do loureiro, do alecrim e do tomilho, podíamos ler enlevados as recomendações do arq.º Ribeiro Teles para um país imaginário e perfeito, as Éclogas de Virgílio e as obras completas de Sophia, para chorar mansamente de comoção.

 

De adeptos de mudanças estruturais há um ror, embora não digam todos exactamente o mesmo. Todos porém concorrem num ponto: o proprietário florestal não limpa, não planta o que deve, não vigia, atreve-se inclusive a ser anónimo, é demasiado pequeno a norte do país, e demasiado grande a sul, pelo que há que lhe impor obrigações a golpe de proibições, licenças, multas e - é aqui que nascem as diferenças de abordagem - confisco.

 

Confisco para o Estado, que quando em veste de proprietário faz o que fez no pinhal de Leiria, o qual ardeu em mais de dois terços, mas apenas possivelmente por falta de meios, dada a excessiva timidez na cobrança de impostos.

 

Não compro nada disto. Mas aquando dos incêndios de Pedrógão escrevi um post onde referia um Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, de 2005, cujos autores estão, ao menos pela sua maior parte, ainda vivos, e que decerto teriam o maior gosto em actualizá-lo, eventualmente acrescentando outros nomes entretanto surgidos de especialistas na área.

 

Não é que as decisões finais não tenham que ser políticas; não é que as teses sejam todas pacíficas; não é que passando à prática não se venham a revelar necessários acertos, revisões, correcções de pontos de vista.

 

É que o combate aos incêndios florestais é uma coisa; e a reforma da floresta outra. Para o primeiro o relatório referido a início diz o que convém; e para a segunda o Plano vale mil vezes os palpites que acima, sem preocupações de ser exaustivo, listei.

 

Sobre a história dos fogos de domingo passado direi apenas o seguinte: A popularidade de Costa não parece beliscada de um modo que não possa ser corrigido por um novo aumento das pensões, a três Euros por cabeça, uns milhares de admissões na função pública, umas benesses a funcionários e mais umas cedências a comunistas; as cabeças de personagens inenarráveis que já rolaram, e as que virão a rolar, serão substituídas por outras nulidades da coudelaria do PS; Marcelo apareceu, por contraste, como um estadista; e os mortos não, nem os que perderam haveres e modo de vida, mas uma parte dos vivos sim, todos os que apoiam este governo deplorável, têm o que merecem.

Tags:
publicado por José Meireles Graça às 15:36
link do post | comentar | ver comentários (1)

Pesquisar neste blog

 

Autores

Posts mais comentados

Últimos comentários

https://www.aromaeasy.com/product-category/bulk-es...
E depois queixam-se do Chega...Não acreditam no qu...
Boa tarde, pode-me dizer qual é o seguro que tem??...
Gostei do seu artigo
Até onde eu sei essa doença não e mortal ainda mai...

Arquivos

Janeiro 2020

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Links

Tags

25 de abril

5dias

adse

ambiente

angola

antónio costa

arquitectura

austeridade

banca

banco de portugal

banif

be

bes

bloco de esquerda

blogs

brexit

carlos costa

cartão de cidadão

catarina martins

causas

cavaco silva

cds

censura

cgd

cgtp

comentadores

cortes

crise

cultura

daniel oliveira

deficit

desigualdade

dívida

educação

eleições europeias

ensino

esquerda

estado social

ética

euro

europa

férias

fernando leal da costa

fiscalidade

francisco louçã

gnr

grécia

greve

impostos

irs

itália

jornalismo

josé sócrates

justiça

lisboa

manifestação

marcelo

marcelo rebelo de sousa

mariana mortágua

mário centeno

mário nogueira

mário soares

mba

obama

oe 2017

orçamento

pacheco pereira

partido socialista

passos coelho

paulo portas

pcp

pedro passos coelho

populismo

portugal

ps

psd

público

quadratura do círculo

raquel varela

renzi

rtp

rui rio

salário mínimo

sampaio da nóvoa

saúde

sns

socialismo

socialista

sócrates

syriza

tabaco

tap

tribunal constitucional

trump

ue

união europeia

vasco pulido valente

venezuela

vital moreira

vítor gaspar

todas as tags

blogs SAPO

subscrever feeds